por Carol Bazzo
em 06/06/2013
Nos
últimos meses, os povos indígenas brasileiros têm estado em evidência midiática
por diferentes motivos. Posso citar ao menos dois dos mais noticiados e mais um
terceiro, que passou quase despercebido.
Começarei
pelos primeiros, sobretudo porque estão intimamente relacionados: a votação da
PEC 215/2000 e o assassinato do índio Terena
Oziel Gabriel em Sidrolandia, Mato Grosso do Sul.
O
que uma coisa tem a ver com a outra
A
Proposta de Emenda á Constituição n. 215, apresentada em 28 de março de 2000, propõe uma “regulamentação” na
demarcação das terras indígenas, garantida pela constituição de 1988,
submetendo o processo de demarcação ao Congresso Nacional. Em resumo, os
argumentos que justificam a emenda, segundo seus proponentes, são os seguintes
(retirados do próprio texto da PEC):
1. Necessidade
de participação dos estados (via seus representantes no congresso) nas decisões
sobre as demarcações;
2. As
“exageradas” proporções das terras indígenas trariam “significativos prejuízos”
aos estados afetados;
3. As
demarcações dessas grandes áreas não estão considerando “questões relativas e
exploração da Amazônia, à segurança e ao desenvolvimento nacionais”;
4. A
decisão é de suma importância e não pode ser estabelecida por um único órgão
(FUNAI) nem pelas decisões questionáveis do poder executivo (a decisão final
cabe ao presidente, segundo a constituição atual);
Os
argumentos a favor da PEC que colhi pelo discurso comum, por sua vez, são
variações de uma crítica à FUNAI, derivada do último argumento acima citado e, em
quantidade maior, uma série de leituras problemáticas sobre o papel do índio na
sociedade brasileira que muito devem ao segundo e ao terceiro argumentos, mas
também ao uso ideológico da nossa identidade brasileira multicultural. E é
desse terceiro argumento que deriva, inclusive, o conflito que culminou na
morte de Oziel. Falaremos sobre esse fato logo.
No
fundo, o que a PEC e tais argumentos nos dizem?
O presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), participa junto com lideranças indígenas de encontro na Frente Parlamentar de Apoio aos Povos Indígenas
1. Consideremos
que os congressistas estão representando os interesses dos seus Estados. É
sabido que não existe uma vontade comum e que os interesses sociais, políticos
e econômicos são diferentes, muitas vezes conflitantes. O embate em relação ao
uso da terra praticamente funda a questão fundiária nacional e a PEC 215/2000
representa interesses totalmente contrários àqueles que estão defendidos na
constituição de 1988 e na sua garantia à demarcação de terras.
A
questão que pode ser colocada a tal argumento é, portanto: quais interesses
regionais e estaduais poderiam estar sendo negligenciados pela atual forma de
demarcação das terras indígenas, se os índios também deveriam ser representados
pelos congressistas? Quais são os interessados que estão sendo lesados? Ou,
melhor, porque o índio não é sujeito para o congressista desse estado que se
sente lesado?
Sob
tal perspectiva do congressista proponente, o índio é um fantasma da história
nacional, ele não é um sujeito de direito, muito menos um cidadão e o Estado
que ele representa não deve nada aos povos indígenas. Afinal, “o índio de hoje
anda de moto e tem celular, para que quer tanta terra?”.
2. Em
linguagem de senso comum, esse segundo argumento é o que nos remete ao famoso
ditado “muita terra, pra pouco índio” e marca o retrocesso contemporâneo em
relação à política de conservação da Amazônia das décadas de 80 e de 90, que
via na demarcação de terras indígenas e quilombolas, na demarcação de Reservas
Extrativistas e de Parques Nacionais, uma forma de conciliar crescimento e
proteção ambiental.
Essa,
explicitamente, não é mais uma preocupação comum, sobretudo porque crescimento
e desenvolvimento são praticamente antônimos de preservação e conservação.
Além
disso, tal argumento nos remete ao lado mais hipócrita e perverso da PEC
215/2000: índio não pode ter muita terra porque esse direito negligencia o
direito dos “estados” de usarem as mesmas extensas áreas em prol da nossa velha
vocação agropecuária, traduzida pelo eufemismo “desenvolvimento”, presente no
terceiro argumento. Em suma, muita terra nas mãos de povos indígenas significa
retrocesso, nos termos do tal desenvolvimento, enquanto muita terra na mão
decisória dos congressistas significa precaução contra “significativos
prejuízos”. Prejuízos para quem? Novamente aqui, a preocupação não é o índio
porque, afinal de contas, o índio é um espectro que assombra a já assombrada
vocação econômica nacional.
3. Quando
combinados, os termos “exploração da Amazônia” e “desenvolvimento nacional” são
praticamente radioativos. Exploração da Amazônia poderia ter diferentes sentidos.
Poderia significar produção sustentável, extrativismo com conservação, turismo
ambiental. Do mesmo modo, desenvolvimento poderia significar crescimento com
distribuição de renda, aumento de produtividade via uso racional e via
melhorias tecnológicas.
Mas,
não se enganem. A preocupação com a demarcação de terras justificada pelo
discurso da exploração e do desenvolvimento só tem um significado aqui:
motosserra e agropecuária.
Trabalhei
durante alguns anos pesquisando Reservas Extrativistas, Parques Nacionais e
Terras Indígenas. Posso dizer que a grande questão de pesquisa, nos anos 90,
era a preocupação com a possibilidade de convivência entre populações
tradicionais e conservação ambiental. A questão central nessas leituras,
derivadas das lutas pelo reconhecimento do direito a terra nos anos 80, que
culminam na humanista constituição de 1988, era a biodiversidade e os direitos
das minorias. A memória de Chico Mendes,
a presença marcante de Cacique Raoni, praticamente tornavam o discurso
desenvolvimentista do governo militar como um insulto à própria democracia.
Tal
preocupação, no entanto, foi praticamente apagada pela agenda governamental do
PT, mais preocupada com os números da miséria e com os números do crescimento.
Por sua vez, os números do crescimento legitimaram o velho (bota velho nisso!)
discurso do desenvolvimento via vocação agrária (latifundiária).
Foi
unir a fome com a vontade de comer e, nesse ínterim, os povos indígenas, além
de tratados como entraves ao desenvolvimento pela bancada ruralista, foram
tratados como parte dos números da miséria. Toda a política presente na defesa
pelos direitos dos povos tradicionais tornou-se, assim como a imagem do índio,
fantasmagórica: muitas irmãs Dulces e Ozieis vieram, desde então.
4. A
dúvida colocada em relação à FUNAI, que é um órgão pertencente à Administração
Pública não é ocasional nem inocente. Ela cai como uma luva para o imaginário
conservador do senso comum, que considera corrupto tudo aquilo que é ligado ao
poder público. Acontece que a FUNAI tem uma vocação indigenista histórica, que
nos remete à atuação dos irmãos
Vilas Boas, de Darci Ribeiro e tantos outros em defesa dos direitos
indígenas e tais direitos conflitam com os interesses daqueles que estão sendo
representados efetivamente pelo Congresso Nacional.
Além
disso, a FUNAI tem como membros ativos intelectuais e acadêmicos. A presidente
atual da Fundação Nacional do Índio é professora Marta Maria do Amaral Azevedo, que pesquisa, dentre outros
assuntos correlatos, justamente a demografia dos povos indígenas brasileiros.
Quem melhor para falar sobre o assunto da “muita terra para pouco índio” que
uma especialista no tema? Só que não, segundo os congressistas, a FUNAI não
teria legitimidade para isso. Por que quem tem legitimidade para falar sobre
terras nesse país são aqueles que representam os interesses do
“desenvolvimento”.
Diferentemente
do que faz parecer o argumento, a demarcação de terras não é simplesmente feita
à revelia da população, como parte da vontade do executivo via uso da FUNAI. É
um processo aberto, público, submetido a trâmites legais. Por que, então,
submeter o processo à vontade final dos congressistas? Eles não são parte da
população como um todo e não deveriam submeter-se à constituição federal e ao
judiciário, afinal, como todos nós?
Na
prática, o que a PEC 215/2000 intenta, e a atual morosidade na demarcação de
terras indígenas do governo Dilma Roussef já faz, é a consolidação dos
interesses dos “sujeitos de direito” do agronegócio que, por sua vez, se
confundem com os limites do Congresso Nacional. A morte do índio Terena é uma
consequência dessa assimetria entre cidadãos efetivos e cidadãos fantasmas.
E
quem tem legitimidade para falar sobre identidade indígena e sobre minorias?
Antropólogos? Economistas? Historiadores? Congressistas? O povo? A FUNAI?
Quem
tem legitimidade para falar sobre identidade indígena é índio.
Apesar
de não concordarem com os argumentos dos congressistas que propõem a PEC
215/2000 e com os interesses que representam, muitas pessoas também reproduzem,
sem ter consciência disso, argumentos sobre o direito à demarcação de terras
que invisibilizam o papel do índio na sociedade brasileira contemporânea como
sujeito de seus direitos.
A
leitura de que o índio não existe mais porque usa roupas e anda de carro e que,
por consequência, não existe mais em quantidade que justifique a demarcação,
está legitimando a ideia de que o índio assombra a possibilidade de
desenvolvimento econômico. Sem discutir a ideia de desenvolvimento em si e sua
incompatibilidade com a cultura indígena, que daria outro post, pensemos aqui:
O
fantasma do índio
Índios Terena
Aprendemos
na escola um discurso multiculturalista pouco crítico. Deixamos as crianças do
jardim de infância seminuas e fazemos cocares nas festividades do dia do índio,
ensinamos nas aulas de história que o Brasil é cafuzo, mameluco, mulato,
branco, índio e negro.
Aprendemos nas aulas de literatura sobre o índio
idealizado de José de Alencar e achamos que o quadro A primeira missa no Brasil, de Victor Meirelles, é
como uma representação factual do papel do índio na formação da sociedade
brasileira.
Mas
não falamos, por exemplo, sobre a terceira notícia pouco referida a que me
remeti lá no começo desse post: o massacre de povos indígenas no governo militar, retirado
do túmulo documental pela Comissão da Verdade.
Aprendemos
na escola e reproduzimos no senso comum, a imagem do índio como contribuição
genética para a nação miscigenada ou sua contribuição para o português
tupiniquim e para a culinária nacional. Mas não considerando o papel do
índio na sociedade contemporânea, sua existência enquanto sujeito de direito e
sujeito de sua própria identidade. Passamos totalmente incólumes a um massacre
que não data de Pero Vaz de Caminha, mas de décadas atrás.
Simplesmente
culpamos os mortos por sua atuação política, como no caso de Oziel: afinal, o
que fazia um índio vestido, armado, lutando pela demarcação de uma terra se o
índio que aprendi na escola nem existe mais? É o mesmo raciocínio propagado por
muitos dos veículos de comunicação de massa quando consideraram os Terena como
massa de manobra nas mãos de sei lá que forças contrárias ao desenvolvimento.
Antropologicamente
e historicamente falando, a negação da identidade é um instrumento de poder do
dominante. O que fazemos com os índios no Brasil tratando-os como espectros da nação
miscigenada ou simplesmente desqualificando-os pelas roupas ou tecnologias que
usam é, na verdade, uma grande violência. Repetindo esse discurso dominante,
estamos dando voz às políticas que retrocedem décadas de participação política
dessas populações e de luta pela preservação da biodiversidade, como é
explicitamente o caso da PEC 215/2000.
Enxergando
o índio como “massa de manobra” ou como entrave à civilização, acabamos
enfiando os povos indígenas brasileiros na gaveta da nossa identidade multicultural
idealizada, na mesma pasta ocupada pelo índio massacrado pelo governo militar
ou pelo índio massacrado no período colonial. O problema é que, vendo o outro
dessa forma, possibilitamos que qualquer um de nós faça parte de um arquivo
morto e apolítico.
Negar
o outro como sujeito de direito e sujeito de sua própria história, além de uma
sacanagem, não é a melhor estratégia política, sobretudo em um país com tão
poucos cidadãos efetivos…
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