"O
ideal seria que tivéssemos um avanço de hidrelétricas na nossa matriz, porque
elas são uma fonte mais barata e com emissão irrelevante de dióxido de carbono.
Vê-se também que os projetos hidrelétricos podem também atuar como vetores de
preservação ambiental. Mas temos visto muitas dificuldades. Se conseguíssemos
avançar com a construção de usinas hidrelétricas, mesmo que fossem a fio
d"água, já seria um grande progresso. Nem isso, em alguns casos, temos
conseguido. Temos de aumentar a aceitação desses projetos em toda a sociedade.
Um exemplo é o da hidrelétrica de São Manoel, no rio Teles Pires. O
empreendimento não tem reservatório, e seu impacto sobre a comunidade indígena
é nulo. Mesmo assim, há mais de dois anos, tentamos obter o licenciamento. Acho
que será difícil viabilizar mudanças no curto prazo entre a sociedade e
conseguirmos avançar as usinas com reservatórios." (Maurício Tolmasquim,
presidente da EPE, em entrevista para o
Valor Econômico em 02/09/2013)
Por
Telma Monteiro
Para
desconstruir o discurso do presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE),
Maurício Tolmasquim, dada ao Valor Econômico, mostrarei a existência de um relatório do Componente Indígena
(ECI), apresentado pela EPE, que comprova os impactos na terra
indígena Kayabi e que foi omitido no processo de licenciamento da hidrelétrica
São Manoel.
O
governo quer construir a hidrelétrica São Manoel, no rio Teles Pires, a 300
metros da divisa com a TI Kayabi. Em 25 de abril deste ano (2013) o decreto da homologação da TI Kayabi foi,
finalmente, publicado no Diário Oficial. A TI tem mais de um milhão de hectares
que pertencem aos povos Kayabi, Munduruku e Apiaká.
Segundo
informações do Instituto Socioambiental (ISA),
o plano do governo é instalar 16 hidrelétricas na Bacia do rio Tapajós onde
vivem cerca de 10 mil indígenas nas TIs Munduruku, Kayabi e Saí Cinza.
O
primeiro Estudo do Componente Indígena (ECI) da UHE São Manoel foi entregue
pela EPE em agosto de 2010. Segundo a própria EPE, esse estudo foi pautado pelo
Termo de Referência (TR) emitido pela Funai. Nessa época, a equipe que
desenvolveu as atividades de campo não teve autorização dos Munduruku para
acesso às suas comunidades.
A
Funai não se satisfez com o ECI e pediu complementações, em especial sobre a
questão antropológica. A EPE, então, contratou o antropólogo Dr. Frederico
César Barbosa de Oliveira que já
tinha experiência de convívio com as comunidades indígenas, da TI Kayabi, que
seriam afetadas diretamente pela UHE São Manoel.
Em
junho de 2011 foi entregue o trabalho de abordagem etnocultural
e antropológica dos impactos da UHE São Manoel sobre as comunidades
indígenas. A Funai pediu nova complementação e solicitou uma expedição em
campo, que foi realizada em outubro de 2011 e que se encerrou na aldeia
Kururuzinho, na TI Kayabi.
Para
pressionar o governo, os povos indígenas da TI Kayabi, insatisfeitos com a
apresentação feita pelos técnicos sobre as hidrelétricas, retiveram na aldeia
Kururuzinho os membros da expedição. Os reféns eram os funcionários da Funai,
técnicos da EPE e o antropólogo Dr. Frederico de Oliveira. O ato foi um protesto
contra as hidrelétricas planejadas no rio Teles Pires e contra a demora na
demarcação de suas terras.
O
novo relatório do antropólogo foi entregue à Funai em 02 de dezembro de 2011,
porém sem a sua assinatura e no formato oficial da EPE. A Funai, então,
requisitou a assinatura do antropólogo. A EPE só sanou o problema quando emitiu
um novo documento, em setembro de 2012, com considerações ao relatório do Dr.
Frederico Oliveira, desqualificando grande parte do trabalho dele. Em anexo,
estava o relatório na íntegra e devidamente assinado.
O
documento da EPE informa que algumas partes do relatório oficial do Dr.
Frederico Oliveira não seriam de sua competência técnica. Visivelmente, muitas
das considerações do antropólogo em seu relatório contrariaram a "necessidade"
técnica da EPE e o objetivo de enfiar a UHE São Manoel goela abaixo dos grupos
indígenas da TI Kayabi.
Muitas
das afirmações do antropólogo foram desqualificadas no documento da EPE. O Dr.
Oliveira se refere ao EIA como um estudo que tem por objetivo atestar a
viabilidade do empreendimento. Para a EPE não seria bem assim. Outro exemplo do
que desagradou a EPE é a afirmação do antropólogo de que o seu trabalho
apresenta comentários e recomendações que auxiliam na compreensão da
viabilidade ou não da UHE de São Manoel.
O
Dr. Frederico Oliveira mostrou que a construção da UHE São Manoel vai mexer com
um local sagrado, relacionado à água que atinge um conjunto amplo de
cosmologias indígenas. Segundo ele, seria motivo suficiente para inviabilizar
qualquer tipo de empreendimento no local. Nesse ponto ele aproveita para fazer
uma crítica mordaz ao que chama de "cosmografia do desenvolvimento
(sustentável) econômico" que enxerga a Amazônia como um
território para o crescimento econômico e que trata os povos indígenas e
tradicionais como passivos e marginais, sob a desculpa de beneficiar a nação
com mais energia.
O
antropólogo apontou uma defasagem nos estudos antropológicos e ambientais que
envolvem as populações indígenas da Amazônia. Criticou o fato de que se
pretende que o homem exerça o domínio sobre a natureza e que os estudos
ambientais de aproveitamentos hidrelétricos se pautem por uma economia
ambiental. Mas, o que mais incomodou a EPE foi a afirmação de que os
representantes do governo se preocupam em não dar o devido destaque ao
componente humano para não inviabilizar o projeto técnico.
Com
relação às visitas às aldeias, o Dr. Frederico Oliveira mencionou que os Kayabi
e as demais etnias se mostraram indignados com a pesquisa de apenas nove dias
em suas terras e comunidades, e com o relatório a ser entregue oito dias depois
de concluídos os trabalhos. Em suma, um relatório baseado em pesquisa de
campo insuficiente para determinar o quanto a construção da UHE São Manoel
seria inviável sob a ótica do componente indígena.
Sobre
o episódio na aldeia Kururuzinho, o antropólogo analisou como sendo "restrita
a habilidade do governo federal" no diálogo com grupos
minoritários e marginalizados que precisam lançar mão de atitudes extremas,
como nesse caso, ao reterem à força na aldeia, os integrantes da
expedição.
Algumas
questões em aberto constam das conclusões do relatório do Dr.Frederico
Oliveira, como a opção estratégica do planejamento energético do governo de se
construir várias usinas em sequência no rio Teles Pires. Isso, segundo ele,
chama menos atenção internacional para os impactos, uma vez que eles serão
diluídos, do que construir uma mega usina de magnitude suficiente para produzir
uma hecatombe na Amazônia; ou sobre o fato de os estrategistas, como ele
chama os planejadores do setor elétrico, não atentarem para a existência de
pessoas que vivem secularmente em locais escolhidos, agora, para a construção
de projetos hidrelétricos. Pessoas que não serão beneficiadas com esse
"progresso" e que acabarão ficando com o ônus ambiental deles decorrentes.
Vou
ainda mais longe ao complementar o antropólogo. A opção de construir inúmeras
usinas hidrelétricas nos rios amazônicos nada mais é do que uma estratégia para
beneficiar mais grupos empresariais do setor elétrico ao mesmo tempo. Muitas
obras significam muito mais empreiteiras a praticar sobrepreços e
superfaturamentos, mais financiamentos com taxas abaixo do mercado subsidiadas
pelo BNDES, muito mais dinheiro para campanhas eleitorais, mais aditivos de
contratos de obras que dobram e triplicam seus custos iniciais aprovados, nesse
troca troca corrupto.
O
antropólogo Dr. Frederico Oliveira afirma, ainda, nas conclusões do seu
relatório , que existe "um aspecto que aponta alguns vícios na
gestão do componente humano para a UHE São Manoel diz respeito ao baixo grau de
especificidade dos programas ambientais em relação à realidade socioambiental
do Baixo Teles Pires", pois esses programas objetivam apenas
compensar impactos não apontados sobre a concepção ecológica indígena.
Ele cita o artigo 6° da Convenção 169 que atribui ao Estado a obrigação
de fazer consulta prévia aos povos indígenas sobre a instalação de
empreendimentos que afetem suas terras. Afirma que os procedimentos, desde
2010, com as oficinas e encontros promovidos pela EPE, não atenderam à Convenção
169 da OIT, conforme o entendimento dos próprios indígenas e da Funai.
Aqui
cabe relembrar que sempre que se fala na Convenção 169, as instituições do
governo chamam de "consulta" os "diálogos" em encontros,
oficinas ou apresentações dos projetos, que promovem ao longo do processo. Há
uma insistência do aparato governamental em fazer reuniões com as comunidades e
com isso tentar legitimar o projeto e seus impactos. Isso é recorrente e
subliminar. O mesmo tem acontecido com as Audiências Públicas chamadas pelo
Ibama, pois se tornaram apenas uma praxe que visa legitimar a concessão de
licenças prévias.
Ainda
na conclusão do seu relatório rechaçado pela EPE, o Dr. Frederico Oliveira dá
seu parecer sobre a falta de estudos conclusivos dos impactos sobre a
ictiofauna decorrentes da construção das UHEs Teles Pires (já em andamento e
com sérios impactos) e São Manoel. Para ele, essa lacuna nos estudos torna
extremamente temerária a implantação das hidrelétricas.
Para
finalizar, o antropólogo lamenta que tenha sido preciso chegar a uma etapa
muito avançada, com previsão das audiências públicas e agenda para o leilão,
para que fosse "possível exprimir com alguma propriedade o ponto
de vista daqueles que serão os maiores afetados".
Abaixo
transcrevo o depoimento do índio Munduruku Floriano Mores, um dos vários
importantes e ilustrativos depoimentos colhidos pelo Dr. Frederico Oliveira ao
longo do seu relatório:
“Nós
sabemos de todos os acontecimentos sobre as usinas hidrelétricas, nós sabemos
que essas notícias não são boas. Pra gente tem sido muito difícil, porque
muitas pessoas nem estão podendo fazer seus trabalhos, porque a gente tá indo
em todas as manifestações e audiências públicas sobre essas usinas. Onde o
pessoal fala que muito que é contra, que não quer barragem, mas o problema é
que é uma coisa que é falada lá na hora e lá mesmo isso termina. A FUNAI leva
um relatório, a empresa fica sabendo, mas o mundo lá fora não fica sabendo da
nossa preocupação. A gente vem lutando há muito tempo pra demarcação da nossa
terra por muito tempo e até agora ninguém conseguiu, sempre embargando, com
liminar, e quando o pessoal começa a falar na construção de uma barragem, que
vai gerar muito emprego, muita renda pro Brasil, o governo rapidinho avança com
esse projeto. A nossa preocupação é essa; nós não somos contra o progresso,
como eu ouvi um deputado falar. A gente só queria que o governo olhasse um
pouco mais pelos índios, primeiro fizesse a demarcação da nossa terra, depois
viesse com calma conversar com a gente sobre a implantação dessa usina; quem
sabe a gente podia negociar, conversar sobre os impactos, mas desse jeito é
muito difícil pra gente conversar com esse pessoal que está querendo implantar
a usina. Com essa notícia da implantação das usinas a gente começou a se
mobilizar pra se manifestar contra. Nós achamos que pode ser muito prejudicial
pra gente. Pelo menos se acontecer essa barragem, a gente gostaria de uma
indenização que compensasse as coisas ruins. A gente sabe que muita gente vai
vir pra cá, vai aumentar a bandidagem, esse pessoal vai querer explorar a nossa
terra. Podia também esses pessoal puxar uma rede pra gerar uma energia aqui pra
gente na aldeia. Já vai ser construída usina logo ali, eles podia fornecer essa
energia 24 horas pra gente sem ter que pagar nada e a gente até podia ainda
gerar alguma renda usando essa energia e comprar alguma coisa e algum alimento.
Podia também ter outras pesquisas, com esses cientistas, será que ainda não
acharam um meio de gerar energia que não seja assim de cachoeira? Porque eu
acredito que deve ter. Daqui pra frente o pessoal só traz notícias espantosas
para os índios.”
Dilma
acionou dois ministérios para garantir a realização das APs
Devido
aos acontecimentos ocorridos na aldeia Kururuzinho, o Gabinete de Segurança
Institucional da Presidência da República enviou, em 9 de novembro de 2011, um
ofício à Ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, com orientações diretas
da Presidente Dilma Rousseff. As audiências públicas da UHE São Manoel deveriam
ser realizadas por determinação expressa da presidente. Dilma mandou avisar o
Ministério da Justiça e o Ministério da Defesa para providenciar segurança nos
municípios de Paranaíta, Alta Floresta e Jacareacanga.
No
ofício fica claro que, por ser obra prevista no PAC, a UHE São Manoel era
objeto de atenção especial. A solicitação de segurança aos ministérios se deu "em
função da existência de forte resistência da comunidade indígena da
região", finaliza o texto.
As
audiências não aconteceriam. Em 21 de novembro, em publicação no Diário Oficial
da União (DOU), o Ibama comunicou a suspensão das APs.
O
Ibama pede novos esclarecimentos no EIA
Em
nova Nota Técnica (NT) do Ibama, de 8 de dezembro de 2011, mais uma vez os
técnicos fazem considerações sobre o EIA da UHE São Manoel. Desta vez com
questionamentos sobre atividades, impactos e diagnóstico.
A
conclusão foi curta e objetiva: a EPE devia apresentar "os
esclarecimentos e complementações para que a equipe possa dar continuidade ao
processo de avaliação dos Estudos Ambientais." A sugestão era
para que fossem realizadas reuniões técnicas para discutir os itens apontados
na NT.
Em
13 de dezembro o Ibama comunicou à EPE a necessidade de agendar as reuniões
técnicas sobre as possíveis sinergias e impactos cumulativos das hidrelétricas
São Manoel e Teles Pires.
A
análise que resultou nessa NT, apontando mais falhas no EIA da UHE São Manoel,
foi o motivo pelo qual as APs marcadas para os dias 22, 23 e 24 de
novembro foram sumariamente canceladas pelo Ibama.
A
EPE protocolizou um novo documento em resposta à NT do Ibama, em 06 de
fevereiro de 2012. Os esclarecimentos, no entanto, deixaram de apresentar o
aprofundamento dos efeitos sinérgicos entre as UHE São Manoel e UHE Teles
Pires. A análise dos efeitos sinérgicos e cumulativos entre os dois
empreendimentos tinha sido objeto de Ação Civil Pública do Ministério
Público.
Em
outra Nota Técnica sobre o componente ictiofaunístico, de 01 de fevereiro de
2012, os técnicos do Ibama apontaram mais falhas e teceram considerações sobre
questões importantes que precisavam de esclarecimentos dos autores do EIA.
Segundo a nota havia necessidade de readequações e justificativas por parte do
empreendedor para que se pudesse dar continuidade à análise do EIA da UHE São
Manoel. Mais uma vez, no decorrer do processo de licenciamento iniciado em
2007, o EIA estava sendo apontado pelo Ibama como inconsistente.
A
EPE só apresentaria os esclarecimentos sobre o componente ictiofaunístico em
março de 2013.
O
processo de licenciamento da UHE São Manoel ficou praticamente parado até
abril. Nessa época, um despacho da então diretora do DILIC/Ibama, Gisela
Damm Forattini, informou que a análise do EIA só seria concluída após a
realização das audiências públicas. Acrescentava, também, que o próximo parecer
técnico do Ibama, de maio de 2013, não era conclusivo com relação à concessão
da Licença Prévia.
O
Parecer Técnico 4510/2013 sobre a análise do EIA da UHE São Manoel e dos
documentos anexados tem 222 páginas. A conclusão é taxativa: ainda é
preciso que o empreendedor apresente os dados contidos no parecer para que o processo
de licenciamento continue. O resultado das audiências públicas será considerado
na análise técnica para avaliação do projeto e se houver novos impactos
identificados, mais complementações serão exigidas.
Somente
agora, em 12 de agosto de 2013, o Ibama marcou as audiências públicas que estão
previstas para os dias 27, 29 e 30 de setembro em Paranaíta (MT), Jacareacanga
(PA) e Itaituba (PA), respectivamente. O leilão da UHE São Manoel está
planejado para acontecer em dezembro, segundo a EPE.
EMPRESA DE PESQUISA
ENERGÉTICA_EXTRATO DE INSTRUMENTO CONTRATUAL - Nº do instrumento contratual:
AS-EPE-330/2011; Licitação: Inexigibilidade de Licitação nº IN.EPE.022/2011;
Contratante: Empresa de Pesquisa Energética - EPE; Contratado: FREDERICO CESAR
BARBOSA DE OLIVEIRA; Objeto: prestação de serviços técnicos especializados de
consultoria a ser prestado pelo Dr. Frederico César Barbosa de Oliveira, para
realização de serviços de campo serviços de campo associado à Revisão e
Complementação dos Estudos do Componente Indígena das UHE de Foz do Apiacás e
São Manuel, solicitado pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI).; Vigência:
07/10/2011 a 22/10/2012; Valor Total: R$ 24.235,13; Data de assinatura:
06/10/2011. (p. 137). Link
da Informação http://www.funai.gov.br/ultimas/Informe%20seii/2011/193-2011.htm
Acesse
o relatório da EPE do Componente Indígena, na íntegra, clicando aqui
Leia
mais sobre o assunto:
Nenhum comentário:
Postar um comentário