segunda-feira, 24 de junho de 2013

Carta aberta do Movimento Passe Livre São Paulo à presidenta


À Presidenta Dilma Rousseff,

Ficamos surpresos com o convite para esta reunião. Imaginamos que também esteja surpresa com o que vem acontecendo no país nas últimas semanas. Esse gesto de diálogo que parte do governo federal destoa do tratamento aos movimentos sociais que tem marcado a política desta gestão. Parece que as revoltas que se espalham pelas cidades do Brasil desde o dia seis de junho tem quebrado velhas catracas e aberto novos caminhos.
O Movimento Passe Livre, desde o começo, foi parte desse processo. Somos um movimento social autônomo, horizontal e apartidário, que jamais pretendeu representar o conjunto de manifestantes que tomou as ruas do país. Nossa palavra é mais uma dentre aquelas gritadas nas ruas, erguidas em cartazes, pixadas nos muros. Em São Paulo, convocamos as manifestações com uma reivindicação clara e concreta: revogar o aumento. Se antes isso parecia impossível, provamos que não era e avançamos na luta por aquela que é e sempre foi a nossa bandeira, um transporte verdadeiramente público. É nesse sentido que viemos até Brasília.
O transporte só pode ser público de verdade se for acessível a todas e todos, ou seja, entendido como um direito universal. A injustiça da tarifa fica mais evidente a cada aumento, a cada vez que mais gente deixa de ter dinheiro para pagar a passagem. Questionar os aumentos é questionar a própria lógica da política tarifária, que submete o transporte ao lucro dos empresários, e não às necessidades da população. Pagar pela circulação na cidade significa tratar a mobilidade não como direito, mas como mercadoria. Isso coloca todos os outros direitos em xeque: ir até a escola, até o hospital, até o parque passa a ter um preço que nem todos podem pagar. O transporte fica limitado ao ir e vir do trabalho, fechando as portas da cidade para seus moradores. É para abri-las que defendemos a tarifa zero.
Nesse sentido gostaríamos de conhecer o posicionamento da presidenta sobre a tarifa zero no transporte público e sobre a PEC 90/11, que inclui o transporte no rol dos direitos sociais do artigo 6o da Constituição Federal. É por entender que o transporte deveria ser tratado como um direito social, amplo e irrestrito, que acreditamos ser necessário ir além de qualquer política limitada a um determinado segmento da sociedade, como os estudantes, no caso do passe livre estudantil. Defendemos o passe livre para todas e todos!
Embora priorizar o transporte coletivo esteja no discurso de todos os governos, na prática o Brasil investe onze vezes mais no transporte individual, por meio de obras viárias e políticas de crédito para o consumo de carros (IPEA, 2011). O dinheiro público deve ser investido em transporte público! Gostaríamos de saber por que a presidenta vetou o inciso V do 16º artigo da Política Nacional de Mobilidade Urbana (lei nº 12.587/12) que responsabilizava a União por dar apoio financeiro aos municípios que adotassem políticas de priorização do transporte público. Como deixa claro seu artigo 9º, esta lei prioriza um modelo de gestão privada baseado na tarifa, adotando o ponto de vista das empresas e não o dos usuários. O governo federal precisa tomar a frente no processo de construção de um transporte público de verdade. A municipalização da CIDE, e sua destinação integral e exclusiva ao transporte público, representaria um passo nesse caminho em direção à tarifa zero.
A desoneração de impostos, medida historicamente defendida pelas empresas de transporte, vai no sentido oposto. Abrir mão de tributos significa perder o poder sobre o dinheiro público, liberando verbas às cegas para as máfias dos transportes, sem qualquer transparência e controle. Para atender as demandas populares pelo transporte, é necessário construir instrumentos que coloquem no centro da decisão quem realmente deve ter suas necessidades atendidas: os usuários e trabalhadores do sistema.
Essa reunião com a presidenta foi arrancada pela força das ruas, que avançou sobre bombas, balas e prisões. Os movimentos sociais no Brasil sempre sofreram com a repressão e a criminalização. Até agora, 2013 não foi diferente: no Mato Grosso do Sul, vem ocorrendo um massacre de indígenas e a Força Nacional assassinou, no mês passado, uma liderança Terena durante uma reintegração de posse; no Distrito Federal, cinco militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) foram presos há poucas semanas em meio às mobilizações contra os impactos da Copa do Mundo da FIFA. A resposta da polícia aos protestos iniciados em junho não destoa do conjunto: bombas de gás foram jogadas dentro de hospitais e faculdades; manifestantes foram perseguidos e espancados pela Polícia Militar; outros foram baleados; centenas de pessoas foram presas arbitrariamente; algumas estão sendo acusadas de formação de quadrilha e incitação ao crime; um homem perdeu a visão; uma garota foi violentada sexualmente por policiais; uma mulher morreu asfixiada pelo gás lacrimogêneo. A verdadeira violência que assistimos neste junho veio do Estado – em todas as suas esferas.
A desmilitarização da polícia, defendida até pela ONU, e uma política nacional de regulamentação do armamento menos letal, proibido em diversos países e condenado por organismos internacionais, são urgentes. Ao oferecer a Força Nacional de Segurança para conter as manifestações, o Ministro da Justiça mostrou que o governo federal insiste em tratar os movimentos sociais como assunto de polícia. As notícias sobre o monitoramento de militantes feito pela Polícia Federal e pela ABIN vão na mesma direção: criminalização da luta popular.
Esperamos que essa reunião marque uma mudança de postura do governo federal que se estenda às outras lutas sociais: aos povos indígenas, que, a exemplo dos Kaiowá-Guarani e dos Munduruku, tem sofrido diversos ataques por parte de latifundiários e do poder público; às comunidades atingidas por remoções; aos sem-teto; aos sem-terra e às mães que tiveram os filhos assassinados pela polícia nas periferias. Que a mesma postura se estenda também a todas as cidades que lutam contra o aumento de tarifas e por outro modelo de transporte: São José dos Campos, Florianópolis, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, Goiânia, entre muitas outras.
Mais do que sentar à mesa e conversar, o que importa é atender às demandas claras que já estão colocadas pelos movimentos sociais de todo o país. Contra todos os aumentos do transporte público, contra a tarifa, continuaremos nas ruas! Tarifa zero já!
Toda força aos que lutam por uma vida sem catracas!

Movimento Passe Livre São Paulo
24 de junho de 2013

Sob pressão, governo suspende estudos de barragens no rio Tapajós


Por Ruy Sposati 
23/06/2013

Pressionado por dois meses de enfrentamento e resistência dos indígenas Munduruku, o governo federal suspendeu as pesquisas da região do rio Tapajós para a construção de hidrelétricas. O anúncio foi feito durante reunião em praça pública no final da tarde deste domingo, 23, em Jacareacanga, extremo oeste do Pará. Os pesquisadores que estavam em área indígena deixaram a cidade.
“A Funai e o governo federal como um todo está suspendendo qualquer pesquisa que estiver sendo feita aqui na região de vocês”, afirmou a assessora da presidência da Fundação Nacional do Índio Lucia Alberg, apesar do ministro Gilberto Carvalho ter anunciado publicamente que não suspenderia nem obras, nem estudos.
“Estamos nos sentindo muito felizes”, aponta o chefe dos guerreiros Paygomuyatpu Munduruku. “Ela [Funai] ainda não nos deu nenhuma prova disso, estamos esperando uma prova, mas estamos muito satisfeitos com o que ela disse”. Em maio e junho, os indígenas Munduruku realizaram um sem número de ações exigindo a suspensão das obras e estudos de barragens nos rios Tapajós e Teles Pires, onde vivem 13 mil pessoas do povo Munduruku.
Em maio, depois de uma assembleia que reuniu mais de 200 mulheres, caciques, lideranças e guerreiros, os Munduruku marcharam pelas ruas de Jacareacanga e juntaram-se a outros indígenas da bacia do Tapajós e do médio Xingu. Realizaram duas ocupações que paralisaram as obras da usina hidrelétrica Belo Monte por 17 dias, viajaram à capital federal, onde realizaram uma marcha, ocuparam a sede da Funai e fizeram protestos no Ministério de Minas e Energia e no Palácio do Planalto. Na última sexta-feira, um grupo de 40 guerreiros expulsou cerca de 25 pesquisadores (e deteve três deles) da empresa Concremat, prestadora de serviços do Grupo de Estudos Tapajós, consórcio composto por Camargo Correia, GDF Suez e Eletrobras, entre outros.
Neste contexto, os Munduruku sofreram um processo de criminalização, difamação e repressão por parte do governo federal. Notas públicas, declarações à imprensa e processos judiciais acusavam os indígenas de criminosos e mentirosos, questionando a legitimidade das lideranças Munduruku, que entraram com interpelação criminal contra declarações do ministro Gilberto Carvalho.

Pesquisadores
“Nós liberamos os pesquisadores. A gente não quer mais vê-los aqui”, explica a liderança Maria Leusa Kabá. “Se eles voltarem, nós vamos tirar a cabeça dos pesquisadores. Nós somos guerreiros. Nossos guerreiros antigos são conhecidos por serem cortadores de cabeças. Nós não esquecemos nosso passado”, afirma Leusa.
“Vamos continuar na nossa luta. A gente não quer que eles [estudos] sejam suspensos. Nós queremos que os estudos e as obras sejam cancelados. A suspensão é uma vitória parcial”, conclui Paygomuyatpu.

Munduruku expulsam pesquisadores de terra indígena em Jacareacanga

Por Ruy Spostati
Cerca de 25 pesquisadores foram retirados da terra indígena Munduruku, pelos próprios indígenas, nesta sexta, 22 em Jacareacanga, extremo oeste do Pará. Os técnicos coletavam amostras da fauna e flora da região para os estudos ambientais e de viabilidade das usinas hidrelétricas do rio Tapajós, que afetarão o território Munduruku.
Segundo os indígenas, os pesquisadores usavam uniformes da empresa Concremat, que presta serviços para o Consórcio Grupo de Estudos Tapajós, liderado pelas empresas Camargo Correia, GDF Suez, Eletrobras e Eletronorte, entre outras.
“O que nós fizemos foi uma ação política, de resistência. Nós soubemos que tinha pesquisadores na região, há pelo menos dois meses… Fomos atrás deles e trouxemos para a cidade. Foi isso o que aconteceu”, explica Valdenir Munduruku, que participou da operação.
“Eles estavam divididos em duas equipes, uma de pesca e uma de mata. Nós encontramos a equipe de pesca próximo a aldeia Amanhanã. Trouxemos o chefe das equipes para Jacareacanga, com outros dois, para que eles chamassem todos os pesquisadores pra cidade”, relata.
“Tudo correu bem. Eles [os pesquisadores] não imaginavam… Conversamos com eles, foi tudo tranquilo. Agora estamos esperando todos chegarem, e coordenador que vem de Itaituba. Não vamos deixar continuar esse trabalho”, diz Valdenir.
Segundo pronunciamento do porta-voz do cacique geral do povo Munduruku, Jairo Saw, “os pesquisadores já estão na quarta etapa de estudo, já na fase final e previsto para apresentarem o relatório final do EIA – RIMA no mês de novembro”.
Em nota pública lançada hoje, os Munduruku afirmaram que o governo já sabia que os indígenas não permitiram a entrada de pesquisadores no território. “Nós vamos liberar pacificamente este grupo, mas alertamos que não toleraremos mais essa postura por parte do governo federal e dos empreendedores que querem construir barragens”, pontua o documento, que também exige a suspensão “de todos os estudos e pesquisas relacionados às barragens nos rios Tapajós e Teles Pires” por parte do governo federal.
Os indígenas temem uma ação violenta da Força Nacional, que chegou hoje em Jacareacanga, em um avião da Força Aérea Brasileira. “Esperamos que esses militares não tenham vindo para nos atacar, mas sim para defender o nosso direito pela nossa terra, a lei e a Constituição”, argumenta a carta.
Leia a declaração dos Munduruku na íntegra:

Declaração Munduruku: pesquisadores, não entrem nas nossas terras
Nós, Munduruku do rio Tapajós, apreendemos um grupo de pesquisadores que estava ilegalmente em nossa terra. Eles estavam coletando animais, plantas e amostras para a construção de barragens nas nossas aldeias. Nós apreenderemos tudo o que foi coletado por eles, todos os materiais, tudo o que foi retirado e anotado das terras indígenas.
Nós deixamos claro para o governo federal que não iríamos deixar entrar nenhum pesquisador nos nossos territórios.
Nós vamos liberar pacificamente este grupo, mas alertamos que não toleraremos mais essa postura por parte do governo federal e dos empreendedores que querem construir barragens.
Um avião búfalo do Exército/FAB pousou hoje em Jacareacanga. Esperamos que esses militares não tenham vindo para nos atacar, mas sim para defender o nosso direito pela nossa terra, a lei e a Constituição. Porque quem está errado é o governo. Nós estamos certos.
Exigimos que o governo suspenda todos os estudos e pesquisas relacionados às barragens nos rios Tapajós e Teles Pires. Nós sabemos que as pesquisas são o primeiro passo para viabilizar a construção das hidrelétricas. Nós não vamos deixar as pesquisas e estudos acontecerem. Se o governo não suspender, nós daremos um jeito. Sugerimos aos pesquisadores que não entrem nas nossas terras.

Estão todos avisados.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Amazônia em perigo: o novo marco da Mineração

Por Telma Monteiro*


No dia 18 de junho, a presidente Dilma Rousseff mandou o novo marco da mineração brasileira para apreciação no Congresso. Lógico que nesse pacote da mineração o governo aproveitou para criar o Conselho Nacional de Política Mineral e a Agência Nacional de Mineração (ANM). Novos órgãos, portanto novos cargos para negociar com os partidos políticos. Afinal, 2014 será ano eleitoral.
Foi em 2011 que o Ministério de Minas e Energia (MME) resolveu lançar a discussão do novo marco da mineração brasileira em que apontou burocracia e "fraqueza" do poder concedente como as principais dificuldades que atingem o setor. Entre os objetivos propostos para o novo marco legal estariam o fortalecimento do Estado para ter soberania sobre os recursos minerais, propiciar o maior aproveitamento das jazidas e atrair investimentos para o setor mineral. Tudo indica que os investidores já estão a postos.
A principal mudança no Código de Mineração será o mais absoluto domínio direto do governo sobre as riquezas minerais. Ele vai leiloar o direito de exploração que, atualmente, é conferido por ordem de chegada. Aquilo que já era ruim vai ficar pior.
As alterações previstas no setor mineral no Brasil, no entanto, não vão mudar em nada as licenças para pesquisa e exploração de novas jazidas já concedidas pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM).  O filão minerário no Brasil localizado principalmente na Amazônia tem mais de 5 mil alvarás de pesquisa e 55 portarias de lavra que estão em processo de aprovação no DNPM.
Para o Ministério de Minas e Energia, tocado por Edison Lobão, sob a chefia do coronel José Sarney, a aprovação do Código da Mineração significa aumento de poder. Como na energia elétrica, o MME passa a ser o controlador direto dos leilões de concessões de exploração mineral. Essas concessões de exploração mineral, segundo o novo marco legal, passam a ser de 40 anos, prorrogáveis por mais 20.
Atualmente, grandes empresas internacionais estão "atacando" vorazmente as regiões onde estão as maiores riquezas minerais no Brasil. Uma delas é onde está sendo construída a hidrelétrica Belo Monte, na Volta Grande do Xingu; outra é a Província Mineral do Tapajós, justamente onde o governo planeja a construção do Complexo Hidrelétrico do Tapajós. Coincidência ou não, as empresas são canadenses e têm vários projetos para exploração de ouro nessas áreas.


*Publicado originalmente no Blog da Telma Monteiro

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Licença ambiental pode atrasar leilão da usina São Manoel

Por André Borges - Valor Econômico
18/06/2013

Maurício Tolmasquim: "Estamos esperando a situação se acalmar um pouco"



O governo está com dificuldades para tocar seu plano para a área energética. O maior empreendimento hidrelétrico que o governo pretende leiloar até o fim deste ano, a usina de São Manoel, prevista para o rio Teles Pires, tem chances mínimas de entrar, de fato, na disputa marcada para dezembro pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE).

A usina de 700 megawatts, prevista para ser erguida na divisa dos Estados do Mato Grosso e Pará, está com seu processo de licenciamento ambiental inativo no Ibama, conforme apurou o Valor. A retomada desse processo de licenciamento vinha sendo ensaiada pelo governo nos últimos meses, mas os planos foram interrompidos devido a uma série de protestos indígenas que se espalharam pelo país.

São Manoel tem precedentes. Em outubro de 2011, sete servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai) e da EPE foram mantidos como reféns em uma das aldeias da terra kayabi. O governo afirma que a usina não afeta diretamente terras indígenas demarcadas, situação que impossibilitaria a hidrelétrica de ir à leilão. Segundo a EPE, o projeto está previsto para uma área que fica a menos de 2 km do limite declarado da terra kayabi. Os índios, no entanto, garantem que a barragem alagaria suas terras e mexeria diretamente com comunidades que vivem nas margens do Teles Pires.

Em entrevista ao Valor, o presidente da EPE, Maurício Tolmasquim, admitiu os conflitos indígenas dificultam o licenciamento de São Manoel. No balanço do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), anunciada na semana passada, o governo afirma que serão realizadas audiências públicas até o dia 30 de julho. Tolmasquim já descarta esse prazo. "Queremos fazer a audiência pública de São Manoel a tempo de a usina ir a leilão em dezembro, mas isso não vai ocorrer em julho, o cenário está complicado", comentou. "Estamos esperando essa situação se acalmar um pouco, para fazer a audiência em um momento menos conflituoso. Hoje esse encontro não tem data para acontecer", disse.

Apesar das dificuldades, Tolmasquim afirma que o governo vai garantir a oferta de usinas hidrelétricas menores para os dois leilões deste ano e que, no segundo semestre do ano que vem, vai leiloar a usina de São Luiz do Tapajós, último grande projeto hidrelétrico planejado pelo governo para a região amazônica.

Para conseguir colocar uma usina hidrelétrica em leilão, o governo precisa obter, antecipadamente, a licença prévia ambiental daquele empreendimento. Essa exigência funciona como uma garantia para o investidor, porque atesta a viabilidade socioambiental e econômica do negócio. É diferente do modelo aplicado, por exemplo, em um leilão de ferrovia, porto ou rodovia, em que a obrigação de licenciamento ambiental prévio cabe ao empreendedor que vencer a disputa pelo negócio que assumiu.

São Manoel foi incluída no plano decenal de expansão de energia como uma das usinas que deveriam iniciar sua geração em 2015. Se for leiloada no fim deste ano, a usina, orçada em R$ 2,2 bilhões, ficaria pronta somente em 2018.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Qual ditadura tinha acabado?


Revista Fórum

Cada explosão que trepidava nosso chão obedecia ao chilique dos jornais graúdos. Nos tiros de cima pra baixo, nas bombas em quem tava ajoelhado ou sentado no chão, entre os fachos luminosos que jogaram na gente, pesava a ditadura militar cotidiana, escorrendo. Ditadura que só acabou em alguns bairros de bacanas. Circulou na net o vídeo de um PM quebrando o vidro da própria viatura, forjando a tal baderna. Já há suspeita forte de infiltrados, assumidos pela própria corporação, incitando a violência.
Muita gente aglomerada. E aqui só pode multidão pros palcos da Virada Cultural, espectadores autorizados consumindo a folia oficial. Ou dentro da condução. Ou em corredor de hospital.
Ah, a boniteza de ser 20 mil na rua cantando ‘o povo acordoooou’. Ali no centrão tomado encontrei meu povo pelejando. Nós, uma renca dos saraus, teatros e das ocupações das quebradas. Abracei professores do fundão da cidade. Malungagem da Brasilândia, Parque São Luís, Americanópolis, Mauá, Jardim João 23, Heliópolis, Cidade Tiradentes. Muitos cantos. Abraços com gana, os de sempre. Mas depois encurralados, nós na mira do gás, o desespero acuando e as debandadas, o fervo. Akins, meu aliado de fé, sumiu. Apenas no dia seguinte soubemos um do outro. O povo rechaçado seguia entre as explosões. Fizemos um circuito cascudo da República à República. Da Consolação à Marechal Deodoro, mas desguiados pela Augusta, pela Bela Cintra, pelas Clínicas e o Pacaembu. Nunca vou esquecer da solidariedade no miolo do pânico. Katiara, Choco e eu agarrados por toda a travessia em chamas, se amparando, se fortalecendo. O vinagre partilhado com quem chegava pra embeber a manga e o lenço. E a alegria dos reencontros depois das dispersões pelos rojões… Me vi nos outros olhos vermelhos, na agonia da nossa garganta ardida pela nuvem de guerra, na face úmida dos outros parceiros de levante. Quando tocarei de novo no desconhecido que ajudamos a levantar, capengando entre as labaredas? Dez da noite a paz sorriu no peito, meio amuada mas sorriu: encontrei o Paulo do Perifatividade quase inteiro, mancava pela bala de borracha na coxa, e o Leko junto, esse com saúde no fim do terror.

Um hospital privado, caríssimo, na Avenida Paulista foi impedido de medicar manifestantes feridos, arrastados pra fora pelos policiais. Igualzinho nos açougues das periferias de SP, tantas vezes proibidos de atender os baleados da madrugada. Uma viatura na Rua Maceió atropelou um rapaz, trincou seus pés e com cassetete em punga mandou o cara levantar e vazar. Jovens espancadas no Pacaembu por soldados machos, mesmo rendidas, com seus braços erguidos. Motos e viaturas caçaram pessoas por ruas dos Jardins, antes de autuá-las por formação de quadrilha.
A velha história. A polícia paulista, a truculência dos comandantes que empesteia o mais novo recruta, sua formação fascista que anistia a si mesma com os arranjos e alívios dos tribunais militares. Atiram crentes que no dia seguinte seus jornalistas conchavados vão passar um pano em sua sujeira. Mas algo deu errado no CEP. Os cabos esqueceram que estão no centro, com câmeras, socando gente influente e esmurrando seus escrivães. Os tenentes não lêem os editoriais? Ou então leram e seguiram na medula o tal rigor que a mídia graúda atiçou e exigiu pela honra bandeirante…
Há uma tonelada de jornais graúdos e de canais de tevê que não arreia pros seus anunciantes de automóveis, não pode contrariar os banqueiros que lhes sustentam, não pode deixar de dizer amém pros seus donos deputados, especialistas em lamber coturnos e  tesourar a real. Mídia que diz se chocar com o que foi (foi? não é mais?) ditadura militar, que exalta o espírito da luta na Tunísia, na Turquia, em Plutão… mas que aqui chama de vândalos quem grita.
Ironia amarga e dolorosa um bocado dos jornalistas dessas redações agora esfacelados nas manifestações. É tempo de demissões em massa nas redações graúdas, sim? Logo a polícia será contratada para escrever as pautas, otimizando o serviço. Os fardas atenderam perfeitinho aos clamores editoriais chamando a ordem pelos cascos e espadas da cavalaria. Não foi o braço escrito dos vampiros que se arretou com a tal ‘atitude moderada’ dos comandantes milicos? Foi a Folha de São Paulo que exigiu ação enérgica pela honra da sociedade? E teve seis jornalistas seus entre os gravemente avariados. É um tiquinho trágico do que toda noite arrasta meus irmãos pra vala e as famílias pro desespero. Uma lambida do vinagre de 513 anos nos bairros pretos. Penso nos meus parceiros que não tem advogado nem câmera a postos, nem moeda pra fiança… penso nos meus que enterramos e que no jornal entraram como marginais em troca de tiros. Diariamente.
Mas agora ali brota uma noticia indignada. E nada há pra comemorar ou sorrir por isso.
Já os diários europeus se dizem surpresos. Frisam que aqui nunca houve luta nas ruas, nas matas, nas praias. Que falácia. Noticiam com susto a rebeldia no meio do tal otimismo brasileiro, propalado em plena era da felicidade comprada a prazo. E os jovens, tão tirados de alienados, de sem compromisso, agora são alçados a inimigo ou exemplo nacional.
Não são só os 20 centavos de aumento. É mais do que exigir um busão que nos espreme ou um metrô que não chega nas beiradas da cidade e que manda se lascar quem não dorme à meia-noite. 3 reais ou 3 e 20 é o mesmo assalto. Nossa chama vai ainda além desse litro de leite, desse saco de feijão que deixamos a cada vez que rodamos a catraca do vagão de bodes em que nos entuchamos. A pauta é a cidade vendida, arrebentada, asfixiada. E uma copa do mundo tecida em fios de ouro no meio da gangrena.
Vamos respirando a morte cinza solta pelo escapamento. São Paulo, a civilização do pneu. Que asfaltou e emporcalhou seus tantos rios, que retificou o Tietê, o Pinheiros, expulsou nossas avós das várzeas e das margens serpenteadas… Hoje conte 50 carros na avenida: nenhum passa com 4 ou 5 pessoas. É um por vez dentro, na sua carapaça xingando o retrovisor.
Oficialmente é tempo de chacinar indígenas e comemorar o PIB, hora de vender o que resta dos hospitais públicos lixentos, privatizar de vez a secretaria da doença pro cartel dos planos de saúde. O preço da condução que agrade aos milionários que financiam eleições.
Muita prata pra copa do mundo. E comunidades expulsas a marretada, pessoas recebendo uma merreca que dura dois meses de aluguel. Quem não quer pagar a grana alta pra arquibancada do espetáculo, ocupa a geral, nóis, nas ruas, enquanto a cidade ainda não inaugura seus corredores de shopping adaptados aos automóveis. Mas a polícia desagrada também os que querem mais do que taponas nos enquadros, presídios lotados e um aço que não deita de vez as lepras de sempre. PM que desgosta os que querem é cemitério pra quem incomoda sua paz garantida em frente à TV e passos tranquilos em frente às vitrines.
Bem, daqui a pouquinho vem o veredito: terroristas. Decretado por lei já anunciada. Já já, que é tempo de copa capando e a propaganda não pode ser maculada, a festa dos zilhões não pode esgarçar. Que incendeiem ou derrubem moradias, levantem prédios de luxo e montem avenidas monitoradas, faróis a laser.  O governo comemora com os cartolas os 15 mil carros novos que por mês chegam quentinhos nas ruas. É a economia aquecida, o progresso beijando com graxa. Assim firmam obras gigantes e agora a licitação de 46 bilhões de reais pras gerenciadoras operadoras do transporte público de SP. É o maior contrato da história da cidade.
Os milionários gozam. Tem subsídios até pra mascar chiclete. A gente migalha o que é clausula pequena nos contratos dos castelos e gabinetes. E o partido do governo ainda se chama PT, dos ‘trabalhadores’… piada pronta. Partida.
Daqui da Palestina, notícias de Telaviv.

Allan da Rosa é escritor e poeta. Autor de ‘Da Cabula’, ‘Zagaia’ e ‘Morada’ entre outros.Apresenta o programa “À Beira da Palavra’, na Rádio Usp FM aos sábados, às 14h. É angoleiro, historiador e pedagogo. Integra o movimento de literatura periférica paulistana. É fundador da “Edições Toró”.

PARTICIPE - Roda de Conversa: Hidrelétricas na Amazônia e a Luta por Direitos


A roda vai contar com a presença do seu Chico Caititu, morador de Montanha e Mangabal, comunidades do Alto Tapajós ameaçadas pela construção do Complexo Tapajós, que esteve na segunda ocupação do canteiro de obras de Belo Monte, em Altamira, e também em Brasília, junto com os Munduruku e outras etnias, na luta pelo direito à consulta prévia, livre e informada numa histórica mobilização.
E aproveitando essa rica oportunidade de fortalecer o diálogo e darmos apoio às futuras mobilizações, será realizada uma roda de conversa para ouvirmos o depoimento do seu Chico e para discutirmos a atual conjuntura da luta por direitos das populações tradicionais frente aos grandes projetos hidrelétricos pretendidos pelo Governo Federal.

CONVITE RODA DE CONVERSA: HIDRELÉTRICAS NA AMAZÔNIA E A LUTA POR DIREITOS
Xingu, Tapajós, Teles Pires - a consulta prévia e direito de todos!

DATA: 17 de junho de 2013 (segunda-feira)
LOCAL: UFOPA da Marechal Rondon - Santarém - PA
HORÁRIO: 13h30

quinta-feira, 13 de junho de 2013

A dança das cadeiras na Funai

A recente exoneração da presidente da Fundação, a antropóloga e demógrafa Marta Azevedo, mostra a luta em torno da destinação das terras públicas no Brasil

por Henyo Trindade Barretto Filho 
Carta Capital - publicado 11/06/2013




Para quem acompanha a política indigenista, a recente exoneração a pedido, por motivo de saúde, da antropóloga e demógrafa Marta Azevedo da Presidência da Funai, não deveria surpreender. Ao longo dos seus quase 46 anos de existência, a Funai teve 34 presidentes, contando os interinos. É um presidente a cada um ano e quatro meses aproximadamente.
Uma ONG chegou a cunhar a expressão “galeria da crise permanente” para se referir à galeria dos presidentes da Funai. Nos oito anos dos dois mandatos de FHC foram nove presidentes. Lula quebrou essa tendência ao ter apenas três presidentes em oito anos, dois do quais os mais longevos nessa função. Já a presidenta Dilma caminha para a terceira presidente em menos de três anos de mandato, que, assumindo como interina no lugar de Marta Azevedo, já sinaliza a retomada do ritmo da “galeria da crise permanente”, se aproximando da média nada honrosa de FHC.
É óbvio que a troca de comando da Funai não é, em si mesma, expressiva – ainda mais quando se dá por motivo de força maior. Não obstante, o fato da alternância de comando se dar nessa cadência ao longo de quase toda a história do órgão – fenômeno de que nos damos conta quando se observam quebras nesse ritmo – é um indicador significativo da instabilidade institucional que marca a política indigenista e seu lugar relativamente subalterno em sucessivos governos – não importa quão populares, inclusivos e democráticos se pintem. Outros números e estatísticas são ainda mais significativos, pois permitem observar e correlacionar dimensões não necessariamente visíveis na dança das cadeiras de comando.
Veja-se, por exemplo, o ritmo – no geral – decrescente de reconhecimento de Terras Indígenas (TIs) nos sucessivos governos “democráticos” (tabela a seguir).

Demarcações Terras Indígenas nos últimos governos no Brasil
TIs Declaradas
TIs Homologadas
Presidente
Nº*
Extensão*
Nº*
Extensão*
Dilma Rousseff (2011-2012)
05
18.461
10
972.149
Lula (2007-2010)
51
3.008.845
21
7.726.053
Lula (2003-2006)
30
10.282.816
66
11.059.713
FHC (1999-2002)
60
9.033.678
31
9.699.936
FHC (1995-1998)
58
26.922.172
114
31.526.966
Itamar Franco (1992-1994)
39
7.241.711
16
5.432.437
Fernando Collor (1990-1992)
58
25.794.263
112
26.405.219
José Sarney (1985-1990)
39
9.786.170
67
14.370.486
Fonte: Instituto Socioambiental, abril de 2013
 * As colunas não devem ser somadas, pois várias terras homologadas em um governo foram redefinidas e novamente homologadas em outro.

Se somarmos os dados da tabela acima com outros de igual teor para o atual governo – quais sejam, o de que nenhuma unidade de conservação federal foi criada na Amazônia Legal no governo Dilma, que titulou apenas 632 hectares de terras de quilombos (contra cerca de 60 mil hectares nos dois mandatos do governo Lula, segundo dados oficiais do Incra) e assentou por meio do Incra o menor número de famílias registrado desde 1996 – o quadro se completa e fica mais inteligível: estamos diante da maior paralisia dos procedimentos administrativos de destinação e reconhecimento de terras públicas de que se tem notícia nos últimos 25 anos.
Essa inércia em relação à proteção e gestão das terras públicas, em geral, e ao reconhecimento dos direitos territoriais indígenas e de outros grupos, em particular, parece estar articulada a um conjunto de outras estratégias conduzidas em várias frentes por distintos atores sociais que conformam a base de sustentação política do governo: no Legislativo, pela tramitação de proposições (de projetos de lei a propostas de emenda à constituição) que visam extinguir, ou reduzir áreas protegidas, ou flexibilizar suas figuras jurídicas, desconstruir os direitos territoriais de indígenas e quilombolas, e liberalizar a exploração de recursos naturais nas TIs (seja viabilizando a mineração nestas, seja tornando possível a posse indireta destas a produtores rurais na forma de concessão); na interface entre o Executivo e o Legislativo, alterando todo o procedimento de demarcação das TIs e fragilizando as normas relativas ao licenciamento ambiental de grandes obras de infraestrutura; e no Judiciário, por meio de ações judiciais que buscam, ou arguir a constitucionalidade da legislação em torno dos direitos territoriais indígenas e de povos e comunidades tradicionais, ou construir interpretações restritivas aos direitos coletivos e difusos – entre outras medidas em outras frentes. Nas palavras do professor titular do Museu Nacional da UFRJ, João Pacheco de Oliveira, estamos diante da maior e mais violenta ofensiva contra a política indigenista da história – “um fato realmente inédito na história do País”.
Não se tratam, necessariamente, de medidas de má fé, ou de meros deslizes ligados às externalidades negativas de opções políticas e econômicas conjunturais; mas, sim, de desdobramentos gramaticais à atual arquitetura hegemônica da política e da economia do país. Vítima do delírio de crescer economicamente a taxas chinesas e almejando ampliar o superávit primário por meio da exportação de commodities de baixo input tecnológico e superar os entraves de infraestrutura logística ao crescimento de tais exportações – entre outras orientações macroeconômicas; o governo tornou-se refém político do modelo convencional de expansão do agronegócio (altamente demandante de terras e recursos naturais, e socialmente excludente) e do lobby de grandes conglomerados empresariais de infraestrutura, energia e mineração – que atuam simultânea e indistintamente nos três vértices da Praça dos Três Poderes. A primarização da economia brasileira e os sinais de aparente desindustrialização são as expressões mais evidentes dessas orientações, que se traduzem, por sua vez, na importância do agronegócio na manutenção do “PIBinho” [sic].
Considerando que o atual modelo de expansão do agronegócio se assemelha a um "Pacman" de terras e recursos naturais, não surpreende que seus representantes se esforcem para ampliar a oferta de terra barata. A estratégia, agora, tem sido abrir áreas hoje protegidas (TIs, territórios quilombolas, UCs) aos seus interesses econômicos, ou tirá-las do caminho, quando entendidas como entraves à sua consolidação e/ou expansão. Se sentindo rejuvenescidos com o bem sucedido desmonte do Código Florestal, os setores politicamente mais ativos do agronegócio, articulam-se agora para investir sobre o butim das terras públicas – ofensiva que se materializa, como relatado, em várias estratégias e frentes.
Uma destas é a frente midiática e comunicacional. A ofensiva aí se dá por meio da ressurreição de velhos, porém sempre disponíveis, preconceitos em relação aos povos e comunidades que tradicionalmente ocupam essas terras (usualmente tratados como massa de manobra manipulada, sem vontade própria) e da desqualificação das expertises nas quais se assenta o reconhecimento dos direitos territoriais desses grupos, entre as quais, a Antropologia (vista não como uma disciplina científica com conceitos e métodos próprios, mas como uma expressão subjetiva de opiniões). Trata-se de um trabalho diuturno de deslegitimação dos procedimentos de reconhecimento de direitos territoriais (no caso, a demarcação de TIs e a titulação de territórios quilombolas), dos seus beneficiários (povos indígenas e comunidades tradicionais) e dos técnicos (da Funai, mas também de outros órgãos, e eventuais colaboradores) que os conduzem, usando para isso todos os meios disponíveis aos detentores do monopólio da violência simbólica legítima e das grandes corporações de comunicação.
Assim sendo, o contexto atual traz ingredientes novos para se entender as mudanças de comando nos órgãos responsáveis pela gestão do que resta do patrimônio de terras públicas e de territórios étnicos do País, e de seus recursos naturais – entre os quais está a Funai. À sua instabilidade administrativa crônica, resultante do lugar convencionalmente subalterno dessa agenda, deve se agregar o quadro – aqui brevemente traçado – de uma investida sem precedentes sobre tais terras, territórios e recursos no Brasil, e da disputa feroz em torno dos mesmos. De um lado, o governo parece renunciar paulatinamente à obrigação constitucional de proteção dos direitos difusos e das minorias – renúncia esta ancorada na arquitetura político-econômica hegemônica, na investida sobre os direitos territoriais e em uma concepção de País baseada no desprezo pela natureza e pela diversidade.
De outro, os movimentos sociais e os indígenas, em especial, têm respondido por meio das estratégias que se encontram ao seu alcance, a depender dos contextos dos conflitos e dos objetivos em jogo nestes: retomadas de terras ancestrais, ocupações de canteiros de obras e prédios públicos, e ações de desobediência civil (como a resistência a mandatos judiciais de reintegração de posse) – entre outras. Isso ajuda a entender os números levantados pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), ligado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), de 560 índios assassinados no Brasil nos dez anos de governos Lula e Dilma (praticamente um por semana) – um crescimento de 168,3% em relação à média, que já não era honrosa, dos oito anos de FHC.
Em meio a esse cenário, fica-nos (para mim e para vocês leitores) a pergunta: a que determinações respondem (a serviço do quê e de quem se dão) as mudanças de comando nos órgãos responsáveis pela gestão das terras públicas no País?

quarta-feira, 12 de junho de 2013

A nova "guerra justa" aos índios


Quando os donos do poder mobilizam as forças armadas para atacar os mais vulneráveis, uma situação de terrorismo de Estado está em curso. É o que acontece hoje no Brasil

Por Felipe Milanez
Carta Capital

Índios mundurukus se reuniram com o ministro Gilberto Carvalho para discutir a suspensão de empreendimentos energéticos na Amazônia

A crise da questão indígena nas últimas semanas ganhou ares dramáticos. Conflitos antigos estão pipocando por todas as partes do Brasil, do Sul à Amazônia. Seja onde se constrói Belo Monte, seja na futura usina São Luiz do Tapajós, seja em fazendas no Mato Grosso e no Mato Grosso do Sul, no Paraná, no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, no Pará, na Bahia, ou madeireiros em Rondônia e no sul do Amazonas.
De repente todo o campo ganhou ares de fronteira, de velho oeste.
Protestos de indígenas são seguidos por pistolagem, e a polícia agindo para "dispersar" convulsões sociais - agora os ruralistas também estão pedindo o exército.
E as tristes mortes de Oziel Terena e Adenilson Kirixi Munduruku, com pífia resposta das autoridades que produziram essas mortes, a Polícia Federal, são apenas a parte mais exposta e visível desse grave problema que o governo tem mostrado não apenas incapacidade de resolver, mas uma capacidade de insuflar ainda mais, como tem sido as declarações dos ministros Gleisi Hoffman (Casa Civil) e José Eduardo Cardozo (Justiça), atacando a Funai e defendendo a PF, e o silêncio público da presidenta Dilma Rousseff.
Uma das razões pelas quais os conflitos se agravaram não é porque eles não existiam, mas porque agora os indígenas, e os aliados dos povos indígenas, decidiram responder e se manifestar. Contra eles, capitaneados pela bancada ruralista no Congresso e no governo federal, a violência explodiu. Tanto no campo, com mortes e repressão física, quanto na imprensa, com ataques racistas pela mídia e a inversão da lógica de quem é vítima.
As vítimas se tornam os agressores. "Índios invadem fazendas", aparece no noticiário. Mas não são as fazendas que invadiram estes mesmos territórios indígenas em conflitos?
No caso da Terra Indígena Buriti, onde ocorreu o conflito entre fazendeiros e Polícia Federal contra os indígenas, a resposta é clara, e está judicializada em dois tipos de ação.
Em uma das ações na Justiça, os fazendeiros, entre eles do ex-deputado estadual do PSDB Ricardo Bacha (que se considera "ambulante" na sua ficha), discute a portaria declaratória. Nela, o desembargador Luiz Stefanini, que votou contra os índios, teve suspeição alegada pela Funai, e negada pelo próprio tribunal.
A razão é que sua mulher é credora da Funai em outro conflito com indígenas Terena no estado, e seu sogro era uma liderança da associação de classe dos fazendeiros, a Famasul.
A suspeição foi negada com a alegação de que "ainda que o falecido sogro do excepto tenha sido filiado à aludida federação, nem por isso seria caso de acolher-se a exceção, simplesmente porque da premissa estabelecida pela excipiente não resulta a conclusão exposta" (sic), e que a Funai é que deve a esposa do desembargador, logo: "Ora, qual seria o interesse do juiz em julgar a causa em detrimento de sua devedora? Absolutamente nenhum!", decidiu o desembargador Nelton dos Santos.

Agressão desmedida da PF
A outra ação decorrente desse mesmo conflito é a reintegração de posse que visa a tirar os indígenas das áreas reocupadas dentro do limite declarado com base no argumento de que a decisão do Tribunal Federal diz que não é terra indígena e que por isso os indígenas não podem ficar lá. Acontece que, no momento que a decisão liminar que determinou a expulsão dos índios foi expedida, ocasionando a morte de Oziel, o que prevalecia era a área declarada pelo Ministro da Justiça em 2009 como TI Buriti, com 17200 hectares. A agressão desmedida da Polícia Federal apenas reforça o argumento de que as vítimas desse processo de expropriação, os índios, se tornaram vítimas da justiça e do governo. E os agressores viram falsas vítimas, passando a controlar o acesso as instituições em seu benefício.
No caso das demarcações, governo tem agido em movimentos coordenados pela elite rural anti-indígena, como foi a ida da ministra Gleisi Hoffmann ao Congresso. Nos últimos dias, os piores momentos da ditadura estão sendo lembrados, tanto por declarações do governo, capitaneadas pela ministra da Casa Civil - que vê a Embrapa, especializada em pesquisa agropecuária, como o órgão mais apto a pesquisas antropológicas – quanto por cartas de intelectuais e movimentos sociais denunciando essa violência.
Exemplo dessas manifestações é uma carta, assinada entre outros pelo jurista Dalmo Dallari, endereçada à presidenta Dilma Rousseff sobre a “desqualificação da Funai”:
"A decisão da Casa Civil da Presidência da República apresentada aos representantes do agronegócio e parlamentares do Mato Grosso do Sul, em reunião na semana passada em Brasília, de que a Embrapa, Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Ministério do Desenvolvimento Agrário, “avaliarão e darão contribuições” aos estudos antropológicos realizados pela FUNAI, repete a ação do último governo militar ao instituir o famigerado “grupão” do MIRAD, capitaneado pelo general Venturini, para “disciplinar” a FUNAI e “avaliar” as demandas indígenas.
Quando os donos do poder mobilizam as forças armadas para atacar os mais vulneráveis, uma situação de terrorismo de Estado está em curso. É o que acontece hoje no Brasil com relação aos índios.
Utilizar as forças de repressão para atacar indígenas foi medida utilizada no passado, durante a ditadura, contra os ava-canoeiro, em Goiás, os waimiri-atroari, no Amazonas, os panara, no Mato Grosso, ou mesmo os kaingang, em São Paulo, logo antes do surgimento do Serviço de Proteção aos Índios, em 1910. Alguns desses crimes apareceram no relatório Figueiredo, que ficou desaparecido por 45 anos. Mas o relatório é anterior aos piores tempos da ditadura. E precisaria ser escrito um novo relatório sobre o que está acontecendo, hoje, em diferentes os cantos do país.
Se os ruralistas dão entrevistas, escrevem artigos, e aparecem por todos os lados sempre disponíveis, os índios ainda não têm chance de se expressar. A eles têm restado as redes sociais, pelas quais podem manifestar suas indignações. Expor, por exemplo, a crueldade de uma jornalista da TV Globo que invadiu um funeral para entregar uma intimação judicial a índios terenas durante o enterro de Oziel Terena. O que mais tem circulado nas redes sociais são manifestos que não encontram eco na mesma mídia que ataca os índios - mas que encontra meios de se fazer circular e provocar o debate.
As críticas se dirigem aos ruralistas, e junto deles, Gleisi e Dilma: "Como essa senhora consegue dormir sabendo que a parte mais desprotegida do povo brasileiro, os povos indígenas, está sendo assassinada a bala pela Polícia Federal em suas aldeias, as crianças indígenas são assassinadas por jagunços do agronegócio em suas terras invadidas por supostos fazendeiros?" perguntou no facebook o indigenista da Funai, Cláudio Romero, que trabalha há quase quatro décadas na fundação.

Kátia Abreu e Dilma
Durante o julgamento do caso da Raposa Serra do Sol, havia sido exposto que o juiz Carlos Alberto Menezes Direito poderia ter servido ao lobby de fazendeiros do sul do país para decidir contrariamente aos indígenas em Roraima. Para garantir a demarcação no Norte, Direito tentou legislar para impedir que os direitos de outros fossem garantidos. Tentou escolher na cara de quem a porta da Justiça iria se fechar.
Passou a soar uníssono entre ruralistas, governo e imprensa que as "regras não são claras" na Funai, como se todos fossem comentaristas de futebol tentando encontrar uma "a regra é clara".
Alegavam que a Funai não conseguia fazer uma "intermediação" com fazendeiros, e mais uma série de argumentos retóricos reproduzindo uma falsa vitimização da casa grande, cada vez mais poderosa com o avanço tecnológico na agricultura e a sede porcommodities da China, e criminalizando quem está no pelourinho.
A desconstrução dos direitos indígenas segue a destruição dos direitos do meio ambiente, com o fim do Código Florestal e a sua substituição por um "novo" codex, a regular menos as florestas e mais as lavouras produtoras de commodities em grande escala.
O governo, em alguns momentos, tenta se colocar como "refém" dos poderosos ruralistas. Esse segmento, que construiu uma aliança com a bancada evangélica, saiu da "oposição" e veio para a "base aliada", sobretudo durante a campanha de Dilma.
E para ter uma chamada "governabilidade", o governo se aliou a esses setores. Até "ideologicamente", como tem repetido a senadora Kátia Abreu ao dizer que suas idéias são as mesmas de Dilma.
Essa aliança, além de tragédia no campo, tem também acirrado disputas internas no governo, entre esta ala reacionária e os setores mais progressistas, como os que defendem os indígenas e quilombolas, na Funai e INCRA, e o meio ambiente no Ibama.
Quando Dilma convocou uma reunião para decidir o futuro dos índios em meio à atual crise, não convidou representantes dos povos indígenas, e nem mesmo a Funai.
Dilma teria declarado querer que o índio tenha "autonomia econômica", algo que ressoa declarações da época da ditadura, como quando os militares tentaram impor aos xavantes o cultivo de arroz, que se revelou um desastre, econômico e social, ou impôs aos kayapo a extração predatória de madeira. Nas declarações que sucederam a reunião, não se falou de algo mais fundamental: a garantia dos direitos dos povos indígenas. Nem sequer apareceu termos como "etnodesenvolvimento" nas falas.
Esse movimento anti-indígena cada vez mais ganha áreas de uma "guerra justa".
Os índios são selvagenizados, desculturalizados, desterritorializados, desumanizados. Devem abrir caminho para a soja, a cana, o boi, e a energia hidrelétrica, sem opor resistência.
Caso contrário, toda violência contra eles é justificada e respaldada pelo Estado. Contra o índio, é tolerado partir para cima. Como nas "guerras justas" nos tempos a colonização utilizadas como justificativa para a escravização dos índios – escravização que ainda é o provável destino dos índios nas lavouras de cana no Mato Grosso do Sul, como acontecia no Brasil colônia.