Thiago
Pimenta - Portal EBC 12.04.2013
Gersem
Baniwa (Daiane Souza/UnB Agência)
Após
manifesto de funcionários da Funai por um plano de indigenismo
brasileiro, o Portal EBC entrevistou o indígena e doutor emantropologia Social,
Gersem Baniwa, que atualmente é professor da Universidade Federal do Amazonas
(UFAM).
Na
opinião de Gersem, que é originário do grupo indígena Baniwa (localizado
normalmente no noroeste do Amazonas), um plano indigenista passa previamente
por um projeto de nação do país, não podendo acontecer de forma dissociada:
“Quando observamos a difícil situação de vida dos povos indígenas, pelas
permanentes violações de seus direitos básicos, como o direito ao território e
à saúde, podemos acreditar que ou o Brasil ainda não definiu seu projeto de nação;
ou já definiu e neste projeto não há lugar para os povos indígenas”, destaca.
O
pesquisador, que já trabalhou em projetos no Ministério da Educação,
reconhece alguns avanços das ações do governo na área escolar e na saúde
indígena. O pesquisador reforça os esforços de gestores e técnicos que tentam
avançar nas políticas indigenistas, mas denuncia as pressões sofridas pelos
índios brasileiros por outros setores.
Confira
a entrevista por temas:
Portal EBC: Antes de tudo, em
que consiste um plano indigenista?
Gersem: Um
plano indigenista para o Brasil passa pela existência de um Projeto de Nação do
Brasil. Quando observamos a difícil situação de vida dos povos indígenas, pelas
permanentes violações de seus direitos básicos, como o direito ao território e
à saúde, podemos acreditar que ou o país ainda não definiu seu projeto de
nação; ou já definiu e neste projeto não há lugar para os povos indígenas.
Portal EBC: O texto da
Constituição de 88 reconhece aos indígenas o direito à organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições e dá a eles os direitos originários
sobre as terras que ocupam. Já a União é responsável por demarcar essas terras,
proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Não seria esse o começo desse
projeto?
Gersem: A
sociedade brasileira tentou dar sua contribuição por ocasião da Constituinte de
1988, assegurando direitos básicos que garantissem a continuidade étnica e
cultural dos povos indígenas, por meio dos direitos sobre suas terras
tradicionais e o reconhecimento de suas culturas, tradições e organização
social, além do reconhecimento da plena capacidade civil e de cidadania. Minha
hipótese é de que essas conquistas legais tinham relação com sentimento de
culpa pelos séculos de massacres e mortes impostos aos índios pelos
colonizadores, portanto, como medidas reparadoras do ponto de vista moral.
Mesmo
reconhecendo alguns avanços pontuais no campo da educação (acesso à educação
básica e superior ampliado), do direito à terra principalmente na Amazônia
Legal e de participação política (06 prefeitos e 76 vereadores indígenas), o
Estado continua passando por cima das cabeças e de caveiras dos povos indígenas
como acontece de forma escancarada e vergonhosa no Estado de Mato Grosso do
Sul, onde os índios Guarani-Kaiowá continuam sob fogo cruzado por fazendeiros e
políticos da região. Para as elites econômicas e políticas do país, os povos
indígenas continuam sendo percebidos e tratados como empecilhos para o
desenvolvimento econômico do país (que na verdade é o enriquecimento desses
grupos). Portanto, um plano indigenista brasileiro depende necessariamente da
clareza de que nação, sociedade e país se quer construir. Os povos indígenas só
terão chance se o Brasil assumir com seriedade a construção de um projeto de
nação baseada em uma sociedade pluriétnica, multicultural e solidária.
Portal EBC: Quais seriam os
pontos são mais importantes para um bom plano indigenista para o país?
Gersem: O
ponto mais importante de um plano indigenista é garantir as condições reais
para a garantia plena dos direitos indígenas, baseadas no protagonismo e na
cidadania dos indivíduos e coletividades indígenas. Somente a garantia desses
direitos pode garantir a continuidade étnica e cultural desses povos, por meio
de segurança territorial, segurança econômico-alimentar, política de educação
adequada e política de saúde eficiente. Isso também daria sinal de
que os povos indígenas podem ter seu espaço na sociedade brasileira. Percebemos
uma grande contradição na política indigenista atual: uma parte minoritária do
Estado (governo) que tenta adotar o discurso e a prática em favor dos povos
indígenas e a outras majoritária que ao contrário, adota discursos e práticas
anti-indígenas.
Portal EBC: Como você vê a
atual situação dos indígenas brasileiros? O que precisa mudar?
Gesem: Hoje
os povos indígenas do Brasil passam por uma situação muito difícil e ruim, com
violações constantes aos seus direitos e com a crescente violência física e de
morte que sofrem. Os dez anos seguintes à promulgação da CF de 1988 foram de
gradativo processo de conquistas de direitos concretos (demarcação de terras,
educação escolar, organização social e participação política) mas, os últimos
três anos foram de estagnação com forte tendência de retrocesso sem precedentes
para os povos indígenas. A leitura que faço é que o Estado (comandado
pelas elites políticas e econômicas) se arrependeu de reconhecer os direitos
indígenas e agora faz de tudo para, em primeiro plano, violar esses direitos e
em segundo plano, anular ou reduzir esses direitos. Ou é isso, ou o Estado está
assumindo sua incapacidade e incompetência para garantir os direitos dos povos
indígenas. As políticas existentes são completamente insatisfatórias. Estão
sempre voltadas para resolver ou minimizar problemas acumulados. As políticas
indigenistas continuam sendo autoritárias, paternalistas e tutelares. Embora o
Brasil tenha adotado a Convenção 169 da OIT, há anos, até hoje ela não foi
regulamentada. Neste sentido, um plano indigenista moderno precisa superar
seriamente a visão imediatista, autoritária e de descaso institucional. Precisa
ser construído um plano transparente e participativo de curto, médio e longo
prazo, com metas, objetivos e condições claros de implementação. O mais
importante é o plano indigenista ser do Estado e não apenas de um governo ou do
órgão indigenista.
Portal EBC: Que ações merecem
destaque na atual política indigenista?
Gersem: É
importante reconhecer que nos últimos houve esforços e tentativas do governo
federal em avançar nas políticas de atendimento voltadas para os povos
indígenas, principalmente após o fim do monopólio da política indigenista pela
Fundação Nacional do Índio (Funai), no início da década de 1990. O Ministério
da Saúde tem se esforçado para tentar responder às demandas indígenas. O
Ministério do Meio Ambiente iniciou experiências inovadoras ainda no final da
década de 1990 em apoio técnico e financeiro para projetos socioeconômicos
alternativos e autossustentáveis de comunidades indígenas na Amazônia. O
Ministério da Educação empreendeu esforços junto aos estados e municípios em
busca de melhorias no atendimento escolar às aldeias indígenas. Sem dúvida que
essas experiências das últimas duas décadas lograram avanços e êxitos parciais
e de algum modo contribuíram para a recuperação da autoestima e de esperança no
futuro dos povos indígenas, expressa por meio do crescimento demográfico desses
povos que está se aproximando de um milhão de indígenas no país (considerando
que na década de 1960 chegaram à cifra de 200.000 indígenas) e da presença
cidadã dos indígenas na vida do país. As experiências revelaram também questões
preocupantes, como as limitações do Estado no atendimento aos direitos e
anseios indígenas. Os gestores e técnicos de ministérios bem que tentaram
avançar nas políticas voltadas aos povos indígenas, mas percebe-se atualmente o
limite dessas possibilidades, diante do contexto político e econômico do país.
Essas possibilidades esbarram na falta de vontade política dos dirigentes
maiores em dar relevância às questões indígenas. Sem determinação política o
tema nunca entra na lista de prioridades do governo e, por isso, as instâncias
e estruturas que atuam junto a esses povos estão sempre esvaziadas, desestruturadas
e desqualificadas, sem recursos financeiros, sem equipes e sem condições
administrativas. Deste modo fica difícil assegurar os direitos indígenas que
ficam a mercê dos interesses econômicos anti-indígenas. Muitas vezes parece que
o governo se presta a servir aos interesses desses grupos.
Portal EBC: Como você avalia o
trabalho da Funai hoje?
Gersem: Nos
últimos dez anos a Funai tem se esforçado para estar ao lado dos povos
indígenas no enfrentamento dos problemas existentes nas aldeias, mas é um órgão
do Estado e dos governos, portanto, dominada pela incapacidade e ineficiência
institucional. É um órgão com eminência de falência institucional, por ausência
de força e crédito político, falta de recursos humanos, equipe reduzida e mal
preparada, e com infraestrutura arcaica. É evidente o processo de sucateamento
e enfraquecimento do órgão nos últimos anos, na mesma proporção em que as
oligarquias econômicas e políticas nos municípios e Estados se organizaram e se
fortaleceram contra os direitos indígenas. O enfraquecimento da Funai é o mais
claro exemplo do descompromisso do governo e do Estado para com a defesa e
garantia dos direitos indígenas no país. Com isso, os povos indígenas cada vez
mais estão à mercê e se tornam reféns de municípios, estados e grupos políticos
e econômicos hostis aos direitos indígenas. Isso deixa claro também a
necessidade de reorganização e fortalecimento do papel do governo federal na
defesa e garantia desses direitos.
Portal EBC: Como você vê a
atual atenção à saúde prestada aos indígenas?
Gersem: A
política de saúde indígena no Brasil é a que mais se esforçou na busca por um
plano mais adequado para o atendimento aos povos indígenas que teve início com
a implantação dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI´s), enquanto
uma etnoterritorialização do atendimento, o que é uma ideia inovadora com
grandes possibilidades. No entanto, tem sofrido como todas as demais políticas
indigenistas das profundas contradições e irracionalidades da política e da
administração pública brasileira. Recentemente foi criada a Secretaria Especial
de Saúde Indígena, como resultado de décadas de luta dos povos indígenas, mais
uma iniciativa relevante e, no entanto, foi neutralizada pelos gargalos
administrativos homogêneos da burocracia estatal pensada para atender as
realidades dos centros urbanos. Sem equipes e sem condições logísticas
adequadas, a política de saúde indígena está sendo um pesadelo para a saúde dos
povos indígenas. O mesmo acontece no campo das políticas de educação escolar
indígena, principalmente em regiões da Amazônia e do Nordeste, onde construções
de infraestrutura e transporte logístico básicas não são possíveis de serem
resolvidas pelos irracionais procedimentos licitatórios. O mesmo acontece com a
falta de recursos humanos qualificados para atuar nas aldeias ou próximo às
aldeias, pois as formas de contratação, temporárias ou de carreira, não são
adequadas, pois dificilmente profissionais qualificados se dispõem a trabalhar
nas aldeias com baixos salários pagos pelo poder público.
Portal EBC: Como você vê a
situação dos indígenas isolados e recém-contatados?
Gersem:
Entendo que esses povos apresentam consciência sobre a situação de não
estabelecerem contato permanente com a sociedade nacional e por isso devem ser
respeitados nessa decisão. Neste sentido, cabe ao Estado protegê-los, criar
condições de proteção sem ação interventiva ou esforço para estabelecer
contato, pois estes povos fazem parte da nação brasileira, ainda que
desconhecidos da população majoritária.
Portal EBC: Quais são as
maiores pressões sofridas pelos indígenas brasileiros? Quais são os agentes
dessas pressões?
Gersem: Na
atualidade, as maiores pressões aos povos indígenas vêm dos grupos ruralistas e
mineradores do país além, é claro, dos próprios agentes do Estado e das grandes
construtoras interessados pelos territórios indígenas e principalmente pelos
recursos naturais neles existentes. As principais ameaças vêm das elites
econômicas, principalmente ruralistas, na medida em que estão, a todo custo,
espoliando as terras indígenas. É importante afirmar que não é possível
garantir a continuidade etnocultural dos povos indígenas sem a garantia
territorial. Mas não podemos esquecer a outra ameaça que vem das igrejas
religiosas, que estão realizando, verdadeiros massacres culturais por meio de
suas imposições doutrinárias em detrimento das culturas e valores indígenas.
Portal EBC: De que forma essas
pressões podem ser aliviadas?
Gersem:
Primeiro, a partir de um ordenamento territorial, respeitando-se os direitos
constitucionais dos povos indígenas. No Brasil, é necessário se criar o hábito
e a cultura de se respeitar as leis e o Estado ou governos precisam criar
vontade e capacidades para exerceram o poder para zelar pelo cumprimento das
leis, indistintamente de classes, grupos sociais ou credos. Segundo, é
necessário respeitar a legislação nacional e internacional que asseguram a
participação e a consulta prévia e qualificada aos povos indígenas em qualquer
projeto ou programa governamental que lhes afetem. Em terceiro lugar, o que é
mais importante é a superação do preconceito histórico sobre os povos indígenas
de que são empecilhos para o desenvolvimento do país e a superação do racismo
que considera os povos indígenas como atrasados ou não civilizados. Não é
possível pensar o Brasil desenvolvido e civilizado enquanto não aprender a
respeitar e valorizar um dos seus três pilares étnicos, que formaram o povo e a
nação brasileira, que são os povos indígenas ou povos originários.
Portal EBC: As grandes obras
como a construção de hidrelétricas e rodovias também ameaçam os povos
indígenas?
Gersem: Sem
dúvida, depois da luta pela terra as construções de grandes obras ameaçam
seriamente a vida presente e futura dos povos indígenas, na medida em que
afetam diretamente os ecossistemas dos territórios indígenas que são
fundamentais para a sobrevivência física e cultural. É importante destacar que
os povos indígenas precisam integralmente de seus territórios, enquanto
ecossistemas integrados e abrangentes para perpetuarem suas culturas,
tradições, seus conhecimentos e seus modos de vida.
Portal EBC: Qual a sua opinião
sobre a recente militarização nessas grandes obras, como a presença da Força
Nacional no Complexo Tapajós?
Gersem: Acho
completamente desnecessária e mostra claramente a atitude arbitrária e autoritária
do governo. Mostra ainda total falta de sensibilidade e capacidade de diálogo
com o movimento social indígena. E o que mais assusta com essa atitude do
governo é a possibilidade de que o governo esteja radicalmente decidido a
seguir o discurso de em nome do “relevante interesse público” passar por cima
dos povos indígenas, ou seja, mais uma vez os povos indígenas podem pagar com
suas vidas o suposto bem estar da sociedade majoritária e pode no futuro
próximo estimular instabilidade social nas regiões e no país. Um diálogo
franco, transparente e democrático com os interessados deveria ser instituído
para mediar e solucionar conflitos de interesses. Nem sempre a força física e
militar é a melhor solução para muitos casos.
Portal EBC: A lei 5.371 diz que
a Funai deve exercer o poder de polícia nas áreas reservadas e nas matérias
atinentes à proteção do índio. Como você vê a questão do poder de polícia
conferido à Funai? A instituição deve ter autonomia ou deve recorrer a outros
órgãos de segurança pública?
Gersem: Em
primeiro lugar não tenho nada contra o poder de polícia da Funai, mas acho isso
completamente inviável pelas condições em que o órgão se encontra:
enfraquecido, desestruturado e principalmente sem equipe qualificada. Em
segundo lugar, é importante considerar o papel do estado brasileiro na defesa e
proteção dos direitos dos povos indígenas e, para isso, dispõe de vários
instrumentos e mecanismos institucionais, como Ministério Público, a Polícia
Federal e a Força Nacional e outros órgãos. Não acredito que somente uma Funai
armada irá resolver os problemas dela e dos povos indígenas, mas sim um plano
indigenista sério, forte e eficiente, com o peso e a responsabilidade do Estado
e dos governos.
Portal EBC: Um delegado da
Polícia Federal da Delegacia Vilhena, em Rondônia, sugeriu que a Funai fizesse
a regularização quanto ao porte de armas de fogo por parte dos servidores. Você
é contra ou a favor do porte de armas por funcionários da instituição?
Gersem: Em
primeiro lugar sou contra porte de armas para qualquer cidadão que não
represente órgãos de segurança pública, de modo que os funcionários da Funai só
deveriam portar armas caso eles exerçam poder de polícia, caso contrário sou
completamente contra.
Portal EBC: Na sua opinião,
qual é a maior urgência do indigenismo brasileiro?
Gersem: A
maior urgência é a definição clara de uma política indigenista para o país com
metas de curto, médio e longo prazo. Uma política que estabeleça com clareza o
lugar dos povos indígenas na nação brasileira. E para mostrar compromisso e
seriedade com esta política é fundamental a aprovação do Estatuto dos Povos
Indígenas que expresse este plano indigenista de curto, médio e longo prazo de
forma articulado. O governo federal precisa assumir a responsabilidade pela
defesa e proteção dos direitos desses povos, conforme determina a Constituição
Federal. Só uma atuação exemplar do governo federal pode tirar os povos
indígenas das mãos sanguinárias das elites econômicas, principalmente
ruralistas.
Portal EBC: Quais são as
perspectivas futuras para o indigenismo brasileiro?
Gersem: De
muita angústia, muita dúvida e muita luta na tentativa de evitar que mais uma
onda de genocídios volte a ser executada no Brasil. A esperança está em uma
geração de jovens indígenas que estão se formando nas academias brasileiras e
que ao longo dos próximos anos vão estar assumindo a liderança de suas aldeias
e seus povos e, em muitos casos, também ocupando espaços nos órgãos da
administração pública e nos poderes constituídos do país e que podem propor e
construir novas alternativas de resistência e sobrevivência dos povos indígenas
do Brasil. O grande desafio dessa nova geração de lideranças indígenas é
domesticar a hostilidade, a ambição, a vaidade e o senso de tirania dos grupos
políticos e econômicos que dominam as estruturas e as políticas do Estado e dos
governos. Mas tenho certeza que os povos indígenas continuarão sua histórica
luta de resistência mas também de fé por dias melhores em mundos melhores.
Edição:
Leyberson Pedrosa
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