Por Conceição Lemes
05/06/2013 – VIOMUNDO
O preconceito, o oportunismo, o conservadorismo e a
ignorância venceram mais uma vez a saúde pública e violaram direitos.
O Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do
Ministério da Saúde lançou no final de semana nas redes sociais uma campanha
destinada às profissionais do sexo. Com o tema “Sem vergonha de usar
camisinha”, o objetivo é reduzir o estigma da prostituição da associada à
infecção pelo HIV e aids.
O material da ação – banners e vídeos – foi
feito a partir de uma Oficina de Comunicação em Saúde para Profissionais do
Sexo, realizada em João Pessoa (PB), de 11 a14 de março.
As peças da campanha trazem mensagens contra o
preconceito, sobre a necessidade de prevenção da infecção pelo HIV e demais
doenças sexualmente transmissíveis e a vontade de as prostitutas serem
respeitadas. Médicos e especialistas na prevenção de DST-Aids elogiaram o
material.
Porém, nessa terça-feira 4, o ministro da
Saúde, Alexandre Padilha, cometeu dois desatinos, após protestos e pressões da
bancada evangélica.
Primeiro, mandou tirar do ar, inclusive da página
do Departamento de DST/Aids, uma das peças da campanha que tinha os seguintes
dizeres: “sou feliz sendo prostituta”. A peça trazia o logotipo do ministério e
havia sido divulgada no twitter. As chamadas com destaque na página do
Departamento também sumiram.
Segundo, no final da tarde, demitiu sumariamente o
diretor do Departamento de DST/Aids do Ministério, o dr. Dirceu Greco,
infectologista de renome mundial e professor titular da Faculdade de Medicina
da UFMG. É um dos nomes históricos da luta contra a aids e um dos maiores
especialistas em bioética e ética em pesquisas no Brasil.
Em nota, a Assessoria de Comunicação Social do
Ministério da Saúde justificou:
As
peças expostas no site do Departamento de DST/Aids não passaram por análise e
aprovação da Assessoria de Comunicação Social, como ocorre com todas as
campanhas do Ministério da Saúde, de todos os departamentos. Logo, o
descumprimento das normas previamente estabelecidas pelo Ministério da Saúde
justificou a retirada das peças do site do departamento e de seus perfis nas
redes sociais e a apuração das responsabilidades.
Em entrevistas à mídia, Padilha disse:
Enquanto
eu for ministro, não acho que essa tem que ser uma mensagem passada pelo
ministério. Nós teremos mensagens restritas à orientação sobre a prevenção
contra as doenças sexualmente transmissíveis. O papel do Ministério da Saúde é
estimular a prevenção das DSTs.
Não
existirá nenhum material assinado pelo Ministério da Saúde que não seja
material restrito às orientações de como se prevenir das DSTs.
“DESDE O ALCENI GUERRA, NÃO ASSISTIMOS ALGO
SEMELHANTE”
“Quando soube da campanha, fiquei animado. Pensei: ‘Tomara
que o ministro Padilha tenha voltado atrás nas ações de prevenção, pensando nas
pessoas vulneráveis às infecções por DSTs e aids’”, afirma o pesquisador,
ativista e professor Mario Scheffer, presidente do Grupo Pela Vidda de São
Paulo. “Não demorou 24 horas para ver que o Padilha continua o mesmo.”
“É retrocesso histórico”, denuncia Scheffer. “Desde
a época do Alceni Guerra, ministro da Saúde do então presidente Collor,
não assistimos algo semelhante.”
Alceni foi ministro de 15 de março de 1990 a 23 de
janeiro de 1992. Na época, fez uma campanha baseada no terrorismo e no
preconceito, tipo “a aids vai te pegar”, “a aids vai te matar”, que afastava as
pessoas. Consequentemente, elas não se sentiam vulneráveis, não se protegiam e
a doença disseminou.
A ação desastrada de Alceni foi há mais de 20 anos,
quando existia apenas o AZT. Portanto, na fase pré-coquetel antirretroviral.
“O Brasil conseguiu uma boa resposta à
aids graças à combinação de ações afirmativas – como defesa de
direitos civis, combate ao preconceito, aumento da autoestima das populações
afetadas — com ações de saúde pública — distribuição de preservativos, acesso
ao teste de HIV e tratamento com remédios antirretrovirais”, alerta
Scheffer. “É o que chamamos de prevenção combinada. Na prevenção em aids,
não podemos separar direitos humanos de saúde pública. Agora, uma
dessas pernas foi quebrada. A epidemia se concentra em algumas populações e
o Padilha ficará para a história como o ministro que jogou isso para baixo
do tapete, que colocou o falso moralismo acima das evidências científicas. A
saúde pública está pagando um preço muito alto pela ambição pessoal do
Ministro em ser candidato a governador.”
“VIOLAÇÃO
DE DIREITOS GERAM MAIS DOENÇAS;MORTES E INFECÇÕES DESNECESSÁRIAS VIRÃO”
Em pouco mais de um ano, é a terceira vez que
Padilha censura material destinado à prevenção de DST/Aids.
A primeira, por determinação do governo, recolheu
um kit dirigido a adolescentes. O material abordava temas como homossexualidade,
drogas e gravidez. O ministro da Saúde, assim como fez nessa terça-feira,
justificou na época que a distribuição tinha sido feita à revelia dele.
A segunda foi no carnaval de 2012. Proibiu a
exibição de um vídeo com um casal de jovens gays, produzido para a exibição em
TV aberta. Alegou depois que se destinava a circulação restrita.
“É totalmente inaceitável a proibição do Padilha”,
diz, chocada, a pesquisadora e professora Vera Paiva, do Núcleo de Pesquisas em
Aids da Faculdade de Psicologia da USP. “Fez isso em nome de quê? Valores
pessoais? As prostitutas não têm direito à saúde e de serem felizes?
Criminalizar como bandidos sem direitos os que não concordam com o seu projeto
de felicidade? A decisão dele é injusta. É censura de ações baseadas em
rigorosa evidência técnico-científica. ”
“É violação de direitos pelo Estado, inclusive do
direito à saúde”, avisa a pesquisadora da USP. “É negligência na promoção e
proteção do direito à não discriminação.”
“Padilha não quer prostitutas felizes? Quer o quê?
Prostitutas tristes?”, questionou ontem, em Brasília,Elizabeth Franco, da
USP, numa reunião de pesquisadores. “Nós queremos putas alegres! Putas
tristes só aceitas no título da obra de Gabriel Garcia Márquez!.”
“O exército de crentes e carolas que hoje manda nas
grandes decisões nacionais se insurgiu contra a campanha, acionou seus lobistas
de plantão e, outra vez, colocou o governo de joelhos”, atenta o
jornalista Leandro Fortes em texto
no Facebook, onde também postou a imagem abaixo. ”Agora, calaram as
putas, condenadas a serem tristes por decreto. Feliz mesmo é Feliciano, que
logo se apressou a cumprimentar o ministro, no Twitter, por mais essa vitória
da moral e dos bons costumes.”
“Só que violação de direitos gera mais doenças”,
adverte Vera Paiva. “Mortes e infecções desnecessárias virão, como no caso dos
jovens homossexuais.”
SOLIDARIEDADE
A DIRCEU GRECO E DEFESA INEQUÍVOCA DOS DIREITOS HUMANOS
Logo após a confirmação da demissão do dr. Dirceu
Greco, Toni Reis, secretário de Educação da ABGLT, divulgou esta nota:
“Confirmado:
Dirceu Greco, Diretor do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais foi
exonerado sumariamente pelo Ministério da Saúde (causa, a felicidade da
prostituta acima)
Todos
e todas têm direito de ser feliz no Brasil, inclusive as prostitutas
(independente do que elas vendem…).
Nossa mais irrestrita solidariedade ao
Dr. Dirceu Greco e equipe – estamos consternados com a
notícia.
Felicidade é um
direito humano. Quem se ama se cuida.
Plagiando
a obra no Caminho com Maiakowski: ’Primeiro foram os gays a serem
censurados. Eu não era gay, não reagi. Depois, censuraram as prostitutas. Eu
não era prostituta, não reagi. Cercearam os índios. Eu não era índio, não
reagi. Até que arrancaram o Estado laico, e já não podemos dizer nada”.
No início desta tarde, de junho, Dirceu Greco
enviou esta mensagem a todos os seus colaboradores:
“Esta
é para comunicar que fui destituído e rapidamente exonerado pelo secretário de
Vigilância em Saúde por ordem do ministro da Saúde, por discordâncias do
ministério com a condução da política de direitos humanos e valorização de
populações em situação de maior vulnerabilidade, que não coadunava com a
política conservadora do atual governo.
Agradeço
o apoio durante minha gestão e a solidariedade neste momento de transição.
Volto para Belo Horizonte, para minhas atividades como Professor Titular de
Clínica Médica e na Bioética.
Espero
continuarmos todos juntos nesta luta, não só para o controle da epidemia, para
a qual já existe instrumental técnico, mas principalmente enfrentando as
disparidades, combatendo o estigma, a discriminação e a violência, e com defesa
inequívoca dos direitos humanos.
Relembro
que a política brasileira de enfrentamento das DST, Aids e Hepatites Virais,
reconhecida nacional e internacionalmente, é maior que o Departamento e deve
ser mantida como política de Estado e não só de governo”.
Com base nos meus 32 anos como repórter
especializada em saúde e que acompanhou toda a evolução da aids no Brasil, ouso
dizer: se, por nossa infelicidade, a epidemia tivesse surgido neste momento, o
Brasil nunca teria se tornado referência mundial na prevenção de HIV/aids.
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