Paulo Moreira Leite
Desde janeiro de 2013, é diretor da ISTOÉ em Brasília.
Dirigiu a Época e foi redator chefe da VEJA, correspondente em Paris e em
Washington. É autor do livro A mulher que era o general da casa -- Histórias da
resistência civil à ditadura.
A renúncia
de Bento XVI contém lições interessantes
Empossado com um programa que pretendia
reconduzir a Igreja para um mundo fechado nela mesma, voltada exclusivamente
para debates de natureza espiritual, longe das questões que afligem os homens e
mulheres do mundo, Bento XVI deixou o trono da Igreja em ambiente de decepção e
melancolia.
Um de seus admiradores afirma que,
embora tenha sido um grande teólogo, Bento XVI fracassou como Papa.
Não é de surpreender. Não tenho a menor
condição de debater teologia. Mas, ateu desde a infância, tenho capacidade de
examinar os Papas como aquilo que são – chefes políticos da Igreja. E é nesta
função que o fracasso de Bento XVI contém elementos didáticos.
Embora o conservadorismo católico tenha
produzido vários representantes ao longo da História da Igreja, Bento XVI não
era apenas um Papa fora do tempo – era um Papa contra seu tempo.
Num mundo onde a cultura tornou-se
plural, as sociedades se mostram complexas, os cidadãos se recusam a abrir mão
de sua autonomia, seus direitos e opções de vida, a proposta de Bento XVI era
uma forma de clausura política e cultural.
Ele se recusava a dar respostas
consistentes para a vida das pessoas do século XXI, fosse em relação a vida em
família, aos direitos das mulheres, às angustias dos mais pobres.
Alguém acha viável ter audiência junto
às mulheres sem falar sobre aborto?
Ou conversar com a juventude sem falar
da liberdade sexual?
Ou procurar audiência junto às grandes
populações do planeta sem responder à pobreza, à desigualdade?
Basta assistir a uma missa num bairro
popular de São Paulo – recomendo a Achiropita, no Bixiga – para se entender o
que estou dizendo. É fácil perceber quando os fiéis prestam atenção, quando se
empolgam, quando ficam entediados.
Este conservadorismo radical de
Bento XVI queria transformar o isolamento social da Igreja em virtude.
Antecessor de Bento XVI, João Paulo II
era um Papa conservador, que deu início a uma política de combate à Teologia da
Libertação e mesmo perseguição ao clero comprometido com os interesses dos mais
pobres e oprimidos, como aconteceu em São Paulo, com dom Paulo Evaristo Arns –
cardeal que esteve longe de liderar alguma fração esquerdista da Igreja, mas
jamais abandonou valores como o respeito pelos direitos humanos e a democracia.
Mas João Paulo II nunca deixou de dar
respostas – à sua maneira – às questões da vida concreta. Sua pregação tinha
elementos democráticos, sua mensagem procurava responder ao sofrimento de
homens e mulheres comuns – e por isso ele atraía multidões por onde passava. As
viagens de Bento XVI jamais tiveram a mesma vibração nem a mesma acolhida, num
sinal de que seu papado acentuou uma tendência histórica da Igreja.
No início dos anos 80, o francês Marcel
Gauchet escreveu um clássico sobre as religiões, “O Desencantamento do Mundo”.
Ele explica a decadência universal do catolicismo pelas mudanças na vida em
sociedade.
Para Gauchet, o apogeu da religião
ocorreu em épocas históricas em que as pessoas acreditavam que viviam num mundo
encantado. Simplificando uma teoria muito mais complexa: homens e mulheres
acreditavam viver num mundo em que a religião era uma forma de magia. Atribuíam
aos céus suas alegrias e tristezas, sucessos e desgraças. Pensavam que a
colheita era obra divina, tinham certeza de que havia uma vida após a morte – e
atribuíam cada passo da existência à decisão de Deus. Acreditavam em milagres.
Naquele mundo de encantamento, temia-se
o pecado como uma ação terrível – e a punição divina como um castigo material.
Na medida em que a sociedade de
modificou, os meios de subsistência evoluíram, a educação e o conhecimento se
ampliaram inclusive para as populações muito pobres, muitas conquistas
científicas se mostraram indispensáveis para o bem-estar de todos, era preciso
falar a outros homens e mulheres, outras angústias e preocupações. João XXIII
e, em certa medida, Paulo VI fizeram esforços neste sentido. Ao contrário do
que sugeriam seus inimigos, a Teologia da Libertação e correntes semelhantes
ajudaram a prolongar a audiência da Igreja. Deram-lhe uma audiência que as
correntes conservadoras jamais teriam alcançado.
O projeto de Bento XVI era fazer o
caminho de volta. Chegava a dizer que preferia uma Igreja menor e menos
influente, mas composta por fiéis convictos e irredutíveis, do que uma
comunidade ampla e pouco consistente.
Foi esta sua aposta política.
Um engano, que o crescimento das
igrejas pentecostais demonstram pelo avesso: conseguem combinar a angustia
material dos mais pobres com a promessa de milagres aqui e agora.
Falando a um mundo em que poucos creem,
Bento XVI desencantou-se.
Nenhum comentário:
Postar um comentário