O que move um brasileiro urbano, não índio, a agregar “guarani kaiowa” ao seu nome no Twitter e no Facebook?
Revista Época
No
início de outubro, a carta de um grupo de guaranis caiovás de Mato Grosso do
Sul provocou uma mobilização, em vários aspectos inédita, na sociedade
brasileira. No texto (escrevi sobre isso aqui), os índios, ameaçados de despejo por ordem judicial,
declaravam: “Pedimos ao Governo e à Justiça Federal para não decretar a ordem
de despejo/expulsão, mas decretar nossa morte coletiva e enterrar nós todos
aqui”. A carta foi divulgada pelo Twitter e pelo Facebook, gerando uma rede de
solidariedade e de denúncia das violências enfrentadas por essa etnia indígena.
Desta rede, participaram – e participam – milhares de brasileiros urbanos. Para
muitos deles, este foi o primeiro contato com o genocídio guarani caiová,
apesar de o processo de extermínio da etnia ter se iniciado muito tempo antes.
De repente, pessoas de diferentes idades, profissões e regiões geográficas
passaram a falar diretamente com as lideranças indígenas, no espaço das redes
sociais, sem precisar de nenhum tipo de mediação. E de imediato passaram a
ampliar suas vozes. A partir dessa rede de pressão, as instituições – governo
federal, congresso, judiciário etc. – foram obrigadas a colocar a questão na
pauta. Depois de dias, em alguns casos semanas, a imprensa repercutiu o que
ecoava nas redes. Alguns dos grandes jornais enviaram repórteres para a região,
colunistas escreveram artigos com diferentes pontos de vista. O movimento de
adesão à causa guarani caiová nas redes sociais – sua articulação, significados
e consequências – é um fenômeno fascinante. E, por sua força e novidade, traz
com ele uma série de questões que possivelmente precisem de muito tempo para
serem respondidas – e que não têm uma resposta só.
Esta
coluna se propõe a pensar a principal marca desse movimento: a adesão pelas hashtags
“#SouGuaraniKaiowa”/“#SomosTodosGuaraniKaiowa” e pelo acréscimo de “Guarani
Kaiowa” ao primeiro nome das pessoas no Twitter e no Facebook. Exemplo: “Luísa
Molina Guarani Kaiowa”. Hashtag
é, na prática, uma espécie de slogan usado para marcar uma posição
compartilhada e replicada, indexada pelos mecanismos de busca e medida nos
“trending topics” (frases mais publicadas) do Twitter. Sempre começa por “#” e
não admite separação das palavras. Nas redes sociais, a grafia de guarani
caiová obedece à forma como os indígenas escrevem a sua língua no cone sul –
com “k” e “w”, em vez de “c” e “v”.
A
frase-conceito “Sou Guarani Kaiowa” se disseminou nas redes sociais e
multiplicou-se em vídeos no YouTube. Até mesmo Mia Couto, grande escritor
moçambicano, declarou em vídeo, ao passar pelo Brasil semanas atrás: “Venho de muito
longe, mas não há longe em uma situação em que um povo está sujeito ao
genocídio. Portanto, neste aspecto, eu também sou guarani caiová, sou
brasileiro e estou sendo vítima do mesmo genocídio. Não posso ficar
calado”.
Algumas
pessoas – tanto públicas quanto anônimas – desqualificaram essa marca como
modismo. Consideraram ridículo o fato de brasileiros urbanos e não índios se
apresentarem como guaranis caiovás nas redes sociais. Outras querem entender o
que isso significa, o porquê de alguém, afinal, passar a dizer que também é
índio e colocar o nome da etnia como sobrenome nas redes. Vários leitores têm
me indagado neste sentido, com o propósito tanto sincero quanto legítimo de
compreender um fenômeno recente do país em que vivem.
A
questão é mais complexa do que pode parecer a princípio: afinal, o que é ser ou
o que torna alguém um alguém? O que seria, por exemplo, ser brasileiro e o que
torna alguém brasileiro? No caso das redes sociais, o que significaria este
“Sou Guarani Kaiowa”? Penso que, diante do novo – ou mesmo do velho –, o
primeiro movimento para começar a compreender algo é escutar, com muita
atenção. Neste caso, o que dizem aqueles que anunciam, de diferentes lugares
geográficos e simbólicos: “Sou Guarani Kaiowa”.
Para as
primeiras pistas sobre essa questão, convidei pessoas que participaram dessa
mobilização nas redes sociais a darem seus depoimentos aqui: Luísa Molina,
Eduardo Viveiros de Castro, Marcia Tiburi, Idelber Avelar, Pádua Fernandes,
Rita Almeida e Marina Silva. Ou, conforme seus nomes no Twitter:
@lupontesmolina, @nemoid321, @marciatiburi, @iavelar, @paduafernandes,
@ritacaalmeida e @silva_marina. Eles são alguns entre os milhares que ajudaram
a construir os sentidos dessa marca. Sentidos que, claro, seguem em construção.
A
seguir, eles respondem a duas perguntas:
1) O
que significa dizer nas redes sociais “Sou Guarani Kaiowa”, assim como
acrescentar “Guarani Kaiowa” ao próprio nome?
2) Por
que há um movimento tão forte e abrangente nas redes sociais neste momento,
quando o processo de genocídio dessa etnia indígena vem ocorrendo há
décadas?
Luísa
Molina, @lupontesmolina, antropóloga, 24 anos,
Brasília:
1) “Tenho
1.352 amigos no Facebook. Quase uma multidão virtual. Se hipoteticamente eu os
reunisse na Praça dos Três Poderes, em Brasília, e vestisse uma camisa,
carregasse uma bandeira ou mesmo escrevesse no meu rosto ‘Guarani Kaiowa’,
haveria tanto estranhamento, tanta reação adversa e alheia ao propósito do meu ato,
como há quando mudo o meu nome para ‘Luísa Molina Guarani Kaiowa’ naquela rede
social?
Não. E
a resposta para isso é muito simples: todos estão acostumados com multidões na Praça dos Três
Poderes, camisetas, bandeiras e rostos pintados. Há quantas décadas se vê nas
ruas, nas notícias e até nos livros de história manifestações dessa forma? Está nesse caráter
‘costumeiro’, que para mim virou um vício
da forma, um dos elementos principais para o estranhamento e as
críticas sobre o novo ativismo que têm emergido nos últimos anos, e o lugar das
redes no envolvimento de pessoas com ‘causas’ diversas. Mas não se deve
concluir daí que uma forma deva ou vá substituir a outra; notemos apenas que
algo novo está surgindo – é inegável.
E,
felizmente, não é apenas na forma ou nos espaços (praça pública ou rede social)
de agir que essa renovação está se dando. Firmar junto ao meu nome e afirmar em
meio à multidão virtual ‘Eu sou Guarani Kaiowa’ ou ‘Somos todos Guarani Kaiowa’
é, para mim, a manifestação de uma nova ideia, ainda embrionária, por trás do
envolvimento com o que se chama de ‘questões sociais’. Não é uma identidade
(eu, branca, agora ‘índia de butique’). É justamente a dissolução de uma
barreira velha, produto de outro vício muito arraigado: a redução da reflexão
sobre diversidade ao problema da identidade. Este é um ponto crucial para que
se entenda o propósito por trás dessas fortes sentenças ‘eu sou’, ‘somos
todos’. É com essa força que, com responsabilidade, ‘brincamos’ – para que
aqueles que só veem cara, vejam milhares de caras então, como os tantos Guy
Fawkes que apareceram em V de Vingança e se proliferaram em grandes
manifestações mundo afora. É preciso entender que, neste momento, não é a
identidade que importa: os caiovás continuam se entendendo e querendo ser
caiovás, e eu continuo sendo branca, sem pretensões de ‘virar índia’, e
continuo não tendo pistoleiros à minha porta.
E não
preciso ter pistoleiros no quintal para sentir o impacto de saber o que os
guaranis caiovás vivem há tanto tempo. Como não preciso ser negra para defender
cotas raciais. Equacionar ‘ser’ para ‘poder’, desta forma, além de empobrecer
nosso pensamento, nos separa, coloca ‘cada um no quadrado’ de sua identidade e,
assim, nos enfraquece. A meu ver, ao afirmar ‘eu sou’, ‘somos todos’, nós
conseguimos, em grande medida, inverter essa lógica. E, para mim, usá-la no
Facebook é como abordar a política como algo que se faz no cotidiano: pois
firmando e afirmando ‘sou Guarani Kaiowa’ eu me posiciono e posso, a partir
daí, dialogar com outros. Minha esperança é de que essa nova ideia de ‘somos
todos’ derrube de vez o apego aos ícones e às bandeiras – frutos do velho
problema da identidade e da separação das causas.”
2) A
resposta pode partir do próprio histórico do genocídio: a ação violenta dos
brancos do Mato Grosso do Sul, do governo federal (pelo SPI – Serviço de
Proteção aos Índios – e mais tarde pela Funai) e do governo local fortaleceram
uma postura e um imaginário anti-indígena que vigora até hoje, em maior ou
menor grau, a depender da região. E também não é de hoje que o
desenvolvimentismo do Brasil atropela o modo de vida de minorias. Além de, na
prática, minar e eliminar os indígenas por não vê-los como sujeitos de
direitos, e sim como obstáculos para o projeto de nação, o discurso oficial e
os seus veículos midiáticos sempre blindaram a possibilidade de se expor de
modo democrático e responsável a realidade e o ponto de vista das
minorias.
Acredito
que essa barreira está sendo furada pelas redes sociais. As múltiplas possibilidades
de compartilhar informação permitem, agora, que vozes antes restritas a
pequenos grupos circulem amplamente e transponham, inclusive, as fronteiras do
país, alcançando outros sujeitos com os quais os indígenas podem dialogar e
agir junto. E assim foram realizados dezenas de atos de apoio aos guaranis
caiovás, no Brasil e no exterior. Isso não quer dizer, necessariamente, que
haja mais consciência hoje sobre a situação dos povos indígenas no Brasil, ou
que a população, em geral, esteja mais sensível aos direitos desses sujeitos.
Mas acredito que avançamos em termos de possibilidade de informação, apreensão
e ação com a participação cada vez mais ampla das pessoas nas redes sociais e
das redes sociais na política do dia a dia”.
Marcia
Tiburi, @marciatiburi, 42 anos, filósofa e escritora:
1)
“Significa, a meu ver, o ato de solidarizar-se com aqueles que são socialmente
injustiçados. Os conservadores tratarão isso como ‘modinha’, pois sabem que a
solidariedade é perigosa para um sistema baseado na competitividade. A
solidariedade não é uma aliança com o simplesmente igual, mas o desejo da
diferença, em nome da diferença. Atitudes como essa manifestam um outro desejo,
o de fazer comunidade com o diferente. Não com o igual. Em outras palavras, não
se trata de defender o próprio direito apenas, mas o direito dos outros com os
quais as pessoas se relacionam por ‘não identidade’, mas, ao mesmo tempo,
identificando-se com a causa. A meu ver isso é um avanço em nossa sociedade.
Assim, as pessoas assumem o nome como quem usa uma tarja, um panfleto de
admiração, respeito e de horror à injustiça.”
2)
“Somente agora, depois de 30 anos da Abertura política, os brasileiros começam
a sentir que podem pensar diferente. Que é possível também dizer o que se pensa
quando se faz crítica social. Antes, as condições para a exposição da própria
opinião eram ainda mais apavorantes do que hoje. Se hoje há uma ditadura
capitalista que se apresenta toda escamoteada, antes havia uma ditadura
militar, o que tornava tudo pior. Creio que estejamos entendendo que a
liberdade de expressão é para todos. E que, numa democracia, as pessoas podem
ficar do lado de quem quiserem.”
Eduardo
Viveiros de Castro, @nemoid321, 61 anos, antropólogo,
professor do Museu Nacional (UFRJ):
1) “A
significação desse gesto é manifestar solidariedade com alguém, pessoa ou
comunidade que precisa de apoio e não está tendo seu nome, sua causa ou sua dor
devidamente divulgados por quem deveria fazê-lo. É uma forma de protesto, de
identificação pública com quem não está sendo ‘publicado’. Um modo de chamar a
atenção para uma pessoa, um povo ou uma causa que está sendo deliberadamente
calado pela mídia, ou está sendo alvo de uma campanha de difamação. Alguém cujo
direito a ser ouvido não está sendo respeitado pelos poderes constituídos.
Pôr o
nome dos guaranis caiovás como parte do seu próprio identificador nas redes é
como carregar uma faixa. Ou como fazer uma tatuagem. Chamo a atenção para o
fato de que a troca de nome entre indivíduos, como modo de instituir uma
relação social entre não parentes, marcar a criação de um laço de aliança e
amizade, era uma prática comum entre os ancestrais dos caiovás, os povos
Tupi-Guarani do século XVI, aqueles que receberam (tão bem, para sua desgraça)
os invasores europeus nas praias do Brasil. Uma das etimologias mais prováveis
da palavra ‘xará’ é o tupi ichê
rera, ‘meu nome’, isto é, diz-se de alguém que tem o mesmo nome que
eu, porque eu lhe ‘dei’ meu nome e ele me ‘deu’ o seu.
Compartilhamos
nomes porque somos um só, somos a mesma pessoa. O gesto de pôr ‘Guarani Kaiowá’
como parte do próprio nome parece-me assim especialmente significativo, por
essa feliz coincidência de que é (ou foi) uma prática especialmente
significativa para os próprios índios. Chamar-se ‘Fulano Guarani Kaiowá’ é como
pôr os guaranis caiovás como parte da família, ou melhor, ver-se como parte da
família dos guaranis caiovás”.
2) “Não é
a primeira vez, diga-se, que a causa indígena, a tragédia indígena que é a
violação sistemática dos direitos desses povos pelo Estado brasileiro e por
seus donos, as elites econômicas e sociais, é encampada pela opinião pública
urbana. A criação do Serviço de Proteção aos Índios, em 1910, foi resultado
mais ou menos direto da indignação causada por um artigo do diretor do Museu
Paulista, Hermann Von Ihering, que pregava a extinção programada dos índios
brasileiros. A criação do Parque Indígena do Xingu, em 1961, também teve grande
apoio popular. Neste último caso, como aliás no primeiro, o envolvimento
positivo da imprensa foi importante.
O caso
agora é inverso. O agronegócio, representado no Legislativo pela chamada
‘bancada ruralista’ e nos meios de comunicação por muita gente, é o setor da
sociedade brasileira responsável pela campanha negativa contra os indígenas
desencadeada nos últimos meses. O que temos hoje, portanto, é o poder das redes
sociais: a tomada de novos canais de comunicação, ainda fora do controle
imediato do sistema de poder nacional, pelas classes médias urbanas e por
frações significativas das classes populares.
Pela
primeira vez, esse povo indígena está conseguindo ser visto e ser ouvido
diretamente por nós, os distraídos, os transeuntes, os bem-intencionados mas
sempre muito ocupados, os cidadãos desse triste Brasil grande e moderno, que ou
não sabíamos o que se passava com esses outros brasileiros a quem devemos
tanto, ou sabíamos mas fingíamos que não sabíamos, ou sabíamos mas não sabíamos
que podíamos fazer alguma coisa a respeito. Agora sabemos”.
Idelber
Avelar, @iavelar, 44 anos, professor de literatura na
Universidade Tulane, em Nova Orleans, Estados Unidos:
1) “É um
gesto bonito, porque pressupõe uma identificação com o outro, uma tentativa,
ainda que mínima e simbólica, de colocar-se no lugar do outro. É como se
estivessémos dizendo: enquanto estas atrocidades estiverem sendo perpetradas
contra os guaranis, todos, inclusive os que lucram com elas, se tornam menos
humanos. Lembremos que é um gesto que tem certa tradição na canção brasileira
(ver, por exemplo, ‘Tubi Tupy’, de Lenine, ou várias canções de Caetano, entre
elas ‘Sou você’, ‘Eu sou neguinha’ e ‘O quereres’). Tem também larga história
nos movimentos de solidariedade à Palestina, que foi onde eu o encontrei pela
primeira vez. A crítica que normalmente se faz, a de que é uma ‘moda’ que arrasta
gente que ‘não sabe nada’ sobre a causa, é tola: o gesto é, também, uma porta
de entrada para que muita gente se informe sobre a desesperadora situação no
Mato Grosso do Sul.”
2) “É
verdade que o genocídio está acontecendo há décadas (há séculos, poderíamos
dizer), mas também é verdade que a situação se deteriorou muito nos últimos
dois anos, se não no aspecto material – este, para os guaranis, continua tão
ruim como antes –, pelo menos nas dimensões política e simbólica. O agronegócio
está bem mais ousado em seu ataque aos indígenas. A coalizão que dava
sustentação ao lulismo, na qual ainda havia algum espaço para lutar pelos
direitos ameríndios, foi substituída por um governo que é claramente hostil aos
índios, dado o seu caráter mais tecnocrático e desenvolvimentista. Os casos se
acumulam: o ataque da Polícia Federal aos mundurucus; a portaria 303, clara
afronta aos povos nativos; a intensificação da obsessão barrageira; a demissão,
sem qualquer explicação, do cacique Megaron da Funai; a falta de diálogo com os
representantes dos povos indígenas; a completa ausência de consideração pelos
seus reclamos no caso da usina de Belo Monte; o visível esforço para se aprovar
algo que nem a ditadura conseguiu, mineração em terras indígenas; a troca na
direção do Ibama, ocasionada por Belo Monte; entre vários outros exemplos. A
solidariedade aos guaranis tem lugar, então, num contexto mais amplo, de
recrudescimento da luta.
As
redes foram fundamentais neste movimento e têm suprido, já há algum tempo, uma
lacuna da imprensa brasileira. Com raríssimas e honrosas exceções, a imprensa
tem coberto mal a situação dos guaranis e a realidade dos indígenas brasileiros
em geral. As redes possibilitaram, por exemplo, que as próprias lideranças
guaranis testemunhassem sobre sua situação e que circulassem notícias, fotos e
depoimentos em tempo real, com toda a dramaticidade que isso acrescenta à
questão. Como veterano das primeiras gerações de blogueiros, sempre fui
entusiasta das possibilidades abertas pela internet, mesmo que o impacto que um
dia tiveram os blogues tenha hoje se deslocado para formatos mais instantâneos,
como o Twitter e o Facebook. É claro que as redes não substituem a luta
presencial, nas ruas, mas não há dúvidas de que oferecem a ela uma ferrramenta
poderosíssima.”
Pádua
Fernandes, @paduafernandes, 41 anos, professor de Direito
em São Paulo:
1)
“Trata-se de uma atitude de solidariedade e resistência. É certo que a maior
parte da população brasileira tem ascendência indígena, como eu mesmo, mas a
defesa desta etnia ameaçada não se trata apenas de uma homenagem à nossa
formação histórica. Trata-se de uma luta do presente que interessa a todos,
pois há um princípio fundamental que está sendo ferido, o da dignidade humana,
e há uma enorme riqueza que está sendo destruída em nome do ouro, tantas vezes
falso, do agronegócio: a riqueza da diversidade, ambiental e humana. Sem a
dignidade e a diversidade, não teremos futuro.
Recentemente,
foram veiculados discursos que, contra toda evidência científica, tentam
sustentar que os índios não existem mais ou querem deixar a condição indígena,
em uma espécie de extermínio simbólico mascarado pela ‘marcha do progresso’,
que ocorre paralelamente às mortes no campo. Trata-se de uma propaganda que pressupõe
a ideia de que o genocídio dos índios no Brasil já teria se cumprido, numa
espécie de gozo perverso pela consumação de um crime contra a humanidade.
Afinal, se não houvesse mais índios, já não teria mais sentido a proteção a
suas terras dada pela Constituição de 1988, que ficariam livres para a ação de
grileiros e empreiteiras. É isso o que se cobiça.
Os
ataques às terras indígenas, bem como o alto índice de suicídios nessa
população, mostram que continua a ocorrer o crime de genocídio nos termos da Convenção
da ONU de 1948 e da lei nº 2889/1956. Lembro aqui que comete esse crime,
considerado hediondo pela lei nº 8072/1990, quem, entre outras ações, ‘submeter
intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a
destruição física total ou parcial’. É o que está a ocorrer com a etnia guarani
caiová, e é, segundo creio, o que se pretende com Belo Monte.”
2) “A
sociedade mudou, o que se deve à ação dos grupos historicamente discriminados.
O fato de as ideias eugênicas e racistas, ainda que presentes na sociedade
brasileira, não terem mais respeitabilidade intelectual também ajuda. Outro
fator positivo é o fato de a esfera pública ser hoje mais livre do que no
período da ditadura militar, época em que esses abusos não podiam ser noticiados
e a atual mobilização seria considerada um crime contra a segurança nacional.
Devemos
lembrar que, durante a ditadura, uma etnia como a uaimiri-atroari foi
provavelmente alvo de genocídio, que teria atingido duas mil pessoas do grupo.
Devido aos casos de abusos, neste mês de novembro, a Comissão Nacional da
Verdade criou um grupo de trabalho, presidido por Maria Rita Kehl, para apurar
violações de direitos humanos de pessoas que lutavam pela terra e de grupos
indígenas. Essa demanda pela justiça, de que a CNV é um exemplo, é um fator
novo e positivo, que denota mudanças na sociedade brasileira.”
Rita de
Cássia de Araújo Almeida, @ritacaalmeida, 43 anos, psicanalista,
blogueira, trabalhadora da rede CAPS/SUS Saúde Mental, em Juiz de Fora, Minas
Gerais:
1)
“Decidi mudar meu nome virtual a partir de um convite de mobilização no
feicebuque, por meio do qual tomei conhecimento da carta da comunidade guarani
caiová para o governo e a justiça do Brasil. O que mais me comoveu na carta foi
quando ela diz: ‘Decretem nossa morte coletiva, enterrem-nos aqui’. Sou uma
profissional da saúde mental do SUS, lido todos os dias com o sofrimento das
pessoas e não é incomum termos que lidar com essa radicalidade que é o desejo
ou o ato de uma pessoa de pôr fim à própria vida. E isso sempre acontece quando
a pessoa não enxerga nenhum caminho possível para sair do seu tormento. Quando
a única saída pensada pelo sujeito é a morte é porque o seu sofrimento é muito,
muito intenso, o que torna a nossa intervenção profissional extremamente
difícil e delicada, além de nos colocar diante de um enorme sentimento de
impotência e desimportância. Então, por me sentir sensibilizada com o
sofrimento daquelas pessoas, por pensar que, como profissional da saúde mental,
não poderia me silenciar, decidi participar da mobilização que era possível
para mim naquele momento: mudar meu sobrenome. A partir desse ato, comecei a me
interessar mais pelo tema, discutir e provocar o tema na minha rede de contatos
e compartilhar minhas impressões também fora do campo virtual.
Algumas pessoas criticam as relações virtuais porque pensam nelas como uma espécie de fumaça. Como se este tipo de experiência não tocasse nosso corpo, nossa vida, nosso cotidiano, mas que bobagem.... claro que tocam! No ambiente virtual nos apaixonamos, fazemos amizade, criamos conflitos, nos decepcionamos, aprendemos, desaprendemos, no meio virtual podemos ser educados, solidários, perversos, desinteressados, egocêntricos, paranoicos, engraçados... E podemos, sim, fazer manifestações e ativismo. Li, durante as últimas semanas, muitas opiniões, na própria internet, que criticavam essa iniciativa, debochando, menosprezando e até xingando os participantes do que eles chamam ‘ativismo de sofá’ ou ‘ativismo de butique’, como se fosse um ativismo de mentirinha. Já passou da hora de compreendermos que a internet e as redes sociais são formas vivas e legítimas de interação e comunicação, modos de fazermos laço social (como dizemos em linguagem psicanalítica), e, assim como qualquer outra forma de laço, têm suas virtudes e também limitações e mal entendidos. E nesses enlaçamentos podemos, sim, promover, entre tantas outras coisas, mobilizações vivas e potentes, que tanto podem permanecer apenas no campo virtual, quanto transbordar dessa virtualidade e ‘tomar corpo’.
A questão de incluir o sobrenome ‘guarani kaiowa’ não teve pra mim o sentido de identificação. Não sou uma índia, não sou uma guarani caiová, nem saberia ser. Obviamente, tenho consciência disso. Também sei que não sendo um deles não poderia me apropriar do discurso deles. Sendo assim, não me sinto autorizada a discursar por eles, para eles ou sobre eles, mas posso, sim, discursar com eles. Foi por isso que mudei meu nome, para participar da mobilização da maneira que pudesse participar, e porque entendi que, com este ato, poderia estar com eles de alguma maneira, compartilhando seu sofrimento e também sua luta por dias melhores. E afinal, essa também não é a luta de todos nós? Dias melhores?”
Algumas pessoas criticam as relações virtuais porque pensam nelas como uma espécie de fumaça. Como se este tipo de experiência não tocasse nosso corpo, nossa vida, nosso cotidiano, mas que bobagem.... claro que tocam! No ambiente virtual nos apaixonamos, fazemos amizade, criamos conflitos, nos decepcionamos, aprendemos, desaprendemos, no meio virtual podemos ser educados, solidários, perversos, desinteressados, egocêntricos, paranoicos, engraçados... E podemos, sim, fazer manifestações e ativismo. Li, durante as últimas semanas, muitas opiniões, na própria internet, que criticavam essa iniciativa, debochando, menosprezando e até xingando os participantes do que eles chamam ‘ativismo de sofá’ ou ‘ativismo de butique’, como se fosse um ativismo de mentirinha. Já passou da hora de compreendermos que a internet e as redes sociais são formas vivas e legítimas de interação e comunicação, modos de fazermos laço social (como dizemos em linguagem psicanalítica), e, assim como qualquer outra forma de laço, têm suas virtudes e também limitações e mal entendidos. E nesses enlaçamentos podemos, sim, promover, entre tantas outras coisas, mobilizações vivas e potentes, que tanto podem permanecer apenas no campo virtual, quanto transbordar dessa virtualidade e ‘tomar corpo’.
A questão de incluir o sobrenome ‘guarani kaiowa’ não teve pra mim o sentido de identificação. Não sou uma índia, não sou uma guarani caiová, nem saberia ser. Obviamente, tenho consciência disso. Também sei que não sendo um deles não poderia me apropriar do discurso deles. Sendo assim, não me sinto autorizada a discursar por eles, para eles ou sobre eles, mas posso, sim, discursar com eles. Foi por isso que mudei meu nome, para participar da mobilização da maneira que pudesse participar, e porque entendi que, com este ato, poderia estar com eles de alguma maneira, compartilhando seu sofrimento e também sua luta por dias melhores. E afinal, essa também não é a luta de todos nós? Dias melhores?”
2) “Não
sei dizer o motivo pelo qual essa mobilização aconteceu agora, talvez seja
porque a carta dos guaranis caiovás tenha realmente produzido um impacto, como
se ela fosse um grito tão alto que nós não pudéssemos mais fingir que não
ouvimos. Isso porque acredito que toda essa mobilização surgiu a partir da
divulgação da carta.
Sou militante do movimento antimanicomial (nascido há mais de 20 anos, quando ainda não havia internet). Durante décadas, os chamados doentes mentais ficaram encarcerados nos hospitais psiquiátricos, sofrendo maus tratos, tratamentos violentos e morrendo de desnutrição e diarreia por não terem direito às condições básicas de alimentação e saneamento. É claro que as críticas e descontentamento com esse modelo de tratamento já existiam, mas, no entanto, foi a partir de um episódio específico que o movimento de luta contra o modelo manicomial tomou corpo. Neste caso, o gatilho disparador foi a divulgação do documentário ‘Em nome da razão’, de Helvécio Ratton, que retratava a tragédia vivida pelos milhares de internos do Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais. O que quero dizer é que, em todo tipo de ativismo e movimento social, pode haver esse momento pontual a partir do qual um gatilho é disparado. Acredito que isso aconteceu também no caso dos guaranis caiovás, a partir da divulgação da carta.”
Sou militante do movimento antimanicomial (nascido há mais de 20 anos, quando ainda não havia internet). Durante décadas, os chamados doentes mentais ficaram encarcerados nos hospitais psiquiátricos, sofrendo maus tratos, tratamentos violentos e morrendo de desnutrição e diarreia por não terem direito às condições básicas de alimentação e saneamento. É claro que as críticas e descontentamento com esse modelo de tratamento já existiam, mas, no entanto, foi a partir de um episódio específico que o movimento de luta contra o modelo manicomial tomou corpo. Neste caso, o gatilho disparador foi a divulgação do documentário ‘Em nome da razão’, de Helvécio Ratton, que retratava a tragédia vivida pelos milhares de internos do Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais. O que quero dizer é que, em todo tipo de ativismo e movimento social, pode haver esse momento pontual a partir do qual um gatilho é disparado. Acredito que isso aconteceu também no caso dos guaranis caiovás, a partir da divulgação da carta.”
Marina
Silva, @silva_marina, 54 anos, ambientalista, professora de
História, ex-ministra do Meio Ambiente, ex-senadora, ex-candidata à presidência
da República
1) “Há
poucos dias assinei assim (Marina Silva Guarani Kaiowa) um artigo no qual
expliquei o significado que essa ‘identidade’ tem para mim. Comparei com o que
fazíamos, nas assembleias do movimento estudantil, nos anos 70, início dos 80,
quando respondíamos ‘presente’ sempre que era citado o nome de algum líder
assassinado. É uma declaração de que os companheiros permanecem vivos, em nós,
que prosseguimos com seu trabalho e sua luta.
São
milhares de guaranis caiovás mortos, nos últimos anos, por assassinato ou
suicídio. As pessoas estão comovidas com a situação deles, querem declarar que
são solidárias, que se ‘identificam’ e se importam com eles. Isso é muito
significativo, porque representa uma consciência de que somos um só povo,
formado de muita etnias, mas somos todos brasileiros, latino-americanos,
humanos, e devemos uma reparação e um desagravo às parcelas que foram
historicamente excluídas, oprimidas e humilhadas.
E há
mais: essa solidariedade ao povo indígena em situação mais dramática acontece
num momento em que mais de 1 milhão de pessoas assinaram o pedido de veto às
mudanças no Código Florestal, em que milhares se mobilizaram na defesa da
floresta, em defesa das comunidades afetadas pela construção da usina de Belo
Monte, além das mobilizações que tivemos durante a Rio+20.
A
identidade com os guaranis caiovás, portanto, não é um modismo, é uma
demonstração de mudança nos sentimentos e na consciência de uma ampla parcela
da população, que está atenta ao que acontece, e se posiciona. Quer dizer que,
em situações em que a dignidade humana é ultrajada, a resposta à pergunta ‘por
quem dobram os sinos’ continua sendo a mesma dada pelo deão da catedral de
Saint Paul: ‘eles dobram por todos nós’.”
2) O que
iniciou essa manifestação foi a carta da comunidade de Pyelito Kue/Mbarakay,
recusando-se a ser expulsa das margens do rio Hovy, dizendo que ficariam lá até
morrer. A carta expõe a situação terrível em que eles se encontram e não é mais
alguém falando por eles, um órgão de governo ou uma ONG. São eles mesmos
gritando ao mundo por socorro. E o grito deles é comovente, porque vem da alma
e do coração, não é um ‘análise’, não é uma política, não é um discurso. É a
palavra, ao mesmo tempo sábia e desesperada, de alguém que sabe que vai morrer.
‘Ave Cesar’ foi o que eles nos disseram. E para não ficar no lugar de César,
que os condena à morte, queremos ficar ao lado deles.
Por que
agora? Porque temos um acúmulo de informação, de consciência. E porque se
tornou visível o retrocesso socioambiental promovido pelos setores mais
atrasados do ruralismo, com apoio ou conivência do governo. Desfiguraram o
Código Florestal, desmontaram programas de controle ambiental, enfraqueceram os
órgãos de gestão, negaram os direitos das comunidades tradicionais. Ou seja:
estão passando com o trator sobre a floresta e as comunidades que nela vivem. As
pesquisas mostram um aumento na consciência e na adesão das pessoas às causas
socioambientais. Elas sabem que os grandes desastres que acontecem – as
enchentes e secas, furacões e maremotos – são mais frequentes agora por causa
do aquecimento global. Sabem também que é preciso prevenir, adaptar-se,
socorrer e minimizar as consequências desses desastres. E um número cada vez
maior de pessoas passa a compartilhar a ideia de que o desenvolvimento
econômico não é um simples ‘crescimento’ – ele pode ser politicamente
democrático, economicamente próspero, ambientalmente sustentável, culturalmente
diverso e socialmente justo.
O
Brasil vive um momento especial, em que o atraso político, com a falência do
sistema partidário e a sua corrupção endêmica, torna-se visível para a maioria
da população. A internet tem sido importante para que as informações circulem e
alcancem um público maior. Então a juventude, sempre querendo dar um passo à
frente, usa as redes sociais, blogs, sites e todo o instrumental da internet para
focar nas questões que dizem respeito às ameaças que vivemos no presente e ao
que podemos fazer para superá-las e garantir que tenhamos um futuro melhor ou,
pelo menos, algum futuro.
Como
educadora, aprendi uma coisa: só é possível ensinar algo aos jovens se
estivermos dispostos a também aprender com eles. O mesmo vale para a sociedade
brasileira, que precisa ter humildade para aprender lições essenciais com os
povos indígenas. Por isso somos todos guaranis caiovás. Aliás, todos somos,
mesmo que alguns não saibam ou não gostem disso.”
Perguntei
ainda ao guarani caiová Tonico Benites, nome indígena “Ava Vera Arandu”, o que
significa “ser guarani caiová”. Aos 40 anos, ele é doutorando em antropologia
no Museu Nacional (UFRJ) e porta-voz da “Assembleia Geral Aty Guasu Guarani e
Kaiowa”. Vive em Dourados, no Mato Grosso do Sul. Tonico Benites/Ava Vera
Arandu respondeu: “Ser guarani caiová significa pertencer a determinadas terras
específicas e sobretudo ser interlocutor dos guardiões dos recursos naturais,
mantendo uma relação de respeito mútuo. Significa ser lutador/guerreiro
irrenunciável pelo pedaço de terra antiga em que estão enterrados seus
antepassados. E, se for preciso, se sacrificar e morrer com honra pelas terras
de seus ancestrais. Ser guarani caiová significa ser um ser insistente que luta
pela realização dos sonhos coletivos. Ser guarani caiová significa ser crente e
profeta que luta e reza hoje para que o futuro da nova geração seja melhor. Ser
guarani caiová significa criar alegria, sorrir muito e se ouvir atentamente.
Ser guarani caiová significa se aconselhar de forma repetitiva para não reagir
com violência às violências.”
Eliane
Brum escreve às segundas-feiras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário