sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Retrospectiva para quê?


Artigo escrito para o Correio da Cidadania e publicado em 21 de dezembro de 2012.

A retrospectiva que eu queria não será possível fazer neste final do ano de 2012, e até acredito que, com o andar dessa carruagem chamada Brasil, em nenhum ano até 2200! Muitos vão se alegrar, pois, com este artigo, encerro meu ativismo socioambiental. Feliz 2013!

Telma Monteiro

Pediram-me que fizesse uma retrospectiva de 2012, abordando os temas que mais criaram polêmica na área onde tenho atuado. Tentei inúmeras vezes escrever, buscando nas postagens do meu blog aquilo que mais me deixou indignada. Como o antigo escritor sem inspiração, que ficava na frente da máquina de escrever olhando para um papel em branco, eu, dias seguidos, fiz o mesmo diante da tela do computador com uma página branca sobre o azul de fundo do programa.

Pensei, suspirei e me perguntei para o que serviria a retrospectiva. Para relembrar que os Guarani-Kaiowá estão morrendo no Mato Grosso do Sul, porque o governo e a Funai não dão a mínima para eles? E que eles apenas estão reivindicando aquilo que é seu direito imemorial? E que, acossados, eles, os Guarani-Kaiowá, não têm como lutar contra sua humilhação e degradação social diante de grandes fazendeiros que contratam jagunços para proteger suas suntuosas fazendas despidas da floresta?

 Retrospectiva das imagens da destruição que a construção da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, está impondo às populações ribeirinhas e aos povos indígenas? Lembrar que Altamira está se tornando uma pocilga, sem infraestrutura, com índices alarmantes de prostituição e violência, doenças e miséria? E que isso já aconteceu em Rondônia com as usinas do Madeira?

Lembrar que tudo isso é só porque um governante acha que o Brasil tem que crescer 5% ao ano, mas neste ficou no mísero 1%, aceitando que o sacrifício imposto aos impactados na Volta Grande do Xingu e região não foi suficiente para levar a economia do Brasil à estratosfera megalomaníaca de Dilma Rousseff e Lula?

Agora, veja-se o resultado visível e risível de Dilma, em momento de ufanismo economicida, vangloriar-se de elevar o Brasil à posição de 6ª economia do mundo, prometendo a 5ª. Pois é, acaba de cair para 7ª. Para quê? Alguém no governo fez a conta do custo desse esforço crescimentista para o meio ambiente e para as futuras gerações? Esqueci que é esse o futuro que eles querem, e não o que queremos.

Retrospectiva do processo que aprovou o Código Florestal no Congresso Nacional, que ainda discute se o agronegócio vai desmatar mais ou menos nas APPs (Áreas de Proteção Permanente), e como acelerar a anistia dos criminosos desmatadores? Lembrar que a sociedade considera boa a redução, em pontos porcentuais, do índice de desmatamento na Amazônia, em relação ao ano passado, quando na verdade deveria chorar pela floresta derrubada que, lamentavelmente, é transformada em índice?

Retrospectiva do ataque terrorista de que foi alvo o povo Munduruku, na região do rio Teles Pires, por ordem não se sabe de quem? A polícia federal, sob a desculpa de combater o garimpo ilegal, fez uma incursão de filme do Arnold Schwarzenegger, tipo Comando para Matar. Isso como se nunca alguém tivesse tido conhecimento da existência secular da extração de ouro nessa região, comandada por empresas clandestinas alaranjadas, tocada por gente inescrupulosa e aproveitadora da ausência deliberada do Estado.

Para que fazer retrospectiva? Só porque é final de ano e precisa refrescar a memória de poucos brasileiros que leem, mas que descartam os fatos, mais preocupados com seu time preferido que foi campeão, sendo isso que importa? Ou para alguns milhões de outros brasileiros que estão focados no próximo Big Brother ou na Copa das Confederações e na Copa do Mundo, e preferem ignorar o derrame de dinheiro público e indícios de sobrepreço e superfaturamento nas obras dos estádios?

Relembrar as promessas recentes e irresponsáveis da presidente, que diz que pode dar desconto nas contas de luz, incentivando o desperdício? A conta de luz é cara? Claro que é, mas, se fossem acrescentados todos os custos ambientais e sociais oriundos das hidrelétricas na Amazônia e o futuro ameaçado dos ecossistemas, ela seria muito mais cara. Aí as pessoas talvez sentissem no bolso o peso dos impactos. Por outro lado, não se viu esforço no sentido de minimizar as perdas técnicas e comerciais de energia elétrica nas linhas de transmissão e distribuição, que chegam perto dos 20%. Mas energia de hidrelétricas é barata, diz o setor. Para quem?

Por falar em economia, não quero relembrar que a campanha de substituição das lâmpadas tradicionais por lâmpadas de vapor e gás de mercúrio, altamente tóxicas, pode ser o começo do fim da consciência ecológica que até vinha crescendo no seio da sociedade. Milhões e milhões para o lobby dessa indústria homicida que não prevê o descarte e não expõe o perigo nos rótulos das lâmpadas compactas fluorescentes. Lembrar que as maiores ONGs ambientalistas, como WWF e Greenpeace, têm sido as maiores defensoras dessas lâmpadas mortais?  Não, não quero fazer retrospectiva!

Que tal lembrar que a Vale foi eleita a pior empresa do mundo? Satisfaz nosso desejo por justiça? Ou que algumas grandes empresas mineradoras canadenses, já por mim denunciadas, como a Belo Sun Mining, estão explorando ouro da região em que estão construindo Belo Monte?

Outras estão explorando ouro onde o governo federal decidiu construir as hidrelétricas, no rio Tapajós e outros, até formaram um consórcio para explorar a província mineral do rio Teles Pires e Juruena. Será que temos que fazer retrospectiva de todo esse lixo capitalista transnacional para conscientizar a população que entra e sai do elevador, do restaurante, de todos os lugares teclando seu smart alguma coisa?

Relembrar que o maior banco público do Brasil, que deveria financiar com juros subsidiados a iniciativa de pequenos produtores rurais, comerciantes, geração de renda, serviços, economia local, o BNDES, acaba de soltar uma grana preta para os barrageiros de Belo Monte, para a elite construtora da hidrelétrica Santo Antônio do Jari, para a Odebrecht de Jirau no rio Madeira, dá náuseas. Isso é retrospectível?

A retrospectiva que eu queria, não será possível fazer neste final do ano de 2012, e até acredito que, com o andar dessa carruagem chamada Brasil, em nenhum ano até 2200!

Muitos vão se alegrar, pois, com este artigo, encerro meu ativismo socioambiental. Feliz 2013!

Telma Monteiro é ativista socioambiental, pesquisadora, editora do blog http://www.telmadmonteiro.blogspot.com.br, especializado em projetos infraestruturais na Amazônia. É também pedagoga e publica há anos artigos críticos ao modelo de desenvolvimento adotado pelo Brasil.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Munduruku e Tapajós: Quem defende um, luta pelo outro!









Entrevista com Dom Erwin Kräutler


''Belo Monte é de todo inaceitável e ilegal e nunca deixa de ser''. 
Entrevista especial com Dom Erwin Kräutler


“Evangelizar implica primeiro no testemunho de uma fé arraigada na Palavra de Deus e na convicção de que esse mesmo Deus é um Deus que anda conosco pelas estradas e rios de nossa vida”, diz bispo do Xingu.

Confira a entrevista.

“A alegria de ser chamado a servir a Deus, levando o seu amor às pessoas e a todos os povos (cf. AG 10), ninguém pode arrancar do coração de quem exerce uma missão que tem sua base e motivação no Evangelho”. É com esta declaração que Dom Erwin Kräutler, bispo do Xingu, resume sua atuação no Brasil há mais de 40 anos, evangelizando sua comunidade. Nesta caminhada, ele esteve engajado em diversas causas, entre elas, a mais recente, em oposição à construção da hidrelétrica de Belo Monte. “Como bispo tenho que conviver com diversos pontos de vista e tolerar, às vezes mesmo a contragosto, posições opostas à minha. Em momento algum isso significa abrir mão do credo que professo e da posição contra Belo Monte que sempre assumi e continuo sustentando, considerando-o uma insanidade. Infelizmente não existe meio termo. Belo Monte é de todo inaceitável e ilegal e nunca deixa de ser”, disse o bispo à IHU On-Line.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Dom Erwin comenta a atual situação de Altamira desde a construção da hidrelétrica de Belo Monte e acentua o comportamento dos povos indígenas que vivem próximos ao canteiro de obras. “Aí se percebe nitidamente que a Norte Energia usa de todos os meios para calar os indígenas e impedir que se manifestem. Recebem cestas básicas, voadeiras, combustível, benefícios que nunca imaginaram. Como explicar-lhes que esses presentes são um cavalo de Troia e aceitá-los significa dar um tiro no próprio pé?”, questiona. 
Ele conta que após a eleição de Dilma tentou agendar uma reunião com a presidente, mas ao ouvir o discurso de Gilberto Carvalho, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, a favor de Belo Monte, desmarcou o encontro. “O que ainda iria fazer no gabinete do ministro? Trocar amenidades e posar para fotos? Já que a declaração do ministro revelou toda a intransigência do governo, eu mesmo cancelei a audiência”, lamenta. 
Há dois anos de tornar-se bispo emérito, Dom Erwin diz que isso “não significa ‘entregar os pontos’. Meu empenho em favor da dignidade e dos direitos dos povos indígenas, dos ribeirinhos, das mulheres, das crianças, dos jovens, dos expulsos de casa e terra, dos agredidos e machucados, enfim, de todos os ‘excluídos do banquete da vida’ e minha defesa do meio ambiente, o ‘lar’ que Deus criou para todos nós, vão continuar enquanto Deus me der o fôlego”.

Dom Erwin Kräutler (foto ao lado) é bispo de Altamira, no Pará, e presidente do Conselho Indigenista Missioneiro – CIMI.

Confira a entrevista. 

IHU On-Line – Que avaliação faz da caminhada de luta em oposição a Belo Monte e aos projetos de infraestrutura na Amazônia durante os últimos anos?
Dom Erwin Kräutler – Por ocasião da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável,Rio+20, o movimento Xingu Vivo para Sempre convocou indígenas, pescadores, ribeirinhos, movimentos sociais, estudantes e acadêmicos, ativistas e defensores do Xingu para comemorar os 23 anos que se passaram desde o Primeiro Encontro dos Povos Indígenas do Xingu (20 a 25 de fevereiro de 1989) em Altamira. O evento foi chamado de “Xingu+23“ em analogia ao “Rio+20“ e quis lembrar a primeira grande vitória contra o projeto de barramento do rio Xingu que naquele tempo levou o nome de Kararaô, um grito de guerra do povo Kayapó, o povo indígena mais numeroso do Xingu. Na realidade, a luta contra o projeto é bem mais antiga e começou já nos anos 1970 quando os militares cogitaram a construção de seis grandes usinas ao longo do rio Xingu: Jarina, Kokraimoro, Ipixuna, Babaquara, Kararaô e Iriri. O Encontro dos Povos Indígenas em 1989 tornou a rejeição do projeto da parte dos indígenas apenas mais visível e chamou a atenção do Brasil e da comunidade internacional para o planejado golpe no coração da Amazônia. 

Ironia da história
Ironia da história: Lula, que elegemos porque acreditávamos que outro Brasil fosse possível, pouco depois de tomar posse tirou o projeto das gavetas, desconsiderando o que durante a campanha eleitoral havia falado nos palanques sobre a Amazônia. Passou a defender o que antes severamente criticou e a considerar o projeto hidrelétrico no Xingu essencial para o progresso, vaticinando o colapso total da economia do país caso não seja concretizado. Substituiu-se apenas o nome de Kararaô por Belo Monte para ninguém mais lembrar o facão da Tuíra e os índios de 1989 pintados de urucum e jenipapo. 
Não acredito que haja no Brasil outro movimento de luta em defesa do meio ambiente contra um megaprojeto governamental com uma história tão longa. Alguém talvez venha retrucar: “Mas, infelizmente, lutaram em vão, já que o projeto está sendo executado a pleno vapor e, depois de já ter gasto bilhões de reais, dificilmente o governo vai recuar!“ De fato, a cada dia que passa mais explosões ensurdecedoras atormentam a população no entorno do canteiro de obras. A cada dia que passa mais destruição se alastra pela região. A ensecadeira se estende rio adentro e o desmatamento avança nas ilhas e na terra firme da Volta Grande do Xingu. Mas, mesmo assim, nada de enrolar a bandeira! Sabemos que Belo Monte não é a única barragem planejada no Xingu. Nossa luta tem também por objetivo evitar que o antigo projeto dos militares seja desenterrado na sua totalidade. 
Quantos cientistas e especialistas não alertaram o governo que o Xingu durante três ou quatro meses no ano não terá o volume d’água suficiente para rodar uma única turbina sequer? Muitos! E todo mundo sabe que é economicamente absurdo deixar sem funcionar as turbinas que são a parte mais cara de todo o empreendimento. A solução reside em mais barramentos rio acima como já foi previsto no projeto dos militares, com impactos mais desastrosos ainda que a própria Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Esse projeto de mais barragens é tratado como segredo de estado. Habilmente se evita toda a discussão em torno deste espectro que então sacrificará todo o rio Xingu com consequências não só para Altamira mas também para todas as vilas ribeirinhas e áreas indígenas nas margens do rio, chegando a atingir até a cidade de São Félix do Xingu.

Cruzar os braços
Outro motivo de não cruzarmos os braços são os mais de cinquenta (50!) processos que correm na Justiça brasileira e internacional denunciando violações da Constituição Federal e de tratados internacionais de que o Brasil é signatário. São ações movidas pelo Ministério Público Federal, pela Defensoria Pública Estadual do Pará como por entidades da sociedade civil, entre estas o Conselho Indigenista Missionário – CIMI, organismo vinculado à CNBB. Estes processos estão, em parte há anos, sem a Justiça tomar nenhuma providência. Quais são os reais motivos desta morosidade? Omissão ou negligência são inaceitáveis num Estado que se diz democrático e de Direito.
Finalmente, enquanto não forem cumpridas todas – todas mesmo! – condicionantes exigidas pelo Ibama e pela Funai como requisitos para dar início à construção de Belo Monte, não deixaremos de denunciar a ilegalidade da obra.

IHU On-Line – Quais as principais alegrias e desafios de ser um líder religioso em uma região como a do Xingu, onde a comunidade e a Igreja estão divididas por causa de Belo Monte?
Dom Erwin Kräutler – A alegria de ser chamado a servir a Deus, levando o seu amor às pessoas e a todos os povos (cf. Ad Gentes 10), ninguém pode arrancar do coração de quem exerce uma missão que tem sua base e motivação no Evangelho. Esta missão não se restringe a um mero anúncio de verdades. Evangelizar implica primeiramente no testemunho de uma fé arraigada na Palavra de Deus e na convicção de que esse mesmo Deus é um Deus que anda conosco pelas estradas e rios de nossa vida. Evangelizar é estar continuamente a serviço deste Deus, consagrando a vida a Ele e a seu Povo, e isso sem medir esforços e alegar cansaço. “Amou-os até o fim” lemos no Evangelho de São João para introduzir o episódio do lava-pés (Jo 13,1). Evangelizar não exclui o diálogo aberto, franco, respeitoso. Um monólogo autoritário é antievangélico quando tenta arrasar com quem tem outra visão do mundo e condenar ao inferno a quem não reza pela nossa cartilha. Como bispo tenho que conviver com diversos pontos de vista e tolerar, às vezes mesmo a contragosto, posições opostas à minha. Em momento algum isso significa abrir mão do credo que professo e da posição contra Belo Monte que sempre assumi e continuo sustentando, considerando-o uma insanidade. Infelizmente não existe meio termo. Belo Monte é de todo inaceitável e ilegal e nunca deixa de ser. A decisão tomada pelos governos Lula e Dilma de construir Belo Monte é imperdoável porque nunca haverá uma chance mínima de reparar os erros monstruosos cometidos. Ao inaugurar Belo Monte teremos alcançado um ponto sem retorno. Em outras palavras: não adiantará mais chorar o leite derramado.

O cenário mudou
A Igreja, como o povo do Xingu em geral, está dividida na avaliação de Belo Monte. No entanto, os que defendem o projeto já não estão mais tão eufóricos como anos atrás quando colaram adesivos “Queremos Belo Monte” em seus carros. Os adesivos desapareceram. Os que aprovam o projeto, o fazem hoje com reservas e muitas exigências. Os políticos há tempo desceram de seus palanques porque esgotaram os argumentos bombásticos em favor do “progresso” que só Belo Monte seria capaz de trazer para a região. Ensacaram a viola. Aliás, Belo Monte nem sequer foi tema nos comícios da última campanha eleitoral. Os candidatos bem sabiam por que evitaram falar em Belo Monte. Iriam levar estrondosas vaias. Incrível com que rapidez o cenário mudou. A tendência é que, na medida em que a obra avança, o povo está se dando conta de que, até agora, nada ou muito pouco do que foi prometido está sendo cumprido. Altamira, uma cidade de mais de 120 mil habitantes, está mergulhado num tremendo caos. Os operários contratados pela empresa CCBM logicamente apreciam ter encontrado emprego, se bem que seja temporário. Mesmo assim há frequentes manifestações de insatisfação. Há até operário preso. Com toda razão exigem melhores condições de trabalho e salários que permitam enfrentar a inadmissível carestia que impera em Altamira
As feições do povo que frequenta as Igrejas em Altamira mudaram. Entre as (os) fiéis tradicionais aparecem muitos rostos novos. São homens e mulheres, casais e famílias, que vieram de outros estados e trabalham nas empresas ligadas à construção de Belo Monte. Querem participar das celebrações e iniciativas de sua Igreja e tem todo o direito de fazê-lo, mas é óbvio que não se manifestam contra Belo Monte ou criticam o projeto, pois provavelmente correriam o risco de perder o emprego.
Inalterado, também dentro da Igreja, ficou o grupo que categoricamente rejeita Belo Monte. Embora sejam poucas pessoas em relação à grande massa que é indecisa e opta por uma posição de aguardar “para ver como é que fica“, essa parcela do Povo de Deus mais ativa e combatente não se deixa intimidar nem por ameaças, nem por calúnias, difamações e outros tipos de perseguição.

IHU On-Line – Irmã Ignez Wenzel comentou sobre a desarticulação entre as comunidades indígenas por conta das obras. Quais são as razões desse comportamento? Pesquisadores, antropólogos e religiosos estão mais preocupados com a questão indígena do que os próprios índios?
Dom Erwin Kräutler – A questão é complexa. É perigoso generalizar, afirmando que os indígenas estão menos preocupados. Do mesmo jeito como em toda a sociedade do Xingu (do Brasil e do mundo), há também entre os indígenas diferentes posições em relação a Belo Monte. Religiosos, antropólogos, professores e outros profissionais conhecem talvez melhor os meandros e as propostas insidiosas do sistema neoliberal que está na base do “desenvolvimentismo” que confunde desenvolvimento com crescimento meramente econômico, multiplicação de riqueza material, incremento do PIB, expansão do agronegócio, aumento de produção de biocombustíveis. Os indicadores sociais são colocados em um plano inferior. A defesa do meio ambiente não passa de recheio nos discursos da presidente em Brasília para impressionar quando fala na ONU e em outras oportunidades no exterior como há poucos dias em Paris.
Essa realidade os indígenas, pelo menos os velhos caciques, certamente nunca estudaram e por isso não se dão conta do perigo que correm. No sistema vigente, o que importa é produzir, lucrar, tirar vantagem, consumir. O “ter“ triunfa sobre o “ser“. Esse sistema é cruel e diametralmente oposto ao que os indígenas andinos chamam de Sumak Kawsay (ou “Bem Viver“). É um câncer que dissemina metástases em todo o tecido social. E é uma ilusão pensar que os povos indígenas sejam imunes contra este câncer. Todo o nosso empenho e acompanhamento visam ajudá-los a evitar a contaminação.

Posições 
Os Kayapó do Alto Xingu, sob a liderança do cacique-patriarca Raoni Metuktire, rejeitam qualquer barragem do rio. É para eles uma questão fechada. Só que Belo Monte é geograficamente muito distante de suas aldeias e essas, na primeira fase da construção do complexo hidrelétrico do Xingu, não serão impactadas diretamente. Por isso os Kayapó do Alto Xingu não mais se manifestaram de modo tão contundente como antes o fizeram quando Raoni mesmo veio a Altamira para prestigiar eventos contra Belo Monte.
Outra é a situação dos povos que vivem mais próximos ao canteiro de obras. Aí se percebe nitidamente que a Norte Energia usa de todos os meios para calar os indígenas e impedir que se manifestem. Recebem cestas básicas, voadeiras, combustível, benefícios que nunca imaginaram. Como explicar-lhes que esses presentes são um cavalo de Troia e aceitá-los significa dar um tiro no próprio pé? Quem antes foi tratado como pária e de repente avança para padrões de príncipe, dificilmente entende uma advertência de que essas regalias são prejudiciais a ele e a seu povo. Na realidade, o dinheiro fácil corrói a sociedade indígena, corrompe lideranças, destrói a organização interna de um povo, faz os índios perder a sua identidade. Tem sistema atrás disso. Quando os indígenas “deixam de ser indígenas“ perdem também suas terras ancestrais, cobiçadas desde sempre pelas mineradoras, pelos madeireiros e latifundiários. Chamo essa investida contra os índios de “auricídio“ (do latim aurum: ouro). Matam-se os indígenas com dinheiro, entopem-se-lhes as gargantas com dinheiro a ponto de não mais poderem gritar, implanta-se um consumismo desenfreado no seio das comunidades e exterminam-se deliberadamente os valores e a sabedoria milenar de um povo. E o pior é que se afirma em alto e bom som que tudo é feito “em favor dos índios para tirá-los finalmente da era da pedra lascada“. Através do dinheiro se tenta ressuscitar os parâmetros das antigas constituições brasileiras que defendiam “a incorporação dos silvícolas à comunhão nacional“, programa etnocida que achávamos definitivamente superado com a Constituição de 1988

IHU On-Line – O senhor voltou a dialogar com o governo na tentativa de paralisar Belo Monte? Como vê, nesse sentido, a atuação do Ministério Público Federal, que por vezes determina a paralisação da obra?
Dom Erwin Kräutler – Já em outubro 2009 percebi que o presidente Lula, embora tenha insistido em continuar o que chamou de diálogo, na realidade não estava nada interessado em discutir Belo Monte. Aliás, o “diálogo“ de que ele falou não passou de encenação. Tentei ainda um encontro com a Dilma. Fui informado que Gilberto Carvalho, ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República, estaria disposto a receber-me em audiência. Mas poucos dias antes da data marcada para a audiência ele discursou num encontro das pastorais sociais da CNBB e declarou que Belo Monte era irreversível e irrevogável. O que ainda iria fazer no gabinete do ministro? Trocar amenidades e posar para fotos? Já que a declaração do ministro revelou toda a intransigência do governo, eu mesmo cancelei a audiência.
E o papel do Ministério Público Federal? Das 15 ações judiciais contra ilegalidades no licenciamento da construção de Belo Monte, encaminhadas pelo Ministério Público Federal, apenas uma transitou em julgado. Este balanço revela a “importância“ que é dada hoje a este órgão de defesa dos direitos constitucionais do cidadão. Às vezes me dá até dó ver o esforço de nossos Procuradores da República. Será que não se sentem supérfluos e inúteis dentro do poder Judiciário, que não aprecia o seu empenho, engavetando sistematicamente as ações elaboradas com esmero e competência?

IHU On-Line – Como o senhor vê a discussão acerca da mineração no Norte e Nordeste? É possível dizer que Belo Monte servirá para facilitar a mineração? 
Dom Erwin Kräutler – Respondo com a pesquisadora Telma Monteiro, que colabora com o Xingu Vivo para Sempre e quem estimo muito. Num artigo publicado no Correio da Cidadania (11-09-2012) ela adverte que “a implantação do projeto da hidrelétrica Belo Monte é a forma de viabilizar definitivamente a mineração em terras indígenas e em áreas que as circundam, em particular na Volta Grande, trecho de mais de 100 quilômetros que vai praticamente secar com o desvio das águas do Xingu. E é justamente nas proximidades do barramento principal, no sítio Pimental, que está sendo montado o maior projeto de exploração de ouro do Brasil, que vai aproveitar o fato de que a Volta Grande ficará seca por meses a fio com o desvio das águas do rio Xingu“. Critica ainda: “Incrível como, além das hidrelétricas, os projetos de mineração, na visão do governo federal e do governo do Pará, também se tornaram a panaceia para solucionar todos os problemas não resolvidos de desenvolvimento social. Papel que seria obrigação do Estado, com o dinheiro dos impostos pago pelos cidadãos de bem“. Sempre o mesmo lero-lero que já estamos cansados de ouvir: os problemas sociais da Amazônia só poderão ser solucionados se, de mão beijada, a lotearmos e entregarmos lote por lote a empresas estrangeiras. Desta vez a felizarda é a Belo Sun Mining Corporation com sede em Toronto, Canadá, que em breve auferirá lucros astronômicos rindo da cara dos brasileiros. E ainda há quem brada que a “Amazônia é nossa“ e repete o discurso de Lula em 2007: “Precisamos dizer que somos os donos da Amazônia e que sabemos cuidar das nossas florestas, da nossa água, não precisa ninguém dar palpite”. Quem são realmente os donos? Sabemos realmente cuidar das nossas florestas, da nossa água? Não seria mais correto chorar desde já a mãe Amazônia pois ela foi vendida ao grande capital para ser violentada sem escrúpulos até morrer de inanição! 

IHU On-Line – Daqui dois anos o senhor enviará ao Papa o pedido de renúncia, conforme denomina o Direito Canônico. O senhor já faz planos para os próximos anos? Pretende continuar na região do Xingu?
Dom Erwin Kräutler – O Cânone 401 § 1 do Direito Canônico reza que o bispo “que tiver completado setenta e cinco anos de idade, é solicitado a apresentar a renúncia do ofício ao Sumo Pontífice, que, ponderando todas as circunstâncias, tomará providências“. Em outra palavras: é o Papa que decide se aceita logo a renúncia ou se pede ao bispo continuar por mais algum tempo. Não fiz nenhum plano para “o dia seguinte“, mas tornar-se bispo “emérito“, logicamente não significa “entregar os pontos“. Meu empenho em favor da dignidade e dos direitos dos povos indígenas, dos ribeirinhos, das mulheres, das crianças, dos jovens, dos expulsos de casa e terra, dos agredidos e machucados, enfim, de todos os “excluídos do banquete da vida“ e minha defesa do meio ambiente, o “lar“ que Deus criou para todos nós, vão continuar enquanto Deus me der o fôlego.

IHU On-Line – Como é para o senhor viver no Brasil, especialmente num estado em que há milhares de problemas sociais, ambientais, numa conjuntura completamente diferente da sua origem?
Dom Erwin Kräutler – Cheguei a Altamira em dezembro de 1965, ainda jovem. A decisão pelo Xingu foi uma decisão pessoal. Os superiores religiosos apenas concordaram e me deram luz verde. Jamais me arrependi de ter feito esta opção. O Xingu tornou-se minha terra, o chão em que vivo a minha vida. Não nego as minhas raízes e não deixei de amar o país da minha família e de meus antepassados, mas nunca cultivei saudosismos para com a terra onde nasci, avaliando o que na Áustria estaria melhor ou analisando a conjuntura de lá, comparando-a com os problemas que aqui enfrentamos. 
Tempos atrás redigi uma mensagem que muitas vezes já foi usada em celebrações de envio de missionárias e missionários. Esse texto traduz o que ser missionário sempre significou para mim:

“Vai meu irmão, minha irmã! Lá, em tua nova missão, em tua nova terra, em tua nova pátria, anunciarás Jesus Cristo e o seu Evangelho. Servirás aos pobres, aos excluídos do banquete da vida, lavando-lhes os pés. Falarás com quem nunca andou ou não anda mais conosco. 
Aproximar-te-ás com muito carinho a um povo com cultura e tradições diferentes. Chegando lá, estranharás, sem dúvida, os costumes e usos locais. Mas, não imporás as tuas ideias! Não apresentarás o país que te viu nascer como paraíso! Não dirás nunca que no lugar onde te criaste, as coisas estão bem melhores! 
Não darás nunca a impressão de que vieste para ensinar, para civilizar, para instruir, para colonizar! Jamais violentarás a alma do povo que, doravante, será o teu povo!
Oferecerás simplesmente o testemunho de tua fé, de tua esperança e de teu amor, e darás a tua vida até o fim, até as últimas consequências! Assim, tu terás o privilégio e a felicidade de viver a graça de todas as graças: encontrarás o Senhor que disse: 'Depois que eu ressuscitar, irei à vossa frente para a Galileia' (Mc 14,28). Missão é sempre ir à Galileia, às Galileias de todos os continentes!“

IHU On-Line – Depois de todos esses anos na região, qual foi a luta mais difícil na sua trajetória?
Dom Erwin Kräutler – Sempre lembro com carinho nosso empenho em 1987-1988 durante a Assembleia Nacional Constituinte para que os direitos indígenas fossem inscritos na Constituição da República. Foi uma luta sem tréguas, mas os povos indígenas e nós, os seus aliados, saímos vitoriosos. Para quem quiser conferir, há um capítulo específico na Carta Magna do País que fala “Dos Índios“ (Art. 231 e 232). Essa luta, porém não terminou. Trata-se de concretizar o que está escrito aí.
A luta mais desgastante, no entanto, é sem dúvida a que travamos contra a hidrelétrica Belo Monte, que já dura tantos anos. 

IHU On-Line – Estamos na época do Advento. O que esta época de natividade, como nascimento de Jesus, pode trazer de reflexão para os dias de hoje, para os governantes, especialmente em relação a Belo Monte?
Dom Erwin Kräutler – Eu não sei se o sentido profundo do Advento e Natal mexe com o coração de nossos governantes, ministros e outros membros do governo. Talvez nem falem mais em Natal. Preferem substituir a lembrança do Nascimento de Jesus com um termo mais secularizado: “Festas de Fim de Ano“. E muito menos sei se esta gente, ouvindo eventualmente o “Noite Feliz“, se lembra das famílias expulsas de suas terras por causa de Belo Monte. Essas famílias não experimentam nada de noite feliz, enquanto os responsáveis pela sua desgraça se banqueteiam em confraternizações com as mais finas iguarias, regadas a bebidas seletas. 

IHU On-Line – O que a experiência de Jesus Libertador pode ensinar e inspirar a prática cristã de hoje?
Dom Erwin Kräutler – Responder a essa pergunta equivaleria a uma dissertação sobre os fundamentos e toda a história da Teologia da Libertação e sua contribuição valiosa para a Igreja na Amazônia, especialmente para as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, que continuam sendo o chão concreto em que esta forma de reflexão teológica até hoje está dando seus frutos e que gerou seus mártires. Precisaria também desmontar todos os mal-entendidos a respeito desta teologia, disseminados pelo Brasil e mundo afora, especialmente em ambientes em que se fecham os olhos e se tapam os ouvidos diante das injustiças de um sistema desumano, excludente, opressor e de violências estruturais que causam a morte de tantos homens, mulheres e crianças e do meio ambiente em que vivem.  

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Dom Erwin Kräutler – Sim, votos de um abençoado Advento e Santo Natal do Senhor. Que Deus nos conceda sua graça e paz, neste Natal, durante o Ano Novo e sempre.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Incoerente, governo federal dá prêmios de direitos humanos



"Antes de ler a declaração da Presidente da República, na entrega do prêmio de direitos humanos refleti sobre o ato e o teatro da premiação, como está abaixo. Mas ao ler o artigo saído hoje no Ihu, só me confirmou o escrito antes. Basta citar um trecho de sua declaração para ter certeza de que não andei longe da verdade. Veja: "Nesta terça-feira, 17 de dezembro, durante solenidade no Palácio do Itamaraty, em Brasília (DF), a presidente Dilma Rousseff declarou que a defesa dos direitos humanos é um assunto importante não apenas para seu governo, mas uma preocupação pessoal, por ser parte de uma geração que teve a liberdade restrita pelo Estado. “O assunto, além de ser importante nacionalmente, me comove porque a minha geração sentiu na carne o abuso de poder, a truculência do Estado, e sabe como é importante, fundamental, o respeito pelos direitos humanos e, mais do que isso, sabe que esse é o pilar fundamental de uma sociedade”, disse Dilma em discurso durante a entrega do 18º Prêmio Direitos Humanos", escreve Edilberto Sena, padre, membro da Comissão Justiça e Paz da Diocese de Santarém, PA, ao enviar o artigo que publicou em Santarém-PA, 17-12-2012.

Eis o artigo.

Diz um ditado, que quem vê cara não vê coração. É verdade, muitas vezes a cara expressa uma coisa, mas o coração tem outra atitude. A isto se dá o nome de incoerência. É o que revela o atual Governo Federal. Vai dar prêmios de Direitos Humanos a pessoas que dedicaram a vida a defender os direitos oprimidos da sociedade.

Entre estes, dois bispos de reconhecida coerência de vida a serviço dos povos indígenas, Dom Pedro Casaldáliga e Dom Tomás Balduíno. Onde está a incoerência da hipócrita Secretaria da Presidência Especial de Direitos Humanos da Presidência da República?

É que essa premiação a dois bispos, realmente defensores dos direitos indígenas, é uma forma de o governo iludir a população de que ele se preocupa com os direitos humanos dos povos indígenas. Mas na realidade o governo abandona e até persegue os povos indígenas na Amazônia.

Tanto é que no Estado do Amazonas estão morrendo dezenas de índios por causa da malária e a falta de assistência médica da Funasa; No rio Teles Pires a polícia Federal do governo matou índio, invadiu aldeia apavorando os índios Munduruku e até agora não foi punida. O governo acoberta a insanidade de sua polícia federal; em Mato Grosso do Sul durante anos, o governo se omitiu diante do massacre dos índios Gurarani e só agora depois de pressão dos índios e dos meios de comunicação é que  as autoridades iniciaram uma tímida defesa dos Guarani.

Já em Itaituba a própria Fundação Nacional do Índio, FUNAI, veio de Brasília tentar convencer os índios Munduruku de que devem se conformar que o governo vai destruir o rio Tapajós, que é vida dos índios e dos ribeirinhos. Ela gastou bastante saliva e argumentos frívolos para amansar os munduruku, que conscientes da desgraça repetiram que não aceitam barragens em seus rios. A representante da Funai, diante de seu superior da Eletrobrás, ameaçou os índios dizendo que se eles endurecessem o governo irá manar a força nacional , mas que as hidroelétricas no Tapajós têm que sair.,

E assim por diante, com uma mão o governo afaga os defensores dos Direitos Humanos e com outra, massacra os direitos de povos inteiros. A isto se dá o nome de hipocrisia. Esta é uma das obras do Programa de Aceleração do Crescimento do Brasil. Só quem pode mudar essa estratégia de massacres é o próprio povo se organizando e resistindo, como estão decididos os Munduruku.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Caso Juá: Marcelo Corrêa pode ser investigado pelo MPE por Improbridade Administrativa

Hoje, às 10h00, integrantes do Movimento em Defesa ao Juá vão ao prédio do Ministério Público Estadual, entregar uma representação contra o Secretário Municipal de Meio Ambiente, Marcelo Corrêa, por acreditarem que a atuação do Secretário no “Caso Juá/Buriti” tem fortes indícios de improbidade administrativa.

A representação será entregue ao coordenador do MP, para que seja investigada a atuação do Secretário, que pode ter colocado em risco a Área de Proteção Ambiental (APA) do Juá ao licenciar às empresas Sisa e Buriti para realizarem um mega empreendimento imobiliário sem qualquer estudo de impacto ambiental na área.

As empresas pretendem lotear a área e por conta disso desmataram e aterraram o solo, as obras foram embargadas pelo IBAMA e pela Justiça do Estado, por causa do clamor popular.

Movimento em Defesa ao Juá é formado por dezenas de entidades populares, ambientalistas ou não, e tem a participação de artistas e profissionais liberais, que começou a se organizar no início do mês de dezembro através das redes sociais, culminando com a realização do ato público 'ABRAÇO AO JUÁ', no dia 13/12. 

Ainda hoje, será apresentado à população e à imprensa um documento de avaliação dos integrantes do Movimento, indicando os próximos passos que as entidades pretendem dar para evitar que novos casos como esse se repitam, destruindo nosso patrimônio de recursos naturais.

SALVE O JUÁ!!!  A LUTA ESTÁ APENAS COMEÇANDO.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

As Usinas no Tapajós. A discórdia do desenvolvimento


A reportagem é de Carlos Juliano Barros e publicada por Agência Pública, 07-12-12.

“Morrer na lama, debaixo d’água, é que é triste, né? Mas, achando um lugar onde a gente escape para morrer sossegado, quem me acompanha é Deus e meus filhos”. É humanamente impossível deixar de prestar atenção às palavras que pausadamente saem da boca de Maria Bibiana da Silva, apelidada de Gabriela em homenagem ao pai, José Gabriel. Do alto de seus 104 anos, comprovados pelo rosto profundamente enrugado e pelas pernas arqueadas em forma de alicate, a profética anciã responde de bate-pronto quando questionada sobre o que o rio Tapajós representa para ela: “o sossego”.

No longínquo ano de 1917, Gabriela partiu do Ceará rumo aos seringais do Acre. No meio do caminho, porém, a família resolveu fincar raízes em Pimental, uma vila de pescadores erguida na beira das águas esverdeadas do Tapajós, numa área que hoje pertence ao município de Trairão, no oeste do Pará. E de lá jamais saíram. Desde aquela remota época, os dias no modesto povoado onde atualmente vivem cerca de 800 pessoas nunca foram tão agitados.

Pimental tem uma inegável atmosfera de Macondo, a mítica aldeia ribeirinha que Gabriel García Márquez construiu na sua obra-prima “Cem anos de Solidão”. Mas, nesse isolado trecho do Pará, a discórdia não é provocada pela chegada de uma companhia bananeira, como no livro do premiado escritor colombiano, e sim pela construção da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, que pode mandar Pimental inteiro para baixo d’água. “Por mim, não tenho gosto que essa barragem saia, mas uma andorinha só não faz verão”, alerta Gabriela, a matriarca da comunidade.

Se de fato vingar, São Luiz do Tapajós será capaz de gerar até 6.133 Megawatts. No papel, é a quarta maior hidrelétrica do país, atrás apenas da binacional Itaipu – na fronteira entre Brasil e Paraguai –, de Belo Monte e de Tucuruí, construídas, respectivamente, nos rios Xingu e Tocantins, também em território paraense. A usina é a maior de um complexo de até sete hidrelétricas que o governo federal planeja construir no Tapajós e no seu afluente Jamanxim. Até o final desta década, duas usinas devem de fato ser construídas.

Segundo dados preliminares que constam do inventário do potencial hidrelétrico da bacia do Tapajós, exatas 2.352 pessoas de 32 povoados ribeirinhos diferentes serão diretamente atingidas caso as sete hidrelétricas previstas saiam do papel. O estudo foi feito em 2008 pela Eletronorte, subsidiária da estatal Eletrobras, estatal oficialmente responsável pelas obras complexo de usinas. Movimentos sociais e entidades que assessoram essas comunidades acham que o número é subestimado.

C.A.K, presidente da associação comunitária da Vila Pimental: povoado em discórdia
Foto: Fernanda Ligabue

Prevista para entrar em operação em dezembro de 2018, a usina de São Luiz do Tapajós é a que está em fase mais adiantada de licenciamento ambiental. O plano do governo é licitar a construção da obra até o final de 2013. Orçado inicialmente em R$ 18 bilhões, o empreendimento tem verba garantida pela segunda edição do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), vitrine do governo da presidente Dilma Rousseff.

Fundada há cerca de 120 anos, Pimental é a maior das vilas ribeirinhas que serão alagadas pelas águas represadas da usina de São Luiz do Tapajós. Além dos roçados, a maior parte das pessoas ali vive mesmo é da pesca artesanal. “Nosso freezer é bem aí”, afirma José Odair Pereira Matos, o C.A.K., presidente da associação comunitária, apontando o dedo para o Tapajós. “É o rio que mantém o nosso peixe fresco.”

Hoje, Pimental representa a principal frente de resistência ao paredão de 3.483 metros de comprimento por 39 metros de altura da barragem, que vai alagar uma área de quase 75 mil campos de futebol. Porém, à medida que avançam os estudos de viabilidade para construção da usina, cresce também a cisão entre os moradores.

“Tem uns que são a favor da usina. Principalmente aqueles que conseguem empreguinhos de vigia de máquina, de carregador de barra de ferro, de mateiro para abrir picada na floresta nas empresas que fazem os estudos. Mas aí eu pergunto: e quando essas empresas forem embora?”, questiona Edmílson Azevedo, catequista da Igreja Católica.

“Quem está trabalhando hoje não se dá conta de que isso é temporário. As empresas criam a expectativa de que as pessoas vão se empregar, mas é uma ilusão”, analisa Raione Lima, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT). “Infelizmente, estamos vivendo um momento intenso de conflitos na comunidade, ribeirinhos contra ribeirinhos.”

Falta de diálogo
Não é de hoje que o povo de Pimental ouve falar da barragem que pode inundar a vila por completo. “Aqui já chegou americano, japonês, alemão. No campo de futebol em frente à igreja já sentaram dois helicópteros”, conta C.A.K, o presidente da associação comunitária. Técnicos a mando da Eletrobras e da sua subsidiária Eletronorte rondam a vila há quase uma década. De três anos para cá, o movimento se intensificou.

“Quando a gente perguntava o que ia acontecer, para onde a gente ia, eles nunca respondiam, diziam que não era com eles. Eles queriam fazer primeiro as pesquisas e depois dizer o que ia acontecer com a gente. Até que um dia a gente falou: primeiro vocês falam o que vai acontecer com a gente, quais são os nossos direitos, e depois vocês fazem pesquisa”, conta C.A.K.

O momento mais tenso se deu em 2010. Naquele ano, uma firma de topografia entrou na comunidade sem qualquer tipo de contato prévio e instalou marcos de concreto no meio da rua, sem fornecer explicações. Indignados, os moradores de Pimental expulsaram os técnicos responsáveis pelo serviço, destruíram as instalações e passaram a controlar a entrada de pessoas estranhas.

A Eletrobras, porém, precisava entrar de qualquer maneira na vila para fazer os estudos de viabilidade da usina. A fim de tentar uma reaproximação, a estatal contratou, então, um grupo batizado de “Diálogo Tapajós” para cadastrar e prestar esclarecimentos aos moradores dos povoados ribeirinhos que serão diretamente impactados não só pela usina de São Luiz do Tapajós, mas também pela hidrelétrica de Jatobá – a segunda do complexo previsto pelo governo, com previsão para entrar em operação em abril de 2019.

Num domingo escaldante de outubro, a reportagem da Pública encontrou quatro profissionais do Diálogo Tapajós em um restaurante caseiro de Pimental. Na ocasião, o coordenador do grupo se mostrou disposto a conceder uma entrevista e deixou um encarte distribuído à população local com um número de celular e o e-mail “contato@dialogotapajos.com.br”. Toda vez que uma mensagem é enviada para esse correio eletrônico, gera-se de forma automática um aviso de “falha permanente”. Em outras palavras, o endereço de e-mail não existe ou enfrenta algum problema técnico.

Passado o encontro em Pimental, a reportagem da Pública ligou em diversas oportunidades para o representante do Diálogo Tapajós. Em algumas vezes, não obteve resposta. Em outras, ouviu a confirmação de que a entrevista estava de pé, mas que ela deveria ser realizada em outro momento. Até o fechamento desta matéria, apesar da insistência, a conversa não foi realizada.

“O Diálogo Tapajós entrou na comunidade num momento errado e tardio. As informações tinham que ter chegado antes da entrada das empresas para fazer as pesquisas”, afirma Raione. “Mas, só a partir do momento em que se criou a resistência é que chegou o Diálogo”, acrescenta a agente da CPT.

O procurador do Ministério Público Federal do Pará (MPF-PA) Felício Pontes revela preocupação com a possibilidade de a aproximação do Diálogo Tapajós ser usada indevidamente como uma forma de consulta prévia às comunidades afetadas pela hidrelétrica. “O problema é utilizar esse tipo de levantamento como uma espécie de concordância dos grupos indígenas e das demais populações tradicionais com o empreendimento”, alerta.

O precedente foi aberto em Belo Monte, conta o procurador. “Entraram nas aldeias indígenas para fazer a comunicação do que seria a usina e como ela afetaria essas populações”, explica. “Quando chegou no processo judicial, isso foi apresentando como se fosse a consulta com os povos indígenas e que essa etapa estaria cumprida. E aí foi a hora em que interviemos e dissemos que não era consulta, porque não havia nem mesmo a opinião dos índios nas atas das reuniões.”

Para ganhar tempo, as empresas que fazem os serviços sondagem e perfuração para os estudos de viabilidade da barragem se instalaram nos povoados vizinhos a Pimental, onde a aceitação à hidrelétrica já é bem maior. Em um deles, chamado São Luiz, nasceu o deputado federal Dudimar Paxiúba (PSDB-PA).

Apesar de pertencer ao principal partido de oposição ao governo federal, o parlamentar defende um discurso pragmático e rejeita o radicalismo contra a obra. “A princípio, eu gostaria que a hidrelétrica não viesse. Mas tenho que pensar de forma racional. Vai prevalecer a vontade do governo, que não vai abrir mão desse projeto”, discursa o deputado, encontrado pela reportagem em visita a Pimental.

Nos últimos meses, o parlamentar virou figurinha carimbada na beira do Tapajós, participando de reuniões nas comunidades para falar justamente das hidrelétricas. Na avaliação dos movimentos sociais, a intervenção direta de Paxiúba vem amainando a resistência dos moradores de São Luiz, que têm fé no ilustre filho da comunidade como mediador do conflito. “Não somos nós que vamos ter o poder de paralisar esse projeto. Se ficar no radicalismo, não teremos sequer como cobrar do governo uma contrapartida”, explica o deputado.

Divergência
Em Pimental, não há como negar que a recusa à hidrelétrica está longe de ser unanimidade. E o clima esquenta a cada dia que passa. Em outubro, o bate-boca entre os que apoiam e os que se opõem à usina de São Luiz do Tapajós rendeu até ameaças de morte, registradas em um boletim de ocorrência, contra o presidente da associação de moradores e um padre da CPT que participa do movimento que resiste à barragem.
Os defensores da usina se apegam basicamente a três argumentos. O primeiro é exemplarmente resumido na declaração de Ângela Maria Batista, nascida e criada em Pimental: “É melhor a gente se unir com os grandes do que se juntar com os pequenos para perder”. Desempregada, mãe de três filhos e viúva, sem nem ter completado 30 anos, ela engatou um namoro recentemente com um técnico de uma empresa que presta serviços para a Eletrobras. E espera que o novo companheiro a leve embora de Pimental.

O segundo argumento tem a ver com o inevitável – porém, temporário – incremento da economia informal trazido pelos funcionários das firmas que circulam pela vila de pescadores. Algumas famílias reforçam o orçamento lavando uniformes ou fazendo marmitas. Aquelas com a sorte de ter um de seus membros trabalhando nas empresas defendem com unhas e dentes o dinheiro certo no fim do mês. E por isso preferem não levantar a voz contra a barragem.

“Como não tinham muito apoio, as firmas contrataram algumas pessoas para trabalhar. É uma estratégia para dividir a comunidade”, rebate C.A.K. Sem dúvidas, o plano de semear a discórdia tem dado resultado. “O que tem de emprego em Pimental é na escola e no posto de saúde. A gente pede a Deus para entrar uma firma aqui porque a situação é feia”, afirma Ângela.

O terceiro e último motivo de quem defende a construção da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós diz respeito à possível indenização que a população afetada receberá. “Eu não tenho esse apego todo à comunidade. Se me pagarem um valor bacana, eu saio. Eu até gostaria de ir para a rua”,  afirma Elba Sales, merendeira da escola de Pimental, referindo-se à cidade de Itaituba.

Quando perguntada se já parou para pensar sobre o valor considerado justo para a indenização, Elba subitamente emudece. Rompido o silêncio, ela admite com um sorriso amarelo que ainda não refletiu sobre o assunto. Elba então conta que pagou R$ 5 mil na casa onde mora em Pimental. “Se lhe dessem R$ 5 mil, a senhora sairia daqui?”, pergunta o jornalista. “Não, da minha casa, não. Porque já apareceu quem queira comprar de volta e nem por R$ 10 mil eu não dou.”

O que aguarda Itaituba
Atualmente, se quisesse morar perto da orla do rio Tapajós, na parte mais agradável da cidade de Itaituba, a merendeira da escola de Pimental teria de desembolsar pelo menos R$ 1.800 de aluguel mensal num bom imóvel de três quartos. Até dois anos atrás, o custo seria praticamente a metade disso. Agora, se preferisse realizar o sonho da casa própria, comprando um terreno de 250 metros quadrados no loteamento Novo Paraíso II, localizado a 38 quarteirões de distância da avenida à beira-rio, ela teria de desembolsar R$ 16 mil. A título de comparação, as vendas do primeiro loteamento chamado Novo Paraíso foram encerradas em 2010. Cada terreno foi negociado a R$ 3 mil.

Apesar de as obras da hidrelétrica sequer terem sido licitadas, o mercado imobiliário em Itaituba está explodindo. “A minha corretora tem um ano e meio. Nesse período, já abriram mais três. E vão ser criadas outras porque o pessoal está indo para fora estudar e fazer o curso de corretagem”, analisa a empresária Ana Maria Gomes do Nascimento.

Ela não tem dúvidas de que a escalada de preços está apenas começando. “Vai aumentar mais, vai ficar como Altamira, vai ficar aquele aglomerado mesmo e, daqui a pouquinho, qualquer quitinete está saindo a R$ 1 mil”, avalia Ana Maria, comparando o futuro de Itaituba ao de Altamira, município que abriga a hidrelétrica de Belo Monte e que inchou da noite para o dia com as obras do maior empreendimento em curso no país.

Mas não é apenas o mercado de imóveis residenciais que se encontra em ponto de ebulição. Já antecipando o boom de demanda que se desenha com a construção das hidrelétricas, o grupo paranaense Gazin, que vende móveis e eletrodomésticos, acaba de inaugurar uma grande loja no centro da cidade. Representantes de empresas como a Sotreq, revendedora de tratores e máquinas pesadas da norteamericana Caterpillar, também já viajaram a Itaituba à procura de terrenos com ao menos 30 mil metros quadrados para futuras instalações. Os locais mais cobiçados ficam na BR 230, a rodovia Transamazônica, que corta o município.

Hoje, Itaituba conta com uma população de aproximadamente 100 mil habitantes. Segundo projeções do inventário da Eletronorte, apenas a hidrelétrica de São Luiz do Tapajós deve atrair mais de 42 mil pessoas à procura de trabalho para a região que tem o município como polo. Contando todas as usinas previstas no Complexo Tapajós, a estimativa sobe para 130 mil. Levando em conta outras obras de grande porte previstas para o futuro próximo em Itaituba, como a construção de portos fluviais para escoamento de grãos vindos, sobretudo, do Mato Grosso, a perspectiva de que a população dobre nos próximos cinco anos não é nada exagerada.

“Itaituba não está preparada para atender nem as pessoas que já vivem aqui”, admite Eliene Nunes, prefeita eleita nas últimas eleições para administrar o município nos próximos quatro anos. Não é preciso ser especialista em urbanismo para detectar a calamidade pública em que a cidade já se encontra. Em um rápido passeio pelos bairros da periferia é fácil cruzar com fossas de esgoto a céu aberto que, em épocas de chuva, alagam ruas e casas, causando todo tipo de doença. A rede de eletricidade que abastece as residências também é precária. “Nós não gostaríamos que Itaituba ficasse como Altamira”, afirma Eliene. A prefeita eleita diz que até vem tentando estreitar o diálogo com a Eletrobras, mas ainda não obteve nenhuma resposta por parte da estatal.
Em entrevistas e pronunciamentos oficiais, os representantes da Eletrobras têm aventado a possibilidade de construir a usina de São Luiz do Tapajós em um sistema de “plataforma”, como as utilizadas pela Petrobras na extração de petróleo em alto-mar. Essa seria uma alternativa para minorar o inchamento da cidade, devido à chegada de um grande contingente de trabalhadores. “Trata-se de um conceito ainda em construção”, explica nota emitida pela assessoria de imprensa da Eletrobras em resposta a questionamentos feitos pela Pública.

“As usinas-plataforma serão um vetor de conservação ambiental, pois se pretende que as intervenções em ambientes florestais sejam as menores possíveis e, quando for necessária a intervenção, a premissa é que esses ambientes sejam recompostos (reflorestamento). Também não haverá a construção de vilas de operários no entorno da usina como foi feito nos empreendimentos hidrelétricos do resto do país”, prossegue a nota.

A assessoria de imprensa da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), que fiscaliza a atividade das hidrelétricas no país, também defende a iniciativa. “Essas plataformas representam um boa alternativa, pois seriam instalações provisórias durante a obra e, na fase de funcionamento, haveria acesso apenas para os operacionais, não havendo a criação das tradicionais vilas de operários e, assim, evitando a criação dos núcleos populacionais que impactam as regiões”, sustenta a nota da assessoria de comunicação.

Especialistas ouvidos pela Pública duvidam do sucesso dessas plataformas para mitigar os impactos. “Estamos falando de 20 mil pessoas. Não de 20 ou 30 trabalhadores. Inicialmente, quando lançaram a ideia de usina-plataforma, disseram até que os operários seriam transportados por helicóptero, o que é um absurdo. É pirotecnia pura, é jogar uma série de coisas para a sociedade engolir”, critica Wilson Cabral, professor e pesquisador do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA).

Para o engenheiro Arsênio Oswaldo Sevá Filho, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), por trás da suposta sustentabilidade apregoada pelo conceito de usina-plataforma, camufla-se um objetivo perverso: a militarização dos canteiros de obras. “Isso já aconteceu nas hidrelétricas do Madeira. Eles cercaram as áreas com milícias privadas das empreiteiras. Em Belo Monte, já estão colocando o exército na área, além da Força Nacional, que chegou lá em 2009 para as audiências públicas e nunca mais saiu”, explica.

No caso específico do Tapajós, além de intensificar o controle sobre os trabalhadores a fim de debelar possíveis greves e manifestações, a militarização se justifica por outro motivo bastante convincente: a enorme presença de ouro no entorno de Itaituba, tomado por mais de 2 mil garimpos clandestinos.

“O planejamento de construir diversas hidrelétricas numa região onde todo mundo está atrás de ouro não pode ser analisado como se a atividade-fim fosse apenas a produção de energia elétrica”, sugere Sevá. Para o professor, é inevitável que, ao revolver o solo do Tapajós para fazer as fundações das hidrelétricas, as empresas também considerem a viabilidade de extrair o mais valioso dos metais.

Os indígenas que não existiam (para a Eletrobras)
Quando o repórter anuncia o fim da entrevista, Deusiano faz um último pedido antes de a câmera ser desligada: cantar o hino de guerra da sua etnia na língua materna munduruku. Enquanto olha fixamente a lente do equipamento do homem branco que captura sua imagem e sua voz, ele parece mandar um recado por meio da letra da canção. Em resumo, ela passa a mensagem de que os Munduruku jamais se intimidarão diante da luta.

Deusiano e seus parentes vivem na aldeia Sawré Muybu, nas margens do Tapajós. Para chegar até lá, é necessário vencer as duas horas de estrada que separam o centro de Itaituba do porto do Buburé, localizado no Parque Nacional da Amazônia, uma das mais antigas unidades de conservação ambiental da Amazônia, criada em 1974 pelo governo militar como compensação aos impactos gerados pela abertura da Transamazônica.

Os indígenas da Sawré Muybu estão encurralados. De um lado, a ameaça vem do Chapéu do Sol, um dos maiores garimpos de ouro e diamante da região, que despeja quantidade significativa de mercúrio nas águas do rio. De outro, a preocupação é com o lago de 722 quilômetros quadrados – área de quase 75 mil campos de futebol – que será formado com a construção da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós. “Se a usina sair, nossa terra não vai ser totalmente inundada, mas vamos ficar ilhados, sem a caça e sem a pesca”, afirma Juarez, cacique da aldeia.

Há anos, os Munduruku da aldeia Sawré Muybu lutam para que a área seja demarcada. Em 2007, a Fundação Nacional do Índio (Funai) até criou um grupo de trabalho para iniciar o processo. Porém, a profissional responsável pela produção do relatório antropológico sumiu sem deixar vestígios – segundo a própria Funai. Desde então, o pleito dos indígenas estava esquecido nas gavetas da burocracia federal – até o momento em que eles entraram em rota de colisão com a usina de São Luiz do Tapajós.
Ao longo de 2012, técnicos das empresas que fazem os estudos de viabilidade da hidrelétrica entraram em diversas oportunidades – e sem qualquer tipo de comunicação prévia – na área da aldeia, abrindo picadas e colocando marcos na mata. A postura invasiva revoltou os Munduruku. “Não vamos mais deixar ninguém entrar na nossa casa”, avisa Juarez.

A Funai de Brasília foi escalada pelo governo federal para mediar o conflito e tentar convencer os Munduruku a liberar a entrada dos técnicos. Numa tensa reunião realizada em 17 de outubro, uma representante da Funai ameaçou até convocar a Força Nacional para escoltar os técnicos, caso os Munduruku resistissem. De qualquer maneira, o fato é que a pressão dos indígenas da Sawré Muybu surtiu efeito: no último dia 31 de outubro, o Diário Oficial da União publicou a portaria para a retomada dos trabalhos de identificação e delimitação da área.

Aparentemente, o governo federal parece se abrir ao diálogo com os indígenas na zona de influência da usina de São Luiz do Tapajós. Mas nem sempre foi assim. No portal do Ibama na internet, é possível acessar documentos sobre o licenciamento ambiental de empreendimentos em curso em todo o país. Quando se abre a ficha que resume as informações do processo da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, lê-se o seguinte texto na penúltima das cinco páginas: “Presença de terras indígenas nas área afetadas: sem informação”.

Segundo a Funai, além da Sawré Muybu, existem outras cinco terras indígenas ocupadas pelos Munduruku na área de influência direta da usina de São Luiz do Tapajós. Esse fato chegou a ser comunicado à diretora de Licenciamento Ambiental do Ibama por meio de um ofício que data de 17 de fevereiro deste ano. No documento, a Funai informava inclusive que, das seis terras indígenas, duas se encontravam em processo de demarcação.

Exatamente uma semana após o envio desse ofício, o Ibama autorizou a Eletrobras a abrir picadas na mata e a coletar material da floresta para a realização do estudo impacto ambiental, inclusive na área da Sawré Muybu. E foi aí que começaram os conflitos. “Mais de cem pesquisadores estão circulando pelo Tapajós, sem levar esclarecimento às populações locais. É natural essa reação de resistência”, afirma a Juliana Araújo, chefe do serviço de monitoramento territorial do escritório da Funai em Itaituba, que mantém contato direto com a aldeia Sawré Muybu.

Em novembro, a Justiça Federal suspendeu, em primeira instância, o licenciamento da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós atendendo a uma Ação Civil Pública (ACP) movida pelo gabinete do Ministério Público Federal (MPF) de Santarém (PA). Um dos principais motivos que embasa o pedido é justamente a não realização de uma consulta prévia com as populações indígenas diretamente afetadas pelo empreendimento, como mandam não só a Constituição Federal de 1988, mas também a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil.

“A Eletrobras e o Ibama tinham conhecimento do ofício da Funai, sabiam que havia terras indígenas na área de influência da hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, mas mesmo assim passaram por cima dessa informação”, acusa o procurador Fernando Antônio Oliveira Júnior, um dos autores da ação.

Ele faz questão de ressaltar que a consulta prévia não se resume a um mero aviso: é preciso explicar de forma clara e acessível, de modo que os indígenas compreendam plenamente as características do projeto. “A Convenção 169 da OIT é ainda mais cuidadosa e protetiva do que a Constituição de 1988. Ela diz que a consulta prévia tem que ser realizada antes de qualquer tipo de autorização. É um dos primeiro passos para a construção do empreendimento”, acrescenta o procurador.

O tratamento dispensado às comunidades indígenas no caso da usina de São Luiz do Tapajós é sintomático do que está por vir. O governo federal vem montando um trator jurídico para viabilizar não só o complexo hidrelétrico do Tapajós, mas outros grandes empreendimentos na Amazônia. Exemplo disso é a discussão em curso no Congresso Nacional sobre a reforma do Código de Mineração, que pretende regulamentar a atividade em territórios indígenas.

Em julho deste ano, a Advocacia Geral da União (AGU) publicou a Portaria 303. Na prática, além de dificultar a ampliação das terras indígenas no país, a medida abre brechas para que o governo e a iniciativa privada construam hidrelétricas, rodovias e outros grandes projetos “independentemente de consulta às comunidades indígenas”. A portaria despertou críticas ferozes por parte dos movimentos sociais e já teve sua constitucionalidade questionada no Supremo Tribunal Federal (STF) pelo MPF. Como se vê, a indiferença com os indígenas atingidos pela usina de São Luiz do Tapajós é apenas a ponta do iceberg.