''Belo Monte é de todo inaceitável e
ilegal e nunca deixa de ser''.
Entrevista especial com Dom Erwin Kräutler
“Evangelizar implica primeiro no testemunho de uma fé arraigada na
Palavra de Deus e na convicção de que esse mesmo Deus é um Deus que anda
conosco pelas estradas e rios de nossa vida”, diz bispo do Xingu.
Confira a entrevista.
“A alegria de ser chamado a servir a Deus, levando o seu amor às
pessoas e a todos os povos (cf. AG 10), ninguém pode arrancar do coração de
quem exerce uma missão que tem sua base e motivação no Evangelho”. É com esta
declaração que Dom Erwin Kräutler, bispo do Xingu, resume sua atuação no Brasil
há mais de 40 anos, evangelizando sua comunidade. Nesta caminhada, ele esteve
engajado em diversas causas, entre elas, a mais recente, em oposição à
construção da hidrelétrica de Belo Monte. “Como bispo tenho que conviver
com diversos pontos de vista e tolerar, às vezes mesmo a contragosto, posições
opostas à minha. Em momento algum isso significa abrir mão do credo que
professo e da posição contra Belo Monte que sempre assumi e
continuo sustentando, considerando-o uma insanidade. Infelizmente não existe
meio termo. Belo Monte é de todo inaceitável e
ilegal e nunca deixa de ser”, disse o bispo à IHU On-Line.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Dom Erwin comenta a atual situação de Altamira
desde a construção da hidrelétrica de Belo Monte e acentua o comportamento dos povos indígenas que vivem
próximos ao canteiro de obras. “Aí se percebe nitidamente que a Norte
Energia usa de todos os meios para calar os indígenas e impedir que
se manifestem. Recebem cestas básicas, voadeiras, combustível, benefícios que
nunca imaginaram. Como explicar-lhes que esses presentes são um cavalo de Troia
e aceitá-los significa dar um tiro no próprio pé?”, questiona.
Ele conta que após a eleição de Dilma tentou agendar uma reunião com
a presidente, mas ao ouvir o discurso de Gilberto
Carvalho, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República,
a favor de Belo Monte, desmarcou o encontro. “O que
ainda iria fazer no gabinete do ministro? Trocar amenidades e posar para fotos?
Já que a declaração do ministro revelou toda a intransigência do governo, eu
mesmo cancelei a audiência”, lamenta.
Há dois anos de tornar-se bispo emérito, Dom Erwin diz que isso “não significa ‘entregar os
pontos’. Meu empenho em favor da dignidade e dos direitos dos povos indígenas,
dos ribeirinhos, das mulheres, das crianças, dos jovens, dos expulsos de casa e
terra, dos agredidos e machucados, enfim, de todos os ‘excluídos do banquete da
vida’ e minha defesa do meio ambiente, o ‘lar’ que Deus criou para todos nós,
vão continuar enquanto Deus me der o fôlego”.
Dom Erwin Kräutler (foto ao lado) é bispo de Altamira, no Pará, e presidente do
Conselho Indigenista Missioneiro – CIMI.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que avaliação faz da caminhada de luta em oposição a
Belo Monte e aos projetos de infraestrutura na Amazônia durante os últimos
anos?
Dom Erwin Kräutler – Por ocasião da Conferência das
Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável,Rio+20, o movimento Xingu Vivo para Sempre convocou
indígenas, pescadores, ribeirinhos, movimentos sociais, estudantes e
acadêmicos, ativistas e defensores do Xingu para comemorar os 23 anos que se
passaram desde o Primeiro Encontro dos Povos Indígenas do Xingu (20 a 25 de fevereiro de 1989) em Altamira. O evento foi
chamado de “Xingu+23“ em analogia ao “Rio+20“ e quis lembrar a primeira grande vitória contra o projeto de
barramento do rio Xingu que naquele tempo levou o nome de Kararaô, um grito de guerra do povo Kayapó, o povo indígena mais numeroso
do Xingu. Na realidade, a luta contra o projeto é bem mais antiga e começou já
nos anos 1970 quando os militares cogitaram a construção de seis grandes usinas
ao longo do rio Xingu: Jarina, Kokraimoro, Ipixuna, Babaquara, Kararaô e Iriri.
O Encontro dos Povos Indígenas em 1989 tornou a rejeição do projeto da parte
dos indígenas apenas mais visível e chamou a atenção do Brasil e da comunidade
internacional para o planejado golpe no coração da Amazônia.
Ironia da história
Ironia da história: Lula, que elegemos porque acreditávamos
que outro Brasil fosse possível, pouco depois de tomar posse tirou o projeto
das gavetas, desconsiderando o que durante a campanha eleitoral havia falado
nos palanques sobre a Amazônia. Passou a defender o que antes severamente
criticou e a considerar o projeto hidrelétrico no Xingu essencial para o
progresso, vaticinando o colapso total da economia do país caso não seja
concretizado. Substituiu-se apenas o nome de Kararaô por Belo Monte para ninguém mais lembrar o
facão da Tuíra e os índios de 1989 pintados de urucum e jenipapo.
Não acredito que haja no Brasil outro movimento de luta em defesa
do meio ambiente contra um megaprojeto governamental com uma história tão
longa. Alguém talvez venha retrucar: “Mas, infelizmente, lutaram em vão, já que
o projeto está sendo executado a pleno vapor e, depois de já ter gasto bilhões
de reais, dificilmente o governo vai recuar!“ De fato, a cada dia que passa
mais explosões ensurdecedoras atormentam a população no entorno do canteiro de
obras. A cada dia que passa mais destruição se alastra pela região. A
ensecadeira se estende rio adentro e o desmatamento avança nas ilhas e na terra
firme da Volta Grande do Xingu. Mas, mesmo assim, nada de
enrolar a bandeira! Sabemos que Belo Monte não é a única barragem planejada no
Xingu. Nossa luta tem também por objetivo evitar que o antigo projeto dos
militares seja desenterrado na sua totalidade.
Quantos cientistas e especialistas não alertaram o governo que o
Xingu durante três ou quatro meses no ano não terá o volume d’água suficiente
para rodar uma única turbina sequer? Muitos! E todo mundo sabe que é
economicamente absurdo deixar sem funcionar as turbinas que são a parte mais
cara de todo o empreendimento. A solução reside em mais barramentos rio acima
como já foi previsto no projeto dos militares, com impactos mais desastrosos
ainda que a própria Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Esse
projeto de mais barragens é tratado como segredo de estado. Habilmente se evita
toda a discussão em torno deste espectro que então sacrificará todo o rio Xingu
com consequências não só para Altamira mas também para todas as vilas
ribeirinhas e áreas indígenas nas margens do rio, chegando a atingir até a
cidade de São Félix do Xingu.
Cruzar os braços
Outro motivo de não cruzarmos os braços são os mais de cinquenta
(50!) processos que correm na Justiça brasileira e internacional denunciando
violações da Constituição Federal e de tratados internacionais de que o Brasil
é signatário. São ações movidas pelo Ministério Público Federal, pela
Defensoria Pública Estadual do Pará como por entidades da sociedade civil,
entre estas o Conselho Indigenista Missionário –
CIMI, organismo vinculado à CNBB. Estes processos estão, em
parte há anos, sem a Justiça tomar nenhuma providência. Quais são os reais
motivos desta morosidade? Omissão ou negligência são inaceitáveis num Estado
que se diz democrático e de Direito.
Finalmente, enquanto não forem cumpridas todas – todas mesmo! –
condicionantes exigidas pelo Ibama e pela Funai como requisitos para dar início
à construção de Belo Monte, não
deixaremos de denunciar a ilegalidade da obra.
IHU On-Line – Quais as
principais alegrias e desafios de ser um líder religioso em uma região como a
do Xingu, onde a comunidade e a Igreja estão divididas por causa de Belo Monte?
Dom Erwin Kräutler – A alegria de ser
chamado a servir a Deus, levando o seu amor às pessoas e a todos os povos (cf.
Ad Gentes 10), ninguém pode arrancar do coração de quem exerce uma missão que
tem sua base e motivação no Evangelho. Esta missão não se restringe a um mero
anúncio de verdades. Evangelizar implica primeiramente no testemunho de uma fé
arraigada na Palavra de Deus e na convicção de que esse mesmo Deus é um Deus
que anda conosco pelas estradas e rios de nossa vida. Evangelizar é estar
continuamente a serviço deste Deus, consagrando a vida a Ele e a seu Povo, e
isso sem medir esforços e alegar cansaço. “Amou-os até o fim” lemos no
Evangelho de São João para introduzir o episódio do lava-pés (Jo 13,1). Evangelizar não exclui o diálogo
aberto, franco, respeitoso. Um monólogo autoritário é antievangélico quando
tenta arrasar com quem tem outra visão do mundo e condenar ao inferno a quem
não reza pela nossa cartilha. Como bispo tenho que conviver com diversos pontos
de vista e tolerar, às vezes mesmo a contragosto, posições opostas à minha. Em
momento algum isso significa abrir mão do credo que professo e da posição
contra Belo Monte que sempre assumi e continuo sustentando, considerando-o uma
insanidade. Infelizmente não existe meio termo. Belo Monte é de todo
inaceitável e ilegal e nunca deixa de ser. A decisão tomada pelos
governos Lula e Dilma de construir Belo Monte é
imperdoável porque nunca haverá uma chance mínima de reparar os erros
monstruosos cometidos. Ao inaugurar Belo Monte teremos alcançado um
ponto sem retorno. Em outras palavras: não adiantará mais chorar o leite
derramado.
O cenário mudou
A Igreja, como o povo do Xingu em geral, está dividida na
avaliação de Belo Monte. No
entanto, os que defendem o projeto já não estão mais tão eufóricos como anos
atrás quando colaram adesivos “Queremos Belo Monte” em seus carros. Os
adesivos desapareceram. Os que aprovam o projeto, o fazem hoje com reservas e
muitas exigências. Os políticos há tempo desceram de seus palanques porque
esgotaram os argumentos bombásticos em favor do “progresso” que só Belo Monte
seria capaz de trazer para a região. Ensacaram a viola. Aliás, Belo
Monte nem sequer foi tema nos comícios da última campanha
eleitoral. Os candidatos bem sabiam por que evitaram falar em Belo Monte. Iriam
levar estrondosas vaias. Incrível com que rapidez o cenário mudou. A tendência
é que, na medida em que a obra avança, o povo está se dando conta de que, até
agora, nada ou muito pouco do que foi prometido está sendo cumprido. Altamira,
uma cidade de mais de 120 mil habitantes, está mergulhado num tremendo caos. Os
operários contratados pela empresa CCBM logicamente apreciam ter encontrado emprego, se bem que seja
temporário. Mesmo assim há frequentes manifestações de insatisfação. Há até
operário preso. Com toda razão exigem melhores condições de trabalho e salários
que permitam enfrentar a inadmissível carestia que impera em Altamira.
As feições do povo que frequenta as Igrejas em Altamira mudaram. Entre as (os) fiéis
tradicionais aparecem muitos rostos novos. São homens e mulheres, casais e
famílias, que vieram de outros estados e trabalham nas empresas ligadas à
construção de Belo Monte. Querem participar das celebrações e iniciativas de
sua Igreja e tem todo o direito de fazê-lo, mas é óbvio que não se manifestam
contra Belo Monte ou criticam o projeto, pois provavelmente correriam o risco
de perder o emprego.
Inalterado, também dentro da Igreja, ficou o grupo que
categoricamente rejeita Belo Monte. Embora sejam poucas pessoas em relação à grande massa que é
indecisa e opta por uma posição de aguardar “para ver como é que fica“, essa
parcela do Povo de Deus mais ativa e combatente não se deixa intimidar nem por
ameaças, nem por calúnias, difamações e outros tipos de perseguição.
IHU On-Line – Irmã Ignez Wenzel comentou sobre a
desarticulação entre as comunidades indígenas por conta das obras. Quais são as
razões desse comportamento? Pesquisadores, antropólogos e religiosos estão mais
preocupados com a questão indígena do que os próprios índios?
Dom Erwin Kräutler – A questão é complexa.
É perigoso generalizar, afirmando que os indígenas estão menos preocupados. Do
mesmo jeito como em toda a sociedade do Xingu (do Brasil e do mundo), há também
entre os indígenas diferentes posições em relação a Belo Monte. Religiosos, antropólogos,
professores e outros profissionais conhecem talvez melhor os meandros e as
propostas insidiosas do sistema neoliberal que está na base do
“desenvolvimentismo” que confunde desenvolvimento com crescimento meramente
econômico, multiplicação de riqueza material, incremento do PIB, expansão do
agronegócio, aumento de produção de biocombustíveis. Os indicadores sociais são
colocados em um plano inferior. A defesa do meio ambiente não passa de recheio
nos discursos da presidente em Brasília para impressionar quando fala na ONU e
em outras oportunidades no exterior como há poucos dias em Paris.
Essa realidade os indígenas, pelo menos os velhos caciques,
certamente nunca estudaram e por isso não se dão conta do perigo que correm. No
sistema vigente, o que importa é produzir, lucrar, tirar vantagem, consumir. O
“ter“ triunfa sobre o “ser“. Esse sistema é cruel e diametralmente oposto ao
que os indígenas andinos chamam de Sumak Kawsay (ou “Bem Viver“). É
um câncer que dissemina metástases em todo o tecido social. E é uma ilusão
pensar que os povos indígenas sejam imunes contra este câncer. Todo o nosso
empenho e acompanhamento visam ajudá-los a evitar a contaminação.
Posições
Os Kayapó do Alto Xingu, sob a
liderança do cacique-patriarca Raoni Metuktire, rejeitam qualquer barragem do rio. É para eles uma questão
fechada. Só que Belo Monte é geograficamente muito distante de suas aldeias e
essas, na primeira fase da construção do complexo hidrelétrico do Xingu, não
serão impactadas diretamente. Por isso os Kayapó do Alto Xingu não mais se
manifestaram de modo tão contundente como antes o fizeram quando Raoni mesmo veio a Altamira para prestigiar eventos contra Belo Monte.
Outra é a situação dos povos que vivem mais próximos ao canteiro
de obras. Aí se percebe nitidamente que a Norte Energia usa de todos os meios
para calar os indígenas e impedir que se manifestem. Recebem cestas básicas,
voadeiras, combustível, benefícios que nunca imaginaram. Como explicar-lhes que
esses presentes são um cavalo de Troia e aceitá-los significa dar um tiro no
próprio pé? Quem antes foi tratado como pária e de repente avança para padrões
de príncipe, dificilmente entende uma advertência de que essas regalias são
prejudiciais a ele e a seu povo. Na realidade, o dinheiro fácil corrói a
sociedade indígena, corrompe lideranças, destrói a organização interna de um
povo, faz os índios perder a sua identidade. Tem sistema atrás disso. Quando os
indígenas “deixam de ser indígenas“ perdem também suas terras ancestrais,
cobiçadas desde sempre pelas mineradoras, pelos madeireiros e latifundiários.
Chamo essa investida contra os índios de “auricídio“ (do latim aurum: ouro). Matam-se os indígenas
com dinheiro, entopem-se-lhes as gargantas com dinheiro a ponto de não mais
poderem gritar, implanta-se um consumismo desenfreado no seio das comunidades e
exterminam-se deliberadamente os valores e a sabedoria milenar de um povo. E o
pior é que se afirma em alto e bom som que tudo é feito “em favor dos índios
para tirá-los finalmente da era da pedra lascada“. Através do dinheiro se tenta
ressuscitar os parâmetros das antigas constituições brasileiras que defendiam
“a incorporação dos silvícolas à comunhão nacional“, programa etnocida que
achávamos definitivamente superado com a Constituição
de 1988.
IHU On-Line – O senhor voltou a
dialogar com o governo na tentativa de paralisar Belo Monte? Como vê, nesse
sentido, a atuação do Ministério Público Federal, que por vezes determina a
paralisação da obra?
Dom Erwin Kräutler – Já em outubro 2009
percebi que o presidente Lula, embora tenha insistido em continuar o que
chamou de diálogo, na realidade não estava nada interessado em
discutir Belo Monte. Aliás, o “diálogo“ de que ele falou não passou de
encenação. Tentei ainda um encontro com a Dilma. Fui informado
que Gilberto Carvalho, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência
da República, estaria disposto a receber-me em audiência. Mas poucos dias antes
da data marcada para a audiência ele discursou num encontro das pastorais
sociais da CNBB e declarou que Belo Monte era irreversível
e irrevogável. O que ainda iria fazer no gabinete do ministro? Trocar
amenidades e posar para fotos? Já que a declaração do ministro revelou toda a
intransigência do governo, eu mesmo cancelei a audiência.
E o papel do Ministério Público Federal? Das 15 ações judiciais contra ilegalidades no licenciamento da
construção de Belo Monte, encaminhadas pelo Ministério
Público Federal, apenas uma transitou em julgado. Este balanço revela a
“importância“ que é dada hoje a este órgão de defesa dos direitos
constitucionais do cidadão. Às vezes me dá até dó ver o esforço de nossos
Procuradores da República. Será que não se sentem supérfluos e inúteis dentro
do poder Judiciário, que não aprecia o seu empenho, engavetando
sistematicamente as ações elaboradas com esmero e competência?
IHU On-Line – Como o senhor vê a discussão acerca da mineração
no Norte e Nordeste? É possível dizer que Belo Monte servirá para facilitar a
mineração?
Dom Erwin Kräutler – Respondo com a
pesquisadora Telma Monteiro, que colabora com
o Xingu Vivo para Sempre e quem estimo muito. Num artigo
publicado no Correio da Cidadania (11-09-2012) ela adverte
que “a implantação do projeto da hidrelétrica Belo Monte é a forma de viabilizar definitivamente a mineração em
terras indígenas e em áreas que as circundam, em particular na Volta Grande,
trecho de mais de 100 quilômetros que vai praticamente secar com o desvio das
águas do Xingu. E é justamente nas proximidades do barramento principal, no
sítio Pimental, que está sendo montado o maior projeto de exploração de ouro do
Brasil, que vai aproveitar o fato de que a Volta Grande ficará seca por meses a
fio com o desvio das águas do rio Xingu“. Critica ainda: “Incrível como, além
das hidrelétricas, os projetos de mineração, na visão do governo federal e do
governo do Pará, também se tornaram a panaceia para solucionar todos os
problemas não resolvidos de desenvolvimento social. Papel que seria obrigação
do Estado, com o dinheiro dos impostos pago pelos cidadãos de bem“. Sempre o
mesmo lero-lero que já estamos cansados de ouvir: os problemas sociais da
Amazônia só poderão ser solucionados se, de mão beijada, a lotearmos e
entregarmos lote por lote a empresas estrangeiras. Desta vez a felizarda é
a Belo Sun Mining Corporation com sede
em Toronto, Canadá, que em breve auferirá lucros astronômicos rindo da cara dos
brasileiros. E ainda há quem brada que a “Amazônia é nossa“ e repete o discurso
de Lula em 2007: “Precisamos dizer que somos os
donos da Amazônia e que sabemos cuidar das nossas florestas, da nossa água, não
precisa ninguém dar palpite”. Quem são realmente os donos? Sabemos realmente
cuidar das nossas florestas, da nossa água? Não seria mais correto chorar desde
já a mãe Amazônia pois ela foi vendida ao grande capital para ser violentada
sem escrúpulos até morrer de inanição!
IHU On-Line – Daqui dois anos o
senhor enviará ao Papa o pedido de renúncia, conforme denomina o Direito
Canônico. O senhor já faz planos para os próximos anos? Pretende continuar na
região do Xingu?
Dom Erwin Kräutler – O Cânone 401 § 1
do Direito Canônico reza que o bispo “que tiver completado setenta e cinco
anos de idade, é solicitado a apresentar a renúncia do ofício ao Sumo
Pontífice, que, ponderando todas as circunstâncias, tomará providências“. Em
outra palavras: é o Papa que decide se aceita logo a renúncia ou se pede ao
bispo continuar por mais algum tempo. Não fiz nenhum plano para “o dia
seguinte“, mas tornar-se bispo “emérito“, logicamente não significa “entregar
os pontos“. Meu empenho em favor da dignidade e dos direitos dos povos indígenas, dos ribeirinhos,
das mulheres, das crianças, dos jovens, dos expulsos de casa e terra, dos
agredidos e machucados, enfim, de todos os “excluídos do banquete da vida“ e
minha defesa do meio ambiente, o “lar“ que Deus criou para todos nós, vão
continuar enquanto Deus me der o fôlego.
IHU On-Line – Como é para o
senhor viver no Brasil, especialmente num estado em que há milhares de
problemas sociais, ambientais, numa conjuntura completamente diferente da sua
origem?
Dom Erwin Kräutler – Cheguei a Altamira em dezembro de 1965, ainda
jovem. A decisão pelo Xingu foi uma decisão pessoal. Os superiores
religiosos apenas concordaram e me deram luz verde. Jamais me arrependi de ter
feito esta opção. O Xingu tornou-se minha terra, o chão em que vivo a
minha vida. Não nego as minhas raízes e não deixei de amar o país da minha
família e de meus antepassados, mas nunca cultivei saudosismos para com a terra
onde nasci, avaliando o que na Áustria estaria melhor ou analisando a
conjuntura de lá, comparando-a com os problemas que aqui enfrentamos.
Tempos atrás redigi uma mensagem que muitas vezes já foi usada em
celebrações de envio de missionárias e missionários. Esse texto traduz o que
ser missionário sempre significou para mim:
“Vai meu irmão, minha irmã! Lá, em tua nova
missão, em tua nova terra, em tua nova pátria, anunciarás Jesus Cristo e o seu
Evangelho. Servirás aos pobres, aos excluídos do banquete da vida, lavando-lhes
os pés. Falarás com quem nunca andou ou não anda mais conosco.
Aproximar-te-ás com muito carinho a um povo com
cultura e tradições diferentes. Chegando lá, estranharás, sem dúvida, os
costumes e usos locais. Mas, não imporás as tuas ideias! Não apresentarás o
país que te viu nascer como paraíso! Não dirás nunca que no lugar onde te
criaste, as coisas estão bem melhores!
Não darás nunca a impressão de que vieste para
ensinar, para civilizar, para instruir, para colonizar! Jamais violentarás a
alma do povo que, doravante, será o teu povo!
Oferecerás simplesmente o testemunho de tua fé,
de tua esperança e de teu amor, e darás a tua vida até o fim, até as últimas
consequências! Assim, tu terás o privilégio e a felicidade de viver a graça de
todas as graças: encontrarás o Senhor que disse: 'Depois que eu ressuscitar,
irei à vossa frente para a Galileia' (Mc 14,28). Missão é sempre ir à Galileia,
às Galileias de todos os continentes!“
IHU On-Line – Depois de todos esses anos na região, qual foi a
luta mais difícil na sua trajetória?
Dom Erwin Kräutler – Sempre lembro com carinho nosso empenho
em 1987-1988 durante a Assembleia
Nacional Constituinte para que os direitos indígenas fossem
inscritos na Constituição da República. Foi uma luta sem tréguas, mas os povos
indígenas e nós, os seus aliados, saímos vitoriosos. Para quem quiser conferir,
há um capítulo específico na Carta Magna do País que fala “Dos Índios“
(Art. 231 e 232). Essa luta, porém não terminou. Trata-se de concretizar o que
está escrito aí.
A luta mais desgastante, no entanto, é sem dúvida a que travamos
contra a hidrelétrica Belo Monte, que já
dura tantos anos.
IHU On-Line – Estamos na época do Advento. O que esta época de
natividade, como nascimento de Jesus, pode trazer de reflexão para os dias de
hoje, para os governantes, especialmente em relação a Belo Monte?
Dom Erwin Kräutler – Eu não sei se o sentido profundo
do Advento e Natal mexe com o coração de nossos governantes, ministros e outros
membros do governo. Talvez nem falem mais em Natal. Preferem substituir a lembrança do Nascimento de Jesus com um
termo mais secularizado: “Festas de Fim de Ano“. E muito menos sei se esta
gente, ouvindo eventualmente o “Noite Feliz“, se lembra das famílias
expulsas de suas terras por causa de Belo Monte. Essas famílias não experimentam nada de noite feliz, enquanto os
responsáveis pela sua desgraça se banqueteiam em confraternizações com as mais
finas iguarias, regadas a bebidas seletas.
IHU On-Line – O que a experiência de Jesus Libertador pode
ensinar e inspirar a prática cristã de hoje?
Dom Erwin Kräutler – Responder a essa pergunta equivaleria a
uma dissertação sobre os fundamentos e toda a história da Teologia da Libertação e sua contribuição
valiosa para a Igreja na Amazônia, especialmente para as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, que continuam sendo o
chão concreto em que esta forma de reflexão teológica até hoje está dando seus
frutos e que gerou seus mártires. Precisaria também desmontar todos os
mal-entendidos a respeito desta teologia, disseminados pelo Brasil e mundo
afora, especialmente em ambientes em que se fecham os olhos e se tapam os
ouvidos diante das injustiças de um sistema desumano, excludente, opressor e de
violências estruturais que causam a morte de tantos homens, mulheres e crianças
e do meio ambiente em que vivem.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Dom Erwin Kräutler – Sim, votos de um abençoado Advento e Santo Natal
do Senhor. Que Deus nos conceda sua graça e paz, neste Natal, durante o Ano
Novo e sempre.
Nenhum comentário:
Postar um comentário