Para o pesquisador do Ibase, objetivo dos
formuladores da proposta é “captar um pouco mais de royalties para o Estado e
garantir que as empresas sigam tendo enormes lucros no setor”
17/07/2013
Fonte: Instituto Humanitas Unisinos
A votação em regime de urgência do
novo Código da Mineração demonstra a “a
velha (ir-)razão patrimonialista e autoritária do Estado brasileiro”,
declara Carlos Bittencourt à IHU On-Line, em entrevista
concedida por e-mail. Se as propostas de alteração do Código da
Mineração estão sendo debatidas “em sigilo” há quatro anos, “por que o
poder Legislativo e a sociedade civil terão apenas 90 dias (45 dias em cada
Casa Legislativa) para debater e chegar a conclusões?”, questiona.
Para ele, o regime de urgência demonstra
a postura do Estado brasileiro “contra o debate e a participação da cidadania”.
De acordo com Bittencourt, os
movimentos sociais e representantes da sociedade civil não tiveram acesso à
proposta do novo Código da Mineração. “O governo recebeu alguns movimentos
já às vésperas da apresentação da proposta, mas não publicizou o texto e nem se
comprometeu com as reivindicações que vinham da sociedade civil”,
informa.
Por outro lado, lamenta, “as empresas
conseguiram negociar detalhes da proposta antes do seu envio ao Congresso,
como, por exemplo, a questão da taxação especial e a alíquota dos roylaties.
Isso mostra que os interessados não foram tratados de forma equitativa,
dando-se prioridade ao setor empresarial”.
Na avaliação do pesquisador, o
novo Código da Mineração é “desumano”, pois não considera as
condições de trabalho dos trabalhadores, nem a situação dos afetados pela
mineração. “Mais uma vez fica claro que é a regulação de um negócio e não de
uma atividade com todas as suas implicações”, assinala. E dispara: “O Código
trata a mineração apenas como um negócio. Nem sequer considera que está
regulando um bem comum natural, finito e não renovável. Nesse sentido, penso
que o Código da Mineração pode ter uma dimensão mais perversa do que o Código Florestal, pois se trata de ações irreversíveis”.
Carlos Bittencourt é historiador e
pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas – Ibase.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Por quais razões o projeto
de lei que propõe a substituição do Código da Mineração será votado em regime
de urgência no Legislativo?
Carlos Bittencourt – Do ponto de vista da sociedade
civil e da razão democrática, não há qualquer razão. A única (ir-)razão
aparente para a apresentação da proposta em regime de urgência é a velha
(ir-)razão patrimonialista e autoritária do estado brasileiro. O motivo, mais
do que a razão, é o impedimento do debate público, do envolvimento da cidadania
brasileira nesta decisão tão importante e que envolve a todos.
O Código atual é de 1967, o governo vem
debatendo a nova proposta há quatro anos. Mas por que agora o poder Legislativo
e a sociedade civil terão apenas 90 dias (45 dias em cada Casa Legislativa)
para debater e chegar a conclusões? Durante os quatro anos de sua elaboração, a
proposta foi mantida em sigilo. Olhando dessa perspectiva, só é possível ver
o regime de urgência como um ato contra
o debate e a participação da cidadania.
E a resposta à pergunta sobre a razão
pela qual se quer evitar o debate me parece mais simples: para não se encarar o
quanto a estratégia pública e privada da exploração mineral brasileira está
baseada na dilapidação dos territórios, das reservas nacionais de minérios e na
reprimarização da nossa economia. Se há urgência, ela é a urgência do mercado.
A democracia exige ritmos de debates completamente distintos dos ritmos do
mercado.
Qual a urgência em alterar o Código?
Como disse, a alteração da lei precisa
respeitar os tempos e os ritmos da democracia. Há muitas urgências envolvendo o
debate da mineração no Brasil e para saná-las é necessário um amplo debate
público envolvendo o conjunto da cidadania brasileira e, especialmente, aqueles
e aquelas que são afetados cotidianamente pela mineração. É urgente encararmos
de frente os problemas causados pela mineração.
Por exemplo, alguém sabe que a mineração
consumiu em 2012, segundo dados incompletos da Agência Nacional de Águas,
cerca de cinco quatrilhões de litros de água através de seus pedidos de
outorgas? E que mais uma quantidade não mensurada foi consumida nos processos
de drenagem das minas, que quanto mais se aprofundam mais atingem as águas
subterrâneas e locais de armazenamento geo-hidrológico. E que, por fim, um sem
número de rios, mananciais e águas subterrâneas foram contaminadas em níveis
extraordinariamente superiores aos permitidos pela Organização Mundial de
Saúde, com substâncias como o mercúrio, o cianureto e as drenagens ácidas?
O número de famílias que estão sendo
direta e indiretamente afetadas pela mineração é a cada ano maior. São pessoas
que têm de deixar os locais onde viviam há décadas, às vezes séculos; que
sofrem com a logística da mineração; cidades que sofrem gigantescos fluxos migratórios
para a instalação das minas que quando iniciam sua operação não empregam sequer
a terça parte dessa mão de obra inicial, causando uma crise nos serviços
públicos locais e instituindo o problema da prostituição, inclusive infantil.
Também é urgente sair desse modelo que,
impulsionando irrefletidamente a extração mineral, torna nossa economia cada
vez mais primária exportadora, dependente dos voláteis preços das commodities
minerais, o que pode, de uma hora para a outra, fazer enormes danos econômicos
às contas públicas, como agora está se verificando com o crescente déficit da
balança comercial brasileira.
Nenhuma dessas preocupações foi levada a
sério na proposta do novo Código da Mineração, o que me faz crer que a
única urgência na cabeça dos formuladores da proposta é captar urgentemente um
pouco mais de royalties para o estado e garantir que as empresas sigam tendo
enormes lucros no setor. A urgência é a urgência do mercado.
Como estão ocorrendo as negociações para
alterar o Código da Mineração e que setores da sociedade participam?
Esse foi um processo superfechado. O
professor da UFJF, Rodrigo dos Santos, analisou os dados que o
governo divulgou sobre a participação no processo de elaboração da proposta. De
acordo com ele, participaram das discussões 189 representantes diferentes,
sendo, em sua grande maioria, representantes ministeriais: Ministério de Minas
e Energia – MME, Ministério do Meio
Ambiente – MMA, Ministério da Ciência e
Tecnologia – MCT e Ministério do Desenvolvimento, Indústria
e Comércio Exterior – MDIC. Em menor número estiveram presentes
representantes da Vale S.A. e do Ibram. Já os sindicatos, movimentos sociais e
ONGs setiveram praticamente ausentes nessas discussões.
Apesar de os movimentos sociais lançarem
a campanha “Queremos debater o novo Código da Mineração”, até a sua
apresentação ao Congresso não se teve sequer acesso à proposta. O governo
recebeu alguns movimentos já às vésperas da apresentação da proposta, mas não
publicizou o texto e nem se comprometeu com as reivindicações que vinham da
sociedade civil.
É sabido que as empresas tiveram acesso à
proposta, conforme foi divulgado na imprensa e em seminários do setor
empresarial. As empresas conseguiram negociar detalhes da proposta antes do seu
envio ao Congresso, como, por exemplo, a questão da taxação especial e a
alíquota dos roylaties. Isso mostra que os interessados não foram tratados de
forma equitativa, dando-se prioridade ao setor empresarial.
É preciso alterar o Código da Mineração,
considerando que foi elaborado há 40 anos?
Sim, é preciso. O Código atual foi
elaborado pela ditadura e traz consigo as marcas desse período autoritário,
tanto do ponto de vista da sua forma política como na maneira de entender os
territórios e territorialidades.
Por exemplo, na época da elaboração do
Código atual, o Brasil não era signatário da Convenção 169 da OIT, que garante às
comunidades indígenas e tradicionais o direito de serem consultados previamente
de forma livre e informada sobre a instalação de grandes empreendimentos em
seus territórios. Hoje o Brasil é signatário e deveria obrigatoriamente levar
isso em conta.
Naquela época, todo o debate sobre
direitos da natureza, mudanças climáticas, bens comuns, se encontrava muito
incipiente. Hoje já se sabe dos impactos potenciais de seguir desenvolvendo
esse modelo de extrair mais, produzir mais, consumir mais e jogar mais coisas
no lixo. Está claro que vivemos em um mundo finito, onde não é possível seguir
crescendo infinitamente.
Por fim, uma mudança fundamental e
necessária em um período democrático é construção de vias de acesso para a
cidadania influir no planejamento do setor. É óbvio que o debate sobre se o
minério de ferro brasileiro vai acabar em 80 ou 600 anos é do interesse de
todos. Sob o marco da nova Constituição Federal, chamada por muitos de
Constituição Cidadã, devemos construir um código da mineração mais democrático
do que o apresentado pelo marechal Humberto
de Alencar Castello Branco.
Quais são as propostas do atual projeto
de lei que propõe alterar o Código da Mineração?
Há basicamente modificações
significativas em três dimensões na proposta atual frente à antiga. Uma mudança
processual, uma fiscal e uma organizativa.
A primeira diz respeito ao processo de
concessão dos direitos minerários e significa uma melhora com relação ao Código
atual. O mecanismo de prioridade, onde quem faz o requerimento minerário
primeiro (mesmo pessoas físicas) fica com a licença para pesquisas e explorar os minérios, será substituído por
um sistema de emissão de licenças similar ao modelo de concessões petrolíferas,
onde o governo estabelece os blocos a concessionar e as empresas concorrem para
conseguir a operação nessas áreas.
Outra mudança diz respeito à arrecadação
da Compensação
Financeira pela Exploração de Recursos Minerais –CFEM, que poderá ter
alíquota máxima de 4% e incidirá sobre a receita bruta das empresas. Atualmente
a CFEM incide sobre a receita líquida. Infelizmente, aqui houve um
recuo importante do governo frente às empresas, pois abaixou a alíquota máxima
de 6% para 4% e retirou da proposta a taxação especial para minas de alta
lucratividade.
O governo propõe a extinção
do Departamento Nacional de Produção Mineral e a sua substituição por
uma Agência Reguladora, que se responsabilizaria pela normatização e
fiscalização do setor. Cria também o Conselho Nacional da Mineração,
composto apenas por ministros indicados pelo presidente da República e dá mais
poderes para o Serviço Geológico Nacional – CPRM na
pesquisa e gestão das informações geológicas do Brasil.
Acredito que algumas dessas mudanças
apontam em um sentido positivo, de um pouco mais de controle público sobre a
operação privada do setor. Mas pensando a questão da mineração em seu conjunto
e mesmo comparando com as normativas de outros países, vemos que essas medidas
são bastante insuficientes.
Quais são suas principais críticas ao
projeto de lei que propõe alterar o Código da Mineração?
O Código trata a mineração apenas como um
negócio. Nem sequer considera que está regulando um bem comum natural, finito e
não renovável. Nesse sentido, penso que o Código da Mineração pode ter uma
dimensão mais perversa do que o Código Florestal, pois se trata de ações
irreversíveis. Em certa medida, em um governo menos dominado pelos ruralistas,
poder-se-iam alterar os limites de proteção das florestas para uma área maior
do que a anterior às mudanças propostas no Código Florestal e, com o passar do
tempo, reflorestar essas áreas. Com a mineração não. Não há segunda safra na
mineração. O que se avançar sobre as reservas de minérios do país,
exportando-as, será um avanço irrecuperável.
Outra crítica tão importante quanto à
primeira é que não há qualquer menção a pessoas ou comunidades na proposta: é
um código desumano, por assim dizer. As pessoas não aparecem nem como
trabalhadores de um dos setores econômicos que mais mata, mutila e enlouquece
seus operários, nem como os afetados pela mineração nos territórios que têm
suas roças inviabilizadas pela contaminação das águas ou pela apropriação do
solo. Mais uma vez fica claro que é a regulação de um negócio e não de uma
atividade com todas as suas implicações.
Um terceiro problema, que complementa e
intensifica os anteriores, é a total privatização dos bens naturais. Após a
privatização do Sistema Mineral Brasileiro na década de 1990, os
recursos minerais apenas formalmente são bens da União, enquanto não estão
sendo explorados. Quando se inicia a exploração mineral, quem decide como,
quanto e em que ritmo os minérios devem ser extraídos são as empresas privadas,
levando em conta apenas as dinâmicas do mercado. Em muitos casos são empresas
estrangeiras que determinam o planejamento sobre a produção mineral como, por
exemplo, na extração de ouro, na qual 80% da extração é feita por empresas de
fora do país. Não há um controle público sobre a extração e isso dificulta que
os benefícios advindos daí retornem para a sociedade brasileira.
Quais são as reivindicações do Comitê
Nacional em Defesa dos Territórios frente à Mineração?
A reivindicação número 1 é a retirada do
regime de urgência. Se o governo mantém a proposta tramitando nesse regime,
interpretaremos como uma falta de compromisso com o diálogo e o debate. A
manutenção do regime de urgência inviabiliza a participação da cidadania e das
comunidades afetadas na discussão.
Até aqui elaboramos sete pontos mínimos
que, acreditamos, devem ser inseridos no debate. São eles: Democracia e transparência
na formulação e aplicação da política mineral brasileira; direito de consulta,
consentimento e veto das comunidades locais afetadas pelas atividades
mineradoras; definição de taxas e ritmos de extração, de acordo com
planejamento democrático; delimitação e respeito a áreas livres de mineração; controle dos
danos ambientais e estabelecimento de Planos de Fechamento de Minas com contingenciamento
de recursos; respeito e proteção aos Direitos dos Trabalhadores; garantia de
que a Mineração em Terras Indígenas respeite a Convenção 169
da OIT e esteja subordinada à aprovação do Estatuto dos Povos
Indígenas.
Essas propostas vêm dos territórios
afetados, dos movimentos sociais do campo e da cidade, de pensadores de nossas
universidades e ONGs, que compõem o Comitê Nacional em Defesa dos
Territórios Frente à Mineração.
Diz respeito a questões muito concretas
envolvendo a mineração no país. Em torno delas temos debatido e apresentado
emendas ao projeto na Câmara Federal. É evidente que esses são temas que não
podem ficar de fora e representam muitas entidades e movimentos sociais do
Brasil.
(Foto: Agência Vale)
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