A dificuldade de uma parcela das elites, da população e do governo de reconhecer os indígenas como parte do Brasil criou uma espécie de xenofobia invertida, invocada nos momentos de acirramento dos conflitos
ELIANE BRUM1
A volta dos
indígenas à pauta do país tem gerado discursos bastante reveladores sobre a
impossibilidade de escutá-los como parte do Brasil que têm algo a dizer não só
sobre o seu lugar, mas também sobre si. Os indígenas parecem ser, para uma
parcela das elites, da população e do governo, algo que poderíamos chamar de
“estrangeiros nativos”. É um curioso caso de xenofobia, no qual aqueles que
aqui estavam são vistos como os de fora. Como “os outros”, a quem se dedica
enorme desconfiança. No processo histórico de estrangeirização da população
originária, os indígenas foram escravizados, catequizados, expulsos, em alguns
casos dizimados. Por ainda assim permanecerem, são considerados entraves a um
suposto desenvolvimento. A muito custo foram reconhecidos como detentores de
direitos, e nisso a Constituição de 1988 foi um marco, mas ainda hoje parecem
ser aqueles com quem a sociedade não índia tem uma dívida que lhe custa
reconhecer e que, para alguns setores – e não apenas os ruralistas –, seria
melhor dar calote. Para que os de dentro continuem fora é preciso mantê-los
fora no discurso. É isso que também temos testemunhado nas últimas
semanas.
Entre os exemplos mais explícitos está a tese de que não falam por si.
Aos estrangeiros é negada a posse de uma voz, já que não podem ser reconhecidos
como parte. Sempre que os indígenas saem das fronteiras, tanto as físicas
quanto as simbólicas, impostas para que continuem fora, ainda que dentro, é
reeditada a versão de que são “massas de manobra” das ONGs. Vale a pena olhar
com mais atenção para essa versão narrativa, que está sempre presente, mas que
em momentos de acirramento dos conflitos ganha força.
Desta vez, a entrada dos indígenas no noticiário se deu por dois
episódios: a morte do terena Oziel Gabriel, durante uma operação da Polícia
Federal em Mato Grosso do Sul, e a paralisação das obras de Belo Monte, no
Pará, pela ocupação do canteiro pelos mundurucus. O terena Oziel Gabriel, 35
anos, morreu com um tiro na barriga durante o cumprimento de uma ordem de
reintegração de posse em favor do fazendeiro e ex-deputado pelo PSDB Ricardo
Bacha, sobre uma terra reconhecida como sendo território indígena desde 1993. Pela
lógica do discurso de que seriam manipulados pelas ONGs, Oziel e seu grupo, se
pensassem e agissem segundo suas próprias convicções, não estariam
reivindicando o direito assegurado constitucionalmente de viver na sua área
original. Tampouco estariam ali porque a alternativa à luta pela terra seria
virar mão de obra barata ou semiescrava nas fazendas da região, ou virar
favelados nas periferias das cidades. Não. Os indígenas só seriam genuinamente
indígenas se aceitassem pacífica e silenciosamente o gradual desaparecimento de
seu povo, sem perturbar o país com seus insistentes pedidos para que a
Constituição seja cumprida. Aí já há uma pista para o que alguns setores da
sociedade brasileira entendem como identidade “verdadeira”: ser índio seria,
quando não desaparecer, ao menos silenciar.
No caso dos mundurucus, questionou-se exaustivamente a legitimidade de
sua presença no canteiro de obras da hidrelétrica de Belo Monte, por estarem “a
800 quilômetros de sua terra”. De novo, os indígenas estariam extrapolando
fronteiras não escritas. Os mundurucus estavam ali porque suas terras poderão
ser afetadas por outras 14 hidrelétricas, desta vez na Bacia do Tapajós, e pelo
menos uma delas, São Luiz do Tapajós, deverá estar no leilão de energia
previsto para o início de 2014. Se não conseguirem se fazer ouvir agora, eles
sabem que acontecerá com eles o mesmo que acabou de acontecer com os povos do
Xingu. Serão vítimas de um outro discurso muito em voga, o da obra consumada. A
trajetória de Belo Monte mostrou que a estratégia é tocar a obra, mesmo sem o
cumprimento das condicionantes socioambientais, mesmo sem a devida escuta dos
indígenas, mesmo com os conhecidos atropelamentos do processo dentro e fora do
governo, até que a usina esteja tão adiantada, já tenha consumido tanto
dinheiro, que parar seja quase impossível.
Adiantaria os mundurucus gritarem sozinhos lá no Tapajós, para serem
contemplados no seu direito constitucional, respaldado também por convenção da
Organização Internacional do Trabalho, de serem ouvidos sobre uma obra que vai
afetá-los? Não. Portanto, eles foram até Belo Monte se fazer ouvir. Mas, como
são indígenas, alguns acreditam que não seriam capazes de tal estratégia
política. É preciso resgatar, mais uma vez, o discurso da manipulação – ou da infiltração.
Já que, para serem indígenas legítimos, os mundurucus teriam de apenas aceitar
toda e qualquer obra – e, se fossem bons selvagens, talvez até agradecer aos
chefes brancos por isso.
Quando os
indígenas levantam a voz, a voz não seria sua. Seria de um outro, a quem
emprestam o corpo. Ninguém é ingênuo a ponto de acreditar que o discurso dos
indígenas como massa de manobra seja inocente. Ele serve a muitos interesses,
inclusive o de tirar do foco os reais interesses sobre as terras indígenas de quem
o difunde. Mas esse discurso não teria ressonância se não tivesse a adesão de
uma parte significativa da população brasileira. E esta adesão se dá, me
parece, por essa espécie de xenofobia invertida. Estes “estrangeiros nativos”
ameaçariam um suposto progresso, já que seu conhecimento não é decodificado
como um valor, mas como um “atraso”, sua enorme diversidade cultural e de
visões de mundo não são interpretadas como riqueza e possibilidades, mas como
inutilidades. Neste sentido, há uma frase bastante reveladora de como esse
olhar – ou não olhar – contamina amplas parcelas da sociedade, inclusive no
governo. Ao falar em uma audiência pública na Câmara dos Deputados, em dezembro
passado, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, disse que sua pasta atendia
“da toga à tanga”. Entre os dois extremos, podemos ver em qual deles o ministro
situa o ápice da civilização e também o seu oposto.
Há ainda uma dupla invocação do estrangeiro nesse discurso, já que a
única coisa pior do que ser “massa de manobra” de ONGs nacionais seria ser das
estrangeiras. Evocar a ameaça externa parece sempre funcionar, como naqueles
SPAMs, que volta e meia reaparecem, de que “os gringos estão invadindo a
Amazônia” – esta também, tão nossa que podemos destruí-la, tarefa a que temos
nos dedicado com afinco. Ao denunciar uma suposta apropriação do corpo
simbólico dos indígenas por outros, o que se revela, de fato, é a frustração
porque esse corpo não se deixa expropriar e manipular pelas elites como antes.
Porque apesar de todas as violências, há uma voz que ainda escapa – e que
demanda o reconhecimento de seu corpo-terra, de seu pertencimento. Aquele que é
visto como o de fora se torna um incômodo quando diz que é parte.
Vale a pena prestar atenção em quem amplifica o discurso dos indígenas
como “massa de manobra”, para verificar que fazem exatamente o que acusam
outros de fazer: afirmam o que os indígenas, todos eles, precisam e querem.
Parece haver um consenso, inclusive, de que o verdadeiro desejo dos indígenas
seria se tornar um trabalhador assalariado e urbano ou, pelo menos, o
beneficiário de algum programa de transferência de renda do governo.
Nesta posição, eles não atrapalhariam ninguém – e menos ainda os
produtores rurais. Este é o momento chave para a entrada de outro discurso
recorrente: o de que os indígenas querem terra “demais”. Basta fazer as contas,
como fez o jornalista Fabiano Maisonnave, na Folha de
S. Paulo: com uma população de 28 mil indígenas em Mato Grosso
do Sul, os terenas têm sete reservas, somando cerca de 20 mil hectares; já o
produtor rural Ricardo Bacha, em cuja fazenda foi morto o terena Oziel Gabriel,
tem cerca de 6.300 hectares, dos quais 800 em litígio. Se é de concentração de
terra na mão de poucos que se pretende falar, há muitos números ilustrativos
que podem ser citados. Outro dado interessante vem de uma pesquisa da Embrapa,
citada em artigo do engenheiro florestal Paulo Barreto, no site O Eco:
há 58,6 milhões de hectares de pastos degradados pela pecuária, o equivalente a
53% da área total de terras indígenas. “A Embrapa tem demonstrado que já
existem as tecnologias para aumentar a produtividade dos pastos degradados.
Assim, ocupar terra indígena é, além de inconstitucional, prova de
incompetência”, afirma Barreto. A Embrapa é um dos novos atores que deverão ser
chamados para opinar sobre as demarcações, numa manobra para esvaziar a Funai e
agradar a bancada ruralista.
O lugar de estranho indesejado,supostamente sem espaço no Brasil que
busca o desenvolvimento, tem permitido todo o tipo de atrocidades contra
indivíduos e também contra etnias inteiras ao longo da história. Seria muito
importante que cada brasileiro reservasse meia hora ou menos do seu dia para
ler pelo menos as primeiras 16 páginas do resumo do Relatório Figueiredo, um documento
histórico que se acreditava perdido e que foi descoberto no final de 2012 por
Marcelo Zelic, vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, de São Paulo. No
total, o procurador Jáder Figueiredo Correia dedicou 7 mil páginas para contar
o que sua equipe viu e ouviu. A íntegra também está disponível na internet.
O relatório, datado de 1968, documentou o tratamento dado aos povos
indígenas pelo extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI). Entre os crimes,
cujos responsáveis foram nominados, mas jamais punidos, estão os “castigos”
infligidos pelos funcionários aos indígenas, como crucificações e uma tortura
conhecida como “tronco”, na qual a vítima tinha o tornozelo triturado. Crianças
eram vendidas para abusadores, mulheres, estupradas e prostituídas. Duas
aldeias de pataxós, na Bahia, foram dizimadas para atender aos interesses de
políticos de expressão nacional da época.Uma nação indígena inteira foi extinta
por fazendeiros, no Maranhão, sem que os funcionários sequer tentassem
protegê-la. O procurador cita a possível inoculação do vírus da varíola em uma
etnia de Itabuna, na Bahia, para que as terras fossem liberadas para “figurões
do governo”, assim como o extermínio de um grupo de cintas-largas, em Mato
Grosso, de várias formas: atirando dinamite de um avião e adicionando
estricnina ao açúcar, além de caçá-los e matá-los com metralhadoras. O massacre
ocorreu em 1963, ainda no período democrático, portanto, e os que ainda assim
sobreviveram foram rasgados com o facão, “do púbis a cabeça”.
A lista é longa. É importante ressaltar que tudo isso não se passou na
época de Pedro Álvares Cabral, nem mesmo no tempo dos bandeirantes, mas na
década de 60 do século XX. Praticamente ontem, do ponto de vista histórico.
Cabe enfatizar ainda que os crimes foram infligidos aos indígenas, num
comportamento disseminado por todo o país, por representantes do Estado
brasileiro. Menciono o relatório não só porque acredito que precisamos
conhecê-lo, mas porque ele demonstra que tipo de olhar permite que atrocidades
dessa ordem tenham se tornado uma política não oficial, mas exercida como se
fosse – e não por um único psicopata, mas por dezenas de funcionários e suas
esposas, com o apoio e às vezes a ordem da direção do órgão criado para
proteger os povos tradicionais. Para estas pessoas, o corpo dos indígenas era
território a ser violado, como violada foi a sua terra. Como aqueles sem lugar,
os indígenas não eram reconhecidos como iguais, nem mesmo como humanos. Eram o
que, então? O procurador responde: “Tudo como se o índio fosse um irracional,
classificado muito abaixo dos animais de trabalho, aos quais se presta, no
interesse da produção, certa assistência e farta alimentação”.
Para quem imagina que este capítulo é parte do passado, vale a pena
lembrar que apenas nos últimos dez anos, nos governos Lula-Dilma, foram
assassinados 560 indígenas. A Constituição precisa ser cumprida, as demarcações
devem ser feitas, os fazendeiros que possuem títulos legais, distribuídos pelo
governo no passado, têm direito a ser indenizados pelo Estado. Mas há um
movimento maior, mais profundo, que é preciso empreender. Como “estrangeiro
nativo”, uma impossibilidade, só é possível perpetuar a violência.É necessário
fazer o gesto, também em nível individual, de reconhecer o indígena como parte,
não como fora. Para isso é preciso primeiro desejar conhecer, o gesto que
precede o reconhecimento. Só então o Brasil encontrará o Brasil.
(Eliane Brum escreve às segundas-feiras)
1 Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Autora
de um romance - Uma Duas (LeYa)
- e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O avesso da lenda (Artes
e Ofícios), A vida que ninguém vê (Arquipélago,
Prêmio Jabuti 2007) e O olho da rua - uma repórter em
busca da literatura da vida real (Globo).
elianebrum@uol.com.br
Twitter: @brumelianebrum
(Foto: Lilo Clareto/ Divulgação)
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(Foto: Lilo Clareto/ Divulgação)
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