Por Allan da Rosa
Revista Fórum
Cada
explosão que trepidava nosso chão obedecia ao chilique dos jornais graúdos. Nos
tiros de cima pra baixo, nas bombas em quem tava ajoelhado ou sentado no chão,
entre os fachos luminosos que jogaram na gente, pesava a ditadura militar
cotidiana, escorrendo. Ditadura que só acabou em alguns bairros de bacanas.
Circulou na net o vídeo de um PM quebrando o vidro da própria viatura, forjando
a tal baderna. Já há suspeita forte de infiltrados, assumidos pela própria
corporação, incitando a violência.
Muita
gente aglomerada. E aqui só pode multidão pros palcos da Virada Cultural,
espectadores autorizados consumindo a folia oficial. Ou dentro da condução. Ou
em corredor de hospital.
Ah,
a boniteza de ser 20 mil na rua cantando ‘o povo acordoooou’. Ali no centrão
tomado encontrei meu povo pelejando. Nós, uma renca dos saraus, teatros e das
ocupações das quebradas. Abracei professores do fundão da cidade. Malungagem da
Brasilândia, Parque São Luís, Americanópolis, Mauá, Jardim João 23, Heliópolis,
Cidade Tiradentes. Muitos cantos. Abraços com gana, os de sempre. Mas depois
encurralados, nós na mira do gás, o desespero acuando e as debandadas, o fervo.
Akins, meu aliado de fé, sumiu. Apenas no dia seguinte soubemos um do outro. O
povo rechaçado seguia entre as explosões. Fizemos um circuito cascudo da
República à República. Da Consolação à Marechal Deodoro, mas desguiados pela
Augusta, pela Bela Cintra, pelas Clínicas e o Pacaembu. Nunca vou esquecer da
solidariedade no miolo do pânico. Katiara, Choco e eu agarrados por toda a
travessia em chamas, se amparando, se fortalecendo. O vinagre partilhado com
quem chegava pra embeber a manga e o lenço. E a alegria dos reencontros depois
das dispersões pelos rojões… Me vi nos outros olhos vermelhos, na agonia da
nossa garganta ardida pela nuvem de guerra, na face úmida dos outros parceiros
de levante. Quando tocarei de novo no desconhecido que ajudamos a levantar,
capengando entre as labaredas? Dez da noite a paz sorriu no peito, meio amuada
mas sorriu: encontrei o Paulo do Perifatividade quase inteiro, mancava pela
bala de borracha na coxa, e o Leko junto, esse com saúde no fim do terror.
Um
hospital privado, caríssimo, na Avenida Paulista foi impedido de medicar
manifestantes feridos, arrastados pra fora pelos policiais. Igualzinho nos
açougues das periferias de SP, tantas vezes proibidos de atender os baleados da
madrugada. Uma viatura na Rua Maceió atropelou um rapaz, trincou seus pés e com
cassetete em punga mandou o cara levantar e vazar. Jovens espancadas no
Pacaembu por soldados machos, mesmo rendidas, com seus braços erguidos. Motos e
viaturas caçaram pessoas por ruas dos Jardins, antes de autuá-las por formação
de quadrilha.
A
velha história. A polícia paulista, a truculência dos comandantes que empesteia
o mais novo recruta, sua formação fascista que anistia a si mesma com os
arranjos e alívios dos tribunais militares. Atiram crentes que no dia seguinte
seus jornalistas conchavados vão passar um pano em sua sujeira. Mas algo deu
errado no CEP. Os cabos esqueceram que estão no centro, com câmeras, socando
gente influente e esmurrando seus escrivães. Os tenentes não lêem os editoriais?
Ou então leram e seguiram na medula o tal rigor que a mídia graúda atiçou e
exigiu pela honra bandeirante…
Há
uma tonelada de jornais graúdos e de canais de tevê que não arreia pros seus
anunciantes de automóveis, não pode contrariar os banqueiros que lhes
sustentam, não pode deixar de dizer amém pros seus donos deputados,
especialistas em lamber coturnos e tesourar a real. Mídia que diz se
chocar com o que foi (foi? não é mais?) ditadura militar, que exalta o espírito
da luta na Tunísia, na Turquia, em Plutão… mas que aqui chama de vândalos quem
grita.
Ironia
amarga e dolorosa um bocado dos jornalistas dessas redações agora esfacelados
nas manifestações. É tempo de demissões em massa nas redações graúdas, sim?
Logo a polícia será contratada para escrever as pautas, otimizando o serviço.
Os fardas atenderam perfeitinho aos clamores editoriais chamando a ordem pelos
cascos e espadas da cavalaria. Não foi o braço escrito dos vampiros que se
arretou com a tal ‘atitude moderada’ dos comandantes milicos? Foi a Folha de
São Paulo que exigiu ação enérgica pela honra da sociedade? E teve seis
jornalistas seus entre os gravemente avariados. É um tiquinho trágico do que
toda noite arrasta meus irmãos pra vala e as famílias pro desespero. Uma
lambida do vinagre de 513 anos nos bairros pretos. Penso nos meus parceiros que
não tem advogado nem câmera a postos, nem moeda pra fiança… penso nos meus que
enterramos e que no jornal entraram como marginais em troca de tiros.
Diariamente.
Mas
agora ali brota uma noticia indignada. E nada há pra comemorar ou sorrir por
isso.
Já
os diários europeus se dizem surpresos. Frisam que aqui nunca houve luta nas
ruas, nas matas, nas praias. Que falácia. Noticiam com susto a rebeldia no meio
do tal otimismo brasileiro, propalado em plena era da felicidade comprada a
prazo. E os jovens, tão tirados de alienados, de sem compromisso, agora são
alçados a inimigo ou exemplo nacional.
Não
são só os 20 centavos de aumento. É mais do que exigir um busão que nos espreme
ou um metrô que não chega nas beiradas da cidade e que manda se lascar quem não
dorme à meia-noite. 3 reais ou 3 e 20 é o mesmo assalto. Nossa chama vai ainda
além desse litro de leite, desse saco de feijão que deixamos a cada vez que
rodamos a catraca do vagão de bodes em que nos entuchamos. A pauta é a cidade
vendida, arrebentada, asfixiada. E uma copa do mundo tecida em fios de ouro no
meio da gangrena.
Vamos
respirando a morte cinza solta pelo escapamento. São Paulo, a civilização do
pneu. Que asfaltou e emporcalhou seus tantos rios, que retificou o Tietê, o
Pinheiros, expulsou nossas avós das várzeas e das margens serpenteadas… Hoje
conte 50 carros na avenida: nenhum passa com 4 ou 5 pessoas. É um por vez
dentro, na sua carapaça xingando o retrovisor.
Oficialmente
é tempo de chacinar indígenas e comemorar o PIB, hora de vender o que resta dos
hospitais públicos lixentos, privatizar de vez a secretaria da doença pro
cartel dos planos de saúde. O preço da condução que agrade aos milionários que
financiam eleições.
Muita
prata pra copa do mundo. E comunidades expulsas a marretada, pessoas recebendo
uma merreca que dura dois meses de aluguel. Quem não quer pagar a grana alta
pra arquibancada do espetáculo, ocupa a geral, nóis, nas ruas, enquanto a
cidade ainda não inaugura seus corredores de shopping adaptados aos automóveis.
Mas a polícia desagrada também os que querem mais do que taponas nos enquadros,
presídios lotados e um aço que não deita de vez as lepras de sempre. PM que
desgosta os que querem é cemitério pra quem incomoda sua paz garantida em
frente à TV e passos tranquilos em frente às vitrines.
Bem,
daqui a pouquinho vem o veredito: terroristas. Decretado por lei já anunciada.
Já já, que é tempo de copa capando e a propaganda não pode ser maculada, a
festa dos zilhões não pode esgarçar. Que incendeiem ou derrubem moradias,
levantem prédios de luxo e montem avenidas monitoradas, faróis a laser. O
governo comemora com os cartolas os 15 mil carros novos que por mês chegam
quentinhos nas ruas. É a economia aquecida, o progresso beijando com graxa.
Assim firmam obras gigantes e agora a licitação de 46 bilhões de reais pras
gerenciadoras operadoras do transporte público de SP. É o maior contrato da
história da cidade.
Os
milionários gozam. Tem subsídios até pra mascar chiclete. A gente migalha o que
é clausula pequena nos contratos dos castelos e gabinetes. E o partido do
governo ainda se chama PT, dos ‘trabalhadores’… piada pronta. Partida.
Daqui
da Palestina, notícias de Telaviv.
Allan
da Rosa é escritor e poeta. Autor de ‘Da Cabula’, ‘Zagaia’ e ‘Morada’
entre outros.Apresenta o programa “À Beira da Palavra’, na Rádio Usp FM aos
sábados, às 14h. É angoleiro, historiador e pedagogo. Integra o movimento de
literatura periférica paulistana. É fundador da “Edições Toró”.
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