Acostumados
à experiência da autodeterminação, os indígenas talvez tenham uma visão do que
é o Brasil, como “projeto de nação”, que em muitos sentidos pode ser mais
realista do que a de todos nós.
Por
Renzo Taddei, do Canal
Ibase
(Texto publicado no dia 12/11/2012 na Revista Fórum. Vale a pena ler!)
(Foto Rosa Gauditano)
Nas últimas
semanas recebi uma quantidade impressionante de solicitações, via redes sociais
e e-mail, para manifestar meu apoio à causa dos Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul. Não me lembro, em minha experiência
com redes sociais, de ter visto mobilização desse porte. Há pouco mais de uma
semana, saiu decisão judicial a favor dos indígenas – ou, para colocar em termos mais
precisos, revogando a reintegração de posse da área onde estão. Como atentou
gente mais próxima ao movimento indígena, isso por si só não garante quase nada, apenas que violências maiores não
sejam cometidas no curto prazo. De qualquer forma, não tive muito tempo para me
alegrar com o que parecia uma vitória do potencial de mobilização
descentralizada da sociedade civil: ao comentar a questão com um amigo, no Rio
de Janeiro, recebi como resposta a pergunta, maliciosamente feita de forma a
combinar ironia e seriedade em proporções iguais: “mas, afinal, para que servem
os índios?” Desconcertado, não consegui articular nada, apenas retruquei: “não
sei; mas e você, pra que serve?”
Não pude deixar de pensar no assunto nos dias que se seguiram. Mas, no
caso, o assunto deixou de ser exatamente a situação dos Guarani Kaiowá, ou das
especificidades de conflitos entre índios e não-índios, e passou a ser a
situação de certa configuração de ideias do senso comum da população urbana –
ou pelo menos das coletividades nas quais me insiro, no Rio de Janeiro e em São
Paulo – sobre os índios, em primeira instância, e sobre aqueles que são
irredutivelmente diferentes, em última. Obviamente esse é assunto complexo, e
vou me limitar a apenas pontuar alguns temas que, creio, são importantes para
iluminar o contexto no qual notícias sobre os conflitos envolvendo indígenas
ganham significados, para a grande parcela da população brasileira que
inevitavelmente participa disso tudo na posição de meros espectadores.
Sobre a
natureza dos índios e não-índios
Certa vez, em uma aula de antropologia, na Escola de Comunicação da
UFRJ, usei um exemplo hipotético de jovem índio que vinha à universidade
estudar medicina. “Aí ele deixa de ser índio”, alguém disse. Na discussão que
se seguiu, a opinião prevalecente era de que as expressões “índio urbano” e
“índio médico”, usadas por mim, eram contradições em termos. Eu perguntei,
então, se o fato de eu ser descendente de italianos, o que me dá, segundo a legislação
italiana, o direito de “virar italiano”, faz com que eu deixe de ser alguma
coisa – brasileiro, por exemplo. Confusão nas fisionomias. Por que eu posso
virar italiano sem deixar de ser brasileiro, e ninguém vê problema nisso, e o
índio não pode “virar” urbano sem deixar de ser índio? Concluímos – com vários
autores estudiosos das populações indígenas – que, sem que as pessoas se deem
conta, nós, urbanos, ocidentalóides, nos entendemos na maior parte do tempo
como seres “culturais”, tendo algum controle sobre nossas identidades,
portanto; enquanto isso, percebemos a essência indígena (se é que isso existe)
como algo “natural”, sobre a qual eles não têm, nem podem ter, controle algum.
Nada mais natural, então, que pensar que lugar de índio é na floresta, e
que índio tem que ser preservado, como se fosse parte da biodiversidade. Ou
então índio deixa de ser índio e vira não-índio, arranja emprego, compra casa,
toca a vida na cidade – se desnaturaliza. O problema é o índio que quer morar
na cidade, ser médico, talvez, sem abandonar suas formas indígenas de entender
o mundo e vida. Ou o índio que quer câmeras fotográficas, antibióticos,
televisores, antenas parabólicas e escolas, mas não quer abrir mão da sua forma
não-ocidental, e portanto não capitalista, de entender sua relação com a terra,
por exemplo. Ou não quer abrir mão de sua forma não-ocidental, e portanto não
marcada por um reducionismo materialista esvaziado e irresponsável, de relação com câmeras fotográficas,
antibióticos, televisores, antenas parabólicas e escolas (é parte do senso
comum que o que essas coisas são para mim são também para todos que delas fazem
uso, o que não
é verdade sequer para gente
do mesmo grupo social). A questão se apresenta de forma pervasiva até entre
gente politicamente progressista: na Cúpula dos Povos da Rio+20, uma grande
amiga, ativista, me confidenciou ter ficado espantada ao ouvir de lideranças
indígenas que eles gostariam de ter energia elétrica, saneamento, escolas. Eram
afirmações que contrariavam suas expectativas “romanceadas”, nas suas próprias
palavras, a respeito dos índios.
Por que é tão difícil aceitar a ideia de que quando o índio diz querer
escola, ele não está fazendo nenhuma declaração sobre a sua identidade? Porque,
dentre muitas outras coisas, identidade é paranoia de não-índio, mas não
(necessariamente) paranoia de índio. Aqui começamos a chegar a algum lugar: é
muito incômodo conviver com alguém que não compartilha nossas paranoias.
Uma das decorrências perversas desse estado de coisas é a forma como
somos levados a ver os índios como pessoas “incompletas”, como sendo “menos”
que os não-índios. Não é à toa que, juridicamente, os índios foram ao longo do
século 20, até a Constituição de 1988 pelo menos, tratados como equivalentes a
crianças, ou seja, como seres incapazes e que demandavam tratamento jurídico
diferenciado, justamente em função dessa incapacidade. O problema estava (e está) nos códigos
jurídicos, fechados à possibilidade do direito à diferença, e não nos índios,
que não são mais nem menos capazes que os não-índios, mas apenas diferentes em
suas capacidades. A mudança constitucional de 1988, como a própria questão dos
Guarani Kaiowá demostra, ocorreu infelizmente muito mais de juris do que de
fato.
Os muitos
significados do verbo servir
Mas voltemos à questão sobre a “serventia” dos índios. O tema apareceu
novamente em reportagem da revista Veja, edição de 4 de novembro. Replicando argumentos
usados em edições anteriores ao
tratar do tema, o texto (que de jornalístico não tem quase nada) mescla
desinformação e preconceito, ao fazer uso, por exemplo, de argumentos como a
suposta “trágica situação [dos índios] de silvícolas em um mundo tecnológico e
industrial”, de afirmações como “[a] Funai também apoia o expansionismo
selvagem”, e de acusações descabidas, como a de que os antropólogos ligados ao
Conselho Indigenista Missionário querem transformar o sul do Mato Grosso do Sul
numa “grande nação guarani”, justamente na “zona mais produtiva do agronegócio”
do estado. Em 2010, a revista
havia afirmado, através de um malabarismo estatístico de quinta categoria (digno de
envergonhar até ruralistas medianamente sofisticados), que 90% do território
brasileiro é ocupado ou destinado a áreas de preservação ambiental, comunidades
indígenas, quilombolas e áreas de reforma agrária; “a agricultura e demais
atividades econômicas terão apenas 8% de área para se desenvolver”. Enfim, a
estratégia retórica é clara: quem não contribui com o agronegócio e demais
formas de produção capitalista em grande escala – no caso, os índios e todos os
demais grupos de alguma forma ligados a usos não predatórios da terra – não
contribui com a economia nacional. Em uma palavra: só serve para atrapalhar.
Essa é uma questão, me parece, fundamental: é preciso discutir o
conceito de serventia. Como a ideia de “servir” participa em nossas vidas, e na
forma como aprendemos a entender e viver o mundo? Se a serventia dos que
(supostamente) não estão integrados ao projeto da nação é um tema relevante –
tanto ao pseudo-jornalismo da Veja como a certo senso comum urbano -, e nós, não-índios,
(supostamente) integrados, afinal, servimos pra quê? E como isso afeta nossa
compreensão das questões indígenas no Brasil contemporâneo, e mais
especialmente o caso dos Guarani Kaiowá? Na minha opinião, isso tudo serve de
pano de fundo contra o qual as audiências urbanas, dos grandes canais de mídia,
distantes do Mato Grosso do Sul, atribuem sentido às notícias.
O caso dos Guarani Kaiowá traz à luz um elemento da vida cotidiana
brasileira que é feito estrategicamente invisível na forma como somos ensinados
a entender o mundo. Eles não querem ser “como nós”; tenho a impressão de que
para a maioria da população urbana isso não apenas é contra intuitivo, mas
figura como um choque, quase como uma afronta. Se eles gostam de fotografia,
eletricidade, escolas e antibióticos, qual o problema, então?
Há uma diferença fundamental entre a experiência de mundo dos índios e
dos não-índios brasileiros, e isso está ligado ao “lugar” onde se encontram as
coisas verdadeiramente importantes. De acordo com trabalhos antropológicos que
descrevem as visões de mundo e formas de vida de várias etnias indígenas
sul-americanas, uma das características marcantes da vida indígena (para quem
não é índio, obviamente), é a proximidade existencial das pessoas com os níveis
mais altos da existência política e religiosa das suas sociedades. O poder
político, em geral, não é algo que se manifeste
em forma de hierarquias verticais, da forma como as entendemos, e provavelmente
está ocupado por alguém com quem as pessoas da tribo tem relação pessoal
direta, muitas vezes de parentesco. O mesmo se dá no que diz respeito à
existência espiritual: está tudo logo ali, divindades, antepassados, espíritos,
mediados pelas práticas do xamã, que também é conhecido de todos (ainda que,
igualmente, talvez temido por todos). Há a percepção de que as coisas do mundo,
alegrias e tristezas, sucessos e fracassos, são intrinsecamente ligadas à
existência das pessoas da comunidade – os antropólogos chamam isso de relação
de imanência.
O que é que a “integração” ao Brasil oferece, em contrapartida?
Fundamentalmente, o deslocamento do centro de gravidade da existência para
algum outro lugar, mais distante, abstrato, de difícil compreensão. Os índios
resistem à ideia de que o centro do mundo passe a residir em outro lugar – em
Brasília, por exemplo. Ou seja, resistem ao processo que os faz marginais. A
marginalização, tomando a expressão de forma conceitual (ou seja, fazendo
referência a quem está nas margens, nas bordas ou periferia), pode se dar
deslocando-se alguém para a periferia do mundo, ou deslocando o centro de
lugar, de modo que quem era central passa a ser periférico, e, portanto,
marginal. De certa forma é exatamente isso que o Brasil oferece aos indígenas.
Mas quem é que quer ser marginal?
O que a imensa maioria de nós, urbanitas ocidentalóides, não percebemos
é que é isso, exatamente, que o Estado faz conosco. Assistimos à política e às
outras formas de organização do nosso mundo – justiça, administração pública,
economia – na qualidade de espectadores. Irritados, confusos, insatisfeitos,
mas quintessencialmente espectadores. Somos mais capazes de interagir com um
reality show do que com o mundo da política. Desde pequenos somos ensinados – e
as políticas educacionais e conteúdos programáticos são desenhados
cuidadosamente para tanto – que as coisas realmente importantes acontecem em
algum outro lugar, e que são muito complexas, e que por isso mesmo há alguém
mais capacitado cuidando disso tudo, para que possamos viver nossas vidas em
paz. Ou seja, para que possamos não pensar em nada que não seja nos mantermos
vivos e sermos economicamente ativos – e assim contribuir com o “projeto da
nação”. Ou seja, o Estado reduz nossa vida ao mínimo – pão e circo, bolsa
família e telenovela – para que as coisas funcionem e efetivamente aconteçam em
algum outro lugar. Somos espectros de cidadãos.
Ou seja, a pergunta sobre para que servem as pessoas deve ser recolocada
em outros termos: do que é que cada um de nós abre mão para “participar” do
Brasil? Nós servimos para servir ao Estado. Somos todos marginais, e não nos
damos conta disso.
O escândalo da questão indígena é a resistência que eles têm em aceitar
os nossos mitos, ou as nossas ilusões – sobre o Brasil, por exemplo.
Acostumados à experiência da autodeterminação, eles talvez tenham uma visão do
que é o Brasil, como “projeto de nação”, que em muitos sentidos pode ser mais
realista do que a de todos nós.
O Estado brasileiro só vai ser capaz de avançar na questão dos conflitos
indígenas quando parar de tratar o tema da autodeterminação como anátema. E só
o fará quando deixar de ter na tutela dos seus súditos sua razão de ser – ou
seja, quando as elites políticas abandonarem a visão que tem de que o Brasil é
fundamentalmente habitado por gente desqualificada, intelectualmente e
moralmente inferior, e mal intencionada, e que demanda, portanto, o esforço do
Estado para corrigir desvios e induzir a massa ao caminho produtivo. O Estado
brasileiro é incapaz de reconhecer valor nas diferenças, justamente porque a
homogeneização coletiva é condição de existência do próprio Estado.
Frequentemente é evocada a noção de atentado àsoberania nacional quando
o tema das diferenças é trazido ao centro da arena.
E se um bocado de gente decide – muito arrazoadamente, por sinal – que a economia não
deve mais crescer? Isso, dirão muitos, é obviamente um atentado à soberania
nacional. Ou não? É, antes que tudo, e talvez apenas, um atentado à soberania
do soberano. Pelo menos da tecnocrática soberana da ocasião.
Manifestemo-nos hoje, enfaticamente, em defesa dos
Guarani Kaiowá. Como forma de materializar nosso apreço pela liberdade e pelo
direito à diferença. Como forma de protesto contra um Estado centralizador e
autoritário. Como declaração de que não queremos juiz, médico, político ou
professor nos dizendo como devemos viver nossas vidas. Essa função está
reservada para os poetas – índios e não-índios, brancos e não-brancos.
Renzo Taddei é professor da
Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É doutor em
antropologia pela Universidade de Columbia, em Nova York. Dedica-se aos estudos
sociais da ciência e tecnologia.
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