quinta-feira, 6 de junho de 2013

“Padilha colocou o moralismo acima da ciência; mortes virão”

Por Conceição Lemes
05/06/2013 – VIOMUNDO


O preconceito, o oportunismo, o conservadorismo e a ignorância venceram mais uma vez a saúde pública e violaram direitos.
O Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde lançou no final de semana nas redes sociais uma campanha destinada às profissionais do sexo. Com o tema “Sem vergonha de usar camisinha”, o objetivo é reduzir o estigma da prostituição da associada à infecção pelo HIV e aids.
O material da ação – banners e vídeos – foi feito a partir de uma Oficina de Comunicação em Saúde para Profissionais do Sexo, realizada em João Pessoa (PB),  de 11 a14 de março.
As peças da campanha trazem mensagens contra o preconceito, sobre a necessidade de prevenção da infecção pelo HIV e demais doenças sexualmente transmissíveis e a vontade de as prostitutas serem respeitadas. Médicos e especialistas na prevenção de DST-Aids elogiaram o material.
Porém, nessa terça-feira 4,  o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, cometeu dois desatinos, após protestos e pressões da bancada evangélica.
Primeiro, mandou tirar do ar, inclusive da página do Departamento de DST/Aids, uma das peças da campanha que tinha os seguintes dizeres: “sou feliz sendo prostituta”. A peça trazia o logotipo do ministério e havia sido divulgada no twitter.  As chamadas com destaque na página do Departamento também sumiram.
Segundo, no final da tarde, demitiu sumariamente o diretor do Departamento de DST/Aids do Ministério, o dr. Dirceu Greco, infectologista de renome mundial e professor titular da Faculdade de Medicina da UFMG. É um dos nomes históricos da luta contra a aids e um dos maiores especialistas em bioética e ética em pesquisas no Brasil.

Em nota, a Assessoria de Comunicação Social do Ministério da Saúde justificou:

As peças expostas no site do Departamento de DST/Aids não passaram por análise e aprovação da Assessoria de Comunicação Social, como ocorre com todas as campanhas do Ministério da Saúde, de todos os departamentos. Logo, o descumprimento das normas previamente estabelecidas pelo Ministério da Saúde justificou a retirada das peças do site do departamento e de seus perfis nas redes sociais e a apuração das responsabilidades.

 Em entrevistas à mídia, Padilha disse:

Enquanto eu for ministro, não acho que essa tem que ser uma mensagem passada pelo ministério. Nós teremos mensagens restritas à orientação sobre a prevenção contra as doenças sexualmente transmissíveis. O papel do Ministério da Saúde é estimular a prevenção das DSTs.
Não existirá nenhum material assinado pelo Ministério da Saúde que não seja material restrito às orientações de como se prevenir das DSTs.

“DESDE O ALCENI GUERRA, NÃO ASSISTIMOS ALGO SEMELHANTE”

“Quando soube da campanha, fiquei animado. Pensei: ‘Tomara que o ministro Padilha tenha voltado atrás nas ações de prevenção, pensando nas pessoas vulneráveis às infecções por DSTs e aids’”, afirma o pesquisador, ativista e professor Mario Scheffer, presidente do Grupo Pela Vidda de São Paulo. “Não demorou 24 horas para ver que o Padilha continua o mesmo.”
“É retrocesso histórico”, denuncia Scheffer. “Desde a época do Alceni Guerra, ministro  da Saúde do então presidente Collor, não assistimos algo semelhante.”
Alceni foi ministro de 15 de março de 1990 a 23 de janeiro de 1992. Na época, fez uma campanha baseada no terrorismo e no preconceito, tipo “a aids vai te pegar”, “a aids vai te matar”, que afastava as pessoas. Consequentemente, elas não se sentiam vulneráveis, não se protegiam e a doença disseminou.
A ação desastrada de Alceni foi há mais de 20 anos, quando existia apenas o AZT. Portanto, na fase pré-coquetel antirretroviral.
“O Brasil conseguiu uma boa resposta à aids graças à combinação de ações afirmativas –  como defesa de direitos civis, combate ao preconceito, aumento da autoestima das populações afetadas — com ações de saúde pública — distribuição de preservativos, acesso ao teste de HIV e tratamento com remédios antirretrovirais”, alerta Scheffer. “É o que chamamos de prevenção combinada. Na prevenção em aids,  não podemos  separar direitos humanos de saúde pública. Agora, uma dessas pernas foi quebrada. A epidemia se concentra em algumas populações e o Padilha ficará para a história como o ministro que jogou isso para baixo do tapete, que colocou o falso moralismo acima das evidências científicas. A saúde pública está  pagando um preço muito alto pela ambição pessoal do Ministro em ser candidato a governador.”

 “VIOLAÇÃO DE DIREITOS GERAM MAIS DOENÇAS;MORTES E INFECÇÕES DESNECESSÁRIAS VIRÃO”

Em pouco mais de um ano, é a terceira vez que Padilha censura  material destinado à prevenção de DST/Aids.
A primeira, por determinação do governo, recolheu um kit dirigido a adolescentes. O material abordava temas como homossexualidade, drogas e gravidez. O ministro da Saúde, assim como fez nessa terça-feira, justificou na época que a distribuição tinha sido feita à revelia dele.
A segunda foi no carnaval de 2012. Proibiu a exibição de um vídeo com um casal de jovens gays, produzido para a exibição em TV aberta. Alegou depois que se destinava a circulação restrita.
“É totalmente inaceitável a proibição do Padilha”, diz, chocada, a pesquisadora e professora Vera Paiva, do Núcleo de Pesquisas em Aids da Faculdade de Psicologia da USP. “Fez isso em nome de quê? Valores pessoais? As prostitutas não têm direito à saúde e de serem felizes? Criminalizar como bandidos sem direitos os que não concordam com o seu projeto de felicidade? A decisão dele é injusta. É censura de ações baseadas em rigorosa evidência técnico-científica. ”
“É violação de direitos pelo Estado, inclusive do direito à saúde”, avisa a pesquisadora da USP. “É negligência na promoção e proteção do direito à não discriminação.”
“Padilha não quer prostitutas felizes? Quer o quê? Prostitutas tristes?”, questionou ontem, em Brasília,Elizabeth Franco, da USP, numa reunião de pesquisadores. “Nós queremos putas alegres! Putas tristes só aceitas no título da obra de Gabriel Garcia Márquez!.”
“O exército de crentes e carolas que hoje manda nas grandes decisões nacionais se insurgiu contra a campanha, acionou seus lobistas de plantão e, outra vez, colocou o governo de joelhos”,  atenta o jornalista Leandro Fortes em texto no Facebook, onde também postou a imagem abaixo.  ”Agora, calaram as putas, condenadas a serem tristes por decreto. Feliz mesmo é Feliciano, que logo se apressou a cumprimentar o ministro, no Twitter, por mais essa vitória da moral e dos bons costumes.”



“Só que violação de direitos gera mais doenças”, adverte Vera Paiva. “Mortes e infecções desnecessárias virão, como no caso dos jovens homossexuais.”

SOLIDARIEDADE A DIRCEU GRECO E DEFESA INEQUÍVOCA DOS DIREITOS HUMANOS

Logo após a confirmação da demissão do dr. Dirceu Greco, Toni Reis, secretário de Educação da ABGLT, divulgou esta nota:

“Confirmado: Dirceu Greco, Diretor do Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais foi exonerado sumariamente pelo Ministério da Saúde (causa, a felicidade da  prostituta acima)
Todos e todas têm direito de ser feliz no Brasil, inclusive as prostitutas (independente do que elas vendem…).
Nossa mais irrestrita solidariedade ao Dr. Dirceu  Greco e equipe – estamos  consternados  com a notícia.
Felicidade é um direito humano. Quem se  ama  se  cuida.
Plagiando a obra no Caminho com Maiakowski: ’Primeiro foram os gays a serem censurados. Eu não era gay, não reagi. Depois, censuraram as prostitutas. Eu não era prostituta, não reagi. Cercearam os índios. Eu não era índio, não reagi. Até que arrancaram o Estado laico, e já não podemos dizer nada”.

No início desta tarde,  de junho, Dirceu Greco enviou esta mensagem a todos os seus colaboradores:

“Esta é para comunicar que fui destituído e rapidamente exonerado pelo secretário de Vigilância em Saúde por ordem do ministro da Saúde, por discordâncias do ministério com a condução da política de direitos humanos e valorização de populações em situação de maior vulnerabilidade, que não coadunava com a política conservadora do  atual governo.
Agradeço o apoio durante minha gestão e a solidariedade neste momento de transição. Volto para Belo Horizonte, para minhas atividades como Professor Titular de Clínica Médica e na Bioética.
Espero continuarmos todos juntos nesta luta, não só para o controle da epidemia, para a qual já existe instrumental técnico, mas principalmente enfrentando as disparidades, combatendo o estigma, a discriminação e a violência, e com defesa inequívoca dos direitos humanos.
Relembro que a política brasileira de enfrentamento das DST, Aids e Hepatites Virais, reconhecida nacional e internacionalmente, é maior que o Departamento e deve ser mantida como política de Estado e não só de governo”.

Com base nos meus 32 anos como repórter especializada em saúde e que acompanhou toda a evolução da aids no Brasil, ouso dizer: se, por nossa infelicidade, a epidemia tivesse surgido neste momento, o Brasil nunca teria se tornado referência mundial na prevenção de HIV/aids.

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Os guarani-kaiowá e as perversidades do senso comum

Acostumados à experiência da autodeterminação, os indígenas talvez tenham uma visão do que é o Brasil, como “projeto de nação”, que em muitos sentidos pode ser mais realista do que a de todos nós.

Por Renzo Taddei, do Canal Ibase
(Texto publicado no dia 12/11/2012 na Revista Fórum. Vale a pena ler!)

 (Foto Rosa Gauditano)

Nas últimas semanas recebi uma quantidade impressionante de solicitações, via redes sociais e e-mail, para manifestar meu apoio à causa dos Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul. Não me lembro, em minha experiência com redes sociais, de ter visto mobilização desse porte. Há pouco mais de uma semana, saiu decisão judicial a favor dos indígenas – ou, para colocar em termos mais precisos, revogando a reintegração de posse da área onde estão. Como atentou gente mais próxima ao movimento indígena, isso por si só não garante quase nada, apenas que violências maiores não sejam cometidas no curto prazo. De qualquer forma, não tive muito tempo para me alegrar com o que parecia uma vitória do potencial de mobilização descentralizada da sociedade civil: ao comentar a questão com um amigo, no Rio de Janeiro, recebi como resposta a pergunta, maliciosamente feita de forma a combinar ironia e seriedade em proporções iguais: “mas, afinal, para que servem os índios?” Desconcertado, não consegui articular nada, apenas retruquei: “não sei; mas e você, pra que serve?”
Não pude deixar de pensar no assunto nos dias que se seguiram. Mas, no caso, o assunto deixou de ser exatamente a situação dos Guarani Kaiowá, ou das especificidades de conflitos entre índios e não-índios, e passou a ser a situação de certa configuração de ideias do senso comum da população urbana – ou pelo menos das coletividades nas quais me insiro, no Rio de Janeiro e em São Paulo – sobre os índios, em primeira instância, e sobre aqueles que são irredutivelmente diferentes, em última. Obviamente esse é assunto complexo, e vou me limitar a apenas pontuar alguns temas que, creio, são importantes para iluminar o contexto no qual notícias sobre os conflitos envolvendo indígenas ganham significados, para a grande parcela da população brasileira que inevitavelmente participa disso tudo na posição de meros espectadores.

Sobre a natureza dos índios e não-índios
Certa vez, em uma aula de antropologia, na Escola de Comunicação da UFRJ, usei um exemplo hipotético de jovem índio que vinha à universidade estudar medicina. “Aí ele deixa de ser índio”, alguém disse. Na discussão que se seguiu, a opinião prevalecente era de que as expressões “índio urbano” e “índio médico”, usadas por mim, eram contradições em termos. Eu perguntei, então, se o fato de eu ser descendente de italianos, o que me dá, segundo a legislação italiana, o direito de “virar italiano”, faz com que eu deixe de ser alguma coisa – brasileiro, por exemplo. Confusão nas fisionomias. Por que eu posso virar italiano sem deixar de ser brasileiro, e ninguém vê problema nisso, e o índio não pode “virar” urbano sem deixar de ser índio? Concluímos – com vários autores estudiosos das populações indígenas – que, sem que as pessoas se deem conta, nós, urbanos, ocidentalóides, nos entendemos na maior parte do tempo como seres “culturais”, tendo algum controle sobre nossas identidades, portanto; enquanto isso, percebemos a essência indígena (se é que isso existe) como algo “natural”, sobre a qual eles não têm, nem podem ter, controle algum.
Nada mais natural, então, que pensar que lugar de índio é na floresta, e que índio tem que ser preservado, como se fosse parte da biodiversidade. Ou então índio deixa de ser índio e vira não-índio, arranja emprego, compra casa, toca a vida na cidade – se desnaturaliza. O problema é o índio que quer morar na cidade, ser médico, talvez, sem abandonar suas formas indígenas de entender o mundo e vida. Ou o índio que quer câmeras fotográficas, antibióticos, televisores, antenas parabólicas e escolas, mas não quer abrir mão da sua forma não-ocidental, e portanto não capitalista, de entender sua relação com a terra, por exemplo. Ou não quer abrir mão de sua forma não-ocidental, e portanto não marcada por um reducionismo materialista esvaziado e irresponsável, de relação com câmeras fotográficas, antibióticos, televisores, antenas parabólicas e escolas (é parte do senso comum que o que essas coisas são para mim são também para todos que delas fazem uso, o que não é verdade sequer para gente do mesmo grupo social). A questão se apresenta de forma pervasiva até entre gente politicamente progressista: na Cúpula dos Povos da Rio+20, uma grande amiga, ativista, me confidenciou ter ficado espantada ao ouvir de lideranças indígenas que eles gostariam de ter energia elétrica, saneamento, escolas. Eram afirmações que contrariavam suas expectativas “romanceadas”, nas suas próprias palavras, a respeito dos índios.
Por que é tão difícil aceitar a ideia de que quando o índio diz querer escola, ele não está fazendo nenhuma declaração sobre a sua identidade? Porque, dentre muitas outras coisas, identidade é paranoia de não-índio, mas não (necessariamente) paranoia de índio. Aqui começamos a chegar a algum lugar: é muito incômodo conviver com alguém que não compartilha nossas paranoias.
Uma das decorrências perversas desse estado de coisas é a forma como somos levados a ver os índios como pessoas “incompletas”, como sendo “menos” que os não-índios. Não é à toa que, juridicamente, os índios foram ao longo do século 20, até a Constituição de 1988 pelo menos, tratados como equivalentes a crianças, ou seja, como seres incapazes e que demandavam tratamento jurídico diferenciado, justamente em função dessa incapacidade. O problema estava (e está) nos códigos jurídicos, fechados à possibilidade do direito à diferença, e não nos índios, que não são mais nem menos capazes que os não-índios, mas apenas diferentes em suas capacidades. A mudança constitucional de 1988, como a própria questão dos Guarani Kaiowá demostra, ocorreu infelizmente muito mais de juris do que de fato.

Os muitos significados do verbo servir
Mas voltemos à questão sobre a “serventia” dos índios. O tema apareceu novamente em reportagem da revista Veja, edição de 4 de novembro. Replicando argumentos usados em edições anteriores ao tratar do tema, o texto (que de jornalístico não tem quase nada) mescla desinformação e preconceito, ao fazer uso, por exemplo, de argumentos como a suposta “trágica situação [dos índios] de silvícolas em um mundo tecnológico e industrial”, de afirmações como “[a] Funai também apoia o expansionismo selvagem”, e de acusações descabidas, como a de que os antropólogos ligados ao Conselho Indigenista Missionário querem transformar o sul do Mato Grosso do Sul numa “grande nação guarani”, justamente na “zona mais produtiva do agronegócio” do estado. Em 2010, a revista havia afirmado, através de um malabarismo estatístico de quinta categoria (digno de envergonhar até ruralistas medianamente sofisticados), que 90% do território brasileiro é ocupado ou destinado a áreas de preservação ambiental, comunidades indígenas, quilombolas e áreas de reforma agrária; “a agricultura e demais atividades econômicas terão apenas 8% de área para se desenvolver”. Enfim, a estratégia retórica é clara: quem não contribui com o agronegócio e demais formas de produção capitalista em grande escala – no caso, os índios e todos os demais grupos de alguma forma ligados a usos não predatórios da terra – não contribui com a economia nacional. Em uma palavra: só serve para atrapalhar.
Essa é uma questão, me parece, fundamental: é preciso discutir o conceito de serventia. Como a ideia de “servir” participa em nossas vidas, e na forma como aprendemos a entender e viver o mundo? Se a serventia dos que (supostamente) não estão integrados ao projeto da nação é um tema relevante – tanto ao pseudo-jornalismo da Veja como a certo senso comum urbano -, e nós, não-índios, (supostamente) integrados, afinal, servimos pra quê? E como isso afeta nossa compreensão das questões indígenas no Brasil contemporâneo, e mais especialmente o caso dos Guarani Kaiowá? Na minha opinião, isso tudo serve de pano de fundo contra o qual as audiências urbanas, dos grandes canais de mídia, distantes do Mato Grosso do Sul, atribuem sentido às notícias.
O caso dos Guarani Kaiowá traz à luz um elemento da vida cotidiana brasileira que é feito estrategicamente invisível na forma como somos ensinados a entender o mundo. Eles não querem ser “como nós”; tenho a impressão de que para a maioria da população urbana isso não apenas é contra intuitivo, mas figura como um choque, quase como uma afronta. Se eles gostam de fotografia, eletricidade, escolas e antibióticos, qual o problema, então?
Há uma diferença fundamental entre a experiência de mundo dos índios e dos não-índios brasileiros, e isso está ligado ao “lugar” onde se encontram as coisas verdadeiramente importantes. De acordo com trabalhos antropológicos que descrevem as visões de mundo e formas de vida de várias etnias indígenas sul-americanas, uma das características marcantes da vida indígena (para quem não é índio, obviamente), é a proximidade existencial das pessoas com os níveis mais altos da existência política e religiosa das suas sociedades. O poder político, em geral, não é algo que se manifeste em forma de hierarquias verticais, da forma como as entendemos, e provavelmente está ocupado por alguém com quem as pessoas da tribo tem relação pessoal direta, muitas vezes de parentesco. O mesmo se dá no que diz respeito à existência espiritual: está tudo logo ali, divindades, antepassados, espíritos, mediados pelas práticas do xamã, que também é conhecido de todos (ainda que, igualmente, talvez temido por todos). Há a percepção de que as coisas do mundo, alegrias e tristezas, sucessos e fracassos, são intrinsecamente ligadas à existência das pessoas da comunidade – os antropólogos chamam isso de relação de imanência.
O que é que a “integração” ao Brasil oferece, em contrapartida? Fundamentalmente, o deslocamento do centro de gravidade da existência para algum outro lugar, mais distante, abstrato, de difícil compreensão. Os índios resistem à ideia de que o centro do mundo passe a residir em outro lugar – em Brasília, por exemplo. Ou seja, resistem ao processo que os faz marginais. A marginalização, tomando a expressão de forma conceitual (ou seja, fazendo referência a quem está nas margens, nas bordas ou periferia), pode se dar deslocando-se alguém para a periferia do mundo, ou deslocando o centro de lugar, de modo que quem era central passa a ser periférico, e, portanto, marginal. De certa forma é exatamente isso que o Brasil oferece aos indígenas. Mas quem é que quer ser marginal?
O que a imensa maioria de nós, urbanitas ocidentalóides, não percebemos é que é isso, exatamente, que o Estado faz conosco. Assistimos à política e às outras formas de organização do nosso mundo – justiça, administração pública, economia – na qualidade de espectadores. Irritados, confusos, insatisfeitos, mas quintessencialmente espectadores. Somos mais capazes de interagir com um reality show do que com o mundo da política. Desde pequenos somos ensinados – e as políticas educacionais e conteúdos programáticos são desenhados cuidadosamente para tanto – que as coisas realmente importantes acontecem em algum outro lugar, e que são muito complexas, e que por isso mesmo há alguém mais capacitado cuidando disso tudo, para que possamos viver nossas vidas em paz. Ou seja, para que possamos não pensar em nada que não seja nos mantermos vivos e sermos economicamente ativos – e assim contribuir com o “projeto da nação”. Ou seja, o Estado reduz nossa vida ao mínimo – pão e circo, bolsa família e telenovela – para que as coisas funcionem e efetivamente aconteçam em algum outro lugar. Somos espectros de cidadãos.
Ou seja, a pergunta sobre para que servem as pessoas deve ser recolocada em outros termos: do que é que cada um de nós abre mão para “participar” do Brasil? Nós servimos para servir ao Estado. Somos todos marginais, e não nos damos conta disso.
O escândalo da questão indígena é a resistência que eles têm em aceitar os nossos mitos, ou as nossas ilusões – sobre o Brasil, por exemplo. Acostumados à experiência da autodeterminação, eles talvez tenham uma visão do que é o Brasil, como “projeto de nação”, que em muitos sentidos pode ser mais realista do que a de todos nós.
O Estado brasileiro só vai ser capaz de avançar na questão dos conflitos indígenas quando parar de tratar o tema da autodeterminação como anátema. E só o fará quando deixar de ter na tutela dos seus súditos sua razão de ser – ou seja, quando as elites políticas abandonarem a visão que tem de que o Brasil é fundamentalmente habitado por gente desqualificada, intelectualmente e moralmente inferior, e mal intencionada, e que demanda, portanto, o esforço do Estado para corrigir desvios e induzir a massa ao caminho produtivo. O Estado brasileiro é incapaz de reconhecer valor nas diferenças, justamente porque a homogeneização coletiva é condição de existência do próprio Estado. Frequentemente é evocada a noção de atentado àsoberania nacional quando o tema das diferenças é trazido ao centro da arena.
E se um bocado de gente decide – muito arrazoadamente, por sinal – que a economia não deve mais crescer? Isso, dirão muitos, é obviamente um atentado à soberania nacional. Ou não? É, antes que tudo, e talvez apenas, um atentado à soberania do soberano. Pelo menos da tecnocrática soberana da ocasião.

Manifestemo-nos hoje, enfaticamente, em defesa dos Guarani Kaiowá. Como forma de materializar nosso apreço pela liberdade e pelo direito à diferença. Como forma de protesto contra um Estado centralizador e autoritário. Como declaração de que não queremos juiz, médico, político ou professor nos dizendo como devemos viver nossas vidas. Essa função está reservada para os poetas – índios e não-índios, brancos e não-brancos.


Renzo Taddei é professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É doutor em antropologia pela Universidade de Columbia, em Nova York. Dedica-se aos estudos sociais da ciência e tecnologia.

Juristas e intelectuais questionam Dilma sobre questão indígena

Em carta, governo federal é acusado de gerar “insegurança jurídica para os interesses dos povos indígenas no Brasil”.

Por Igor Carvalho
04/06/2013

Oziel Gabriel morreu na manhã de quinta-feira, 30, por graves ferimentos de arma de fogo; polícia federal e indígenas seguem na área retomada (Foto: Reprodução / Brasil de Fato)

A política para os povos indígenas, da presidenta Dilma Roussef, foi questionada em carta aberta por intelectuais ligados aos direitos humanos e juristas. Para o grupo, “o caminho para uma demarcação de terra indígena hoje é complexo”, por conta da atuação do governo federal.
No começo do ano, foram os Guarani Kaiowá que tiveram de lutar pela sobrevivência e permanência nas terras de Pyelito Kue (MS). Na última quinta-feira (30), o índio Oziel Gabriel foi assassinado por policiais federais em uma ação de reintegração de posse. Houveram protestos e novas ocupações por parte da tribo Terena, que relatou terrorismo em conflito por terra no Mato Grosso do Sul.

Carta à presidenta Dilma Rousseff

A atitude do governo federal de desqualificar, através da Casa Civil, os estudos antropológicos desenvolvidos pela FUNAI e que servem de base aos processos administrativos para efetivar as demarcações de terras indígenas, gerou uma insegurança jurídica para os interesses dos povos indígenas no Brasil.
A decisão da Casa Civil da Presidência da República apresentada aos representantes do agronegócio e parlamentares do Mato Grosso do Sul, em reunião na semana passada em Brasília, de que a Embrapa, Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Ministério do Desenvolvimento Agrário, “avaliarão e darão contribuições” aos estudos antropológicos realizados pela FUNAI, repete a ação do último governo militar ao instituir o famigerado “grupão” do MIRAD, capitaneado pelo general Venturini, para “disciplinar” a FUNAI e “avaliar” as demandas indígenas.
O caminho para uma demarcação de terra indígena hoje é complexo e apesar do Decreto 1.775/96 (da lavra do então Ministro Nelson Jobim) facultar o contraditório em todas as fases do processo administrativo, este processo acaba indo parar na justiça a partir da simples nomeação, pela FUNAI, do grupo técnico encarregado de identificar uma terra indígena. E a judicialização é cheia de percalços e artimanhas jurídicas, medidas liminares a serviço do impedimento, chegando a absurdos como, por exemplo a Reclamação 8070 (relativa a terra indígena Raposa Serra do Sol), que ocupou tempo e trabalho de juízes. Mecanismos de protelação judicial que empurram a solução dos conflitos por décadas afrontando a obrigação constitucional da União de concluir as demarcações até cinco anos após a promulgação da Constituição de 1988.
O processo das terras terenas, onde acaba de ser assassinado pela Polícia Federal o índio Oziel Gabriel de 35 anos, chegou ao STF depois de 13 anos de tramitação e ao alcançar tão alta instância do judiciário brasileiro, com aprovação em plenário, onde analisou-se nos autos as provas de cada lado envolvido juntadas em todos estes anos de tribunais, retorna à Justiça do Mato Grosso do Sul, para novas perícias e faz-se um looping para não resolver o problema. Será que começa do zero?
A proposta da Ministra Gleisi Hoffmann introduz uma nova rota de fuga para criação de contraditórios jurídicos. É mais um mecanismo que favorece a geração de novos impedimentos jurídicos por parte do agronegócio, proporcionando que a ação de demarcação de terras, continue circulando nas instâncias da justiça. Agora, também com questionamentos embasados em contra-laudos e opiniões de setores do próprio estado e cujos interesses são distintos dos interesses indígenas, representados constitucionalmente pela FUNAI, através de laudos antropológicos aprovados pelo Ministério da Justiça para as questões de demarcação de suas terras.
A medida atinge os estudos já aprovados pelo Ministério da Justiça, aqueles que aguardam homologação e os em curso e abre também possibilidades de questionamento na justiça de terras já demarcadas, promovendo uma insegurança jurídica, que evidentemente é sentida por todos os povos indígenas envolvidos em disputas territoriais e setores da sociedade que acompanham e atuam neste problema.
Com tal medida fica evidente a responsabilidade da Ministra Gleisi Hoffmann pela radicalização da tensão no Mato Grosso do Sul e que atinge também outros povos de outros estados. O governo erra ao escolher lidar com o problema pelo caminho da protelação e do desmonte constitucional das funções da FUNAI, priorizando aspectos de desenvolvimento econômico e eleitorais frente aos direitos indígenas. Atenta aos direitos humanos e gera mais tensão no conflito indígena brasileiro.
No Mato Grosso do Sul a não solução da demarcação das terras indígenas é uma das várias guerras de baixa intensidade que vivemos em nosso país. São centenas de milhares de pessoas atingidas e a mudança de rito de tramitação da demarcação de terras indígenas, abrindo à consulta e apreciação os laudos antropológicos produzidos pela FUNAI para setores antagônicos à demarcação, contrariamente o que pensa a Casa Civil, só trará mais resistência indígena e mais conflitos.
Estes povos vivem em conflito permanente com o desenvolvimento de nossa sociedade há muitas décadas, em 1908 uma área de hum milhão de hectares é arrendada para uma empresa de mate, como se lá não existissem índios, 1955 houve uma CPI para apurar a apropriação ilegal de suas terras por grandes figuras da política mato-grossense, em 1965 um IPM é instaurado para apurar o roubo de terras indígenas, em 1968 o Relatório Figueiredo [leia-o aqui], recentemente localizado, aponta inúmeras violências e esbulhos de suas terras e renda, documentos que jogam luz sobre conflitos que se arrastam por décadas, causando sofrimento e dor em uma das maiores populações indígenas do Brasil.
Num país em que engatinhamos no direito de acesso à informação pública, cuja lei foi aprovada junto com a que criou a Comissão Nacional da Verdade, onde muitos documentos continuam escondidos, fora de catalogação institucional e portanto do acesso público, a hipótese de que terras demarcadas não possam mais ser objeto de ampliação é atitude antagônica ao momento em que vive a sociedade brasileira de busca por verdade e memória, justiça, reparação e não-repetição.
A justiça de transição, que reclamamos aos mortos e desaparecidos políticos, aos atingidos por torturas, aos perseguidos pela ditadura de 64, também alcança os povos indígenas brasileiros. Em sua grande maioria foram perseguidos, sofreram atentados, assassinatos, chacinas, massacres, como também sofreram torturas, prisões, desaparecimentos, remoções forçadas, escravização e hoje tais violações são objeto de estudo pela Comissão Nacional da Verdade.
O documento anexo [aqui,o Relatório Figueiredo], desaparecido por 45 anos, contém o depoimento dado pelo Chefe da Inspetoria Regional do Serviço de Proteção do Índio de Campo Grande ao procurador Jader de Figueiredo Correia, presidente da Comissão de Investigação do Ministério do Interior, onde aponta nomes de governadores, senadores, deputados federais e estaduais, juízes e outras pessoas que se apossaram de forma ilegal de terras indígenas no antigo estado do Mato Grosso.
A questão indígena dará o tamanho da régua que apontará a medida da evolução democrática de nossa sociedade, que está entre reconhecer os erros cometidos pelo estado, mudar condutas, reparar direitos destes povos e desenvolver mecanismos de não-repetição ou seguir o rumo da protelação judicial e os retrocessos em direitos humanos com o retorno de assassinatos, demonstração de e uso indevido de força e censura.
No passado muitos crimes foram cometidos em nome do desenvolvimento e da lei de segurança nacional, hoje tais práticas se escondem atrás de um discurso sobre a necessidade de “governabilidade” e de um “governo em disputa”, porém na prática os crimes continuam os mesmos, mudamos os atores e não avançamos em mudarmos estas condutas do estado brasileiro, gerando mecanismos de respeito aos cidadãos e garantias de seus direitos.

Assinam:
Anivaldo Padilha – membro do Konoinia, Presença Ecumênica e Serviço
Dalmo Dallari – jurista e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo
Gilberto Azanha – antropólogo e coordenador do Centro de Trabalho Indigenista
Marcelo Zelic – vice-presidente do Grupo Tortura Nunca Mais-SP e membro da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de SP
Roberto Monte – membro do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular do Rio Grande do Norte

Cimi diz que Dilma só atende ruralistas e não recebe movimento indígena

Conselho Indigenista Missionário divulgou nota na qual afirma que o governo de Dilma Rousseff aprofundou o processo de retração da demarcação de terras indígenas

Da Redação
04/06/2013

 O Cimi (Conselho Indigenista Missionário) divulgou nesta terça-feira, 4, uma nota na qual critica a política do governo federal quanto aos conflitos em tono de questões indígenas no Brasil. A nota afirma que o governo de Dilma Rousseff aprofundou o processo de retração de terras indígenas e acusa o governo federal de partir do pressuposto de que “os povos indígenas estariam causando os conflitos e agindo sob o comando de organizações não indígenas”.
Outra queixa apresentada na nota refere-se a falta de diálogo entre a União e os povos indígenas. De acordo com o CIMI, a presidenta Dilma Rousseff não recebeu os povos indígenas nenhuma vez durante os dois anos do seu mandato. Por outro lado, somente no mês de maio, a presidenta se reuniu pelo menos cinco vezes com representantes dos ruralistas.
Por fim, o Cimi apresenta quatro sugestões para a solução efetiva dos conflitos que envolvem questões indígenas: destravar os processos de demarcação, tanto no campo administrativo, quanto no campo judicial; ouvir os povos indígenas; revogar os próprios instrumentos de ataque aos povos, tais como, as portarias 419/2011 e 303/2012 e o Decreto 7957/2013; e mobilizar sua ampla base de apoio no Congresso para evitar os retrocessos almejados pelos ruralistas quanto aos direitos dos povos.

Leia a íntegra da nota divulgada pelo Cimi: 

O Governo Dilma, o agronegócio e os Povos Indígenas

O Governo Federal dá mostras cada vez mais evidentes que não entende e que não está disposto a entender os povos indígenas brasileiros. As medidas anunciadas pelo governo com o intuito de superar os conflitos em torno das questões indígenas no Brasil parte do pressuposto equivocado segundo o qual os povos indígenas estariam causando os conflitos e agindo sob o comando de organizações não indígenas, de modo especial o Cimi. Além de preconceituosa e racista, uma vez que considera os povos seres inferiores e incapazes de decisões próprias, o pressuposto é sociologicamente falho. Julgamos que algumas informações acerca da realidade que envolve a temática são importantes e suficientes para entendermos a situação. Vejamos.
O governo Dilma aprofundou o processo de retração de demarcações das terras indígenas. É o governo que menos demarca terras indígenas desde a ditadura militar. O governo também tomou medidas administrativas lesivas aos direitos dos povos, tais como a Portaria 419/11, a Portaria 303/12 e o Decreto 7957/13. A presidente Dilma ainda não recebeu os povos indígenas para qualquer conversa ao longo destes mais de dois anos de mandato. No entanto, somente no mês de maio, a presidenta reservou tempo em sua agenda para ao menos cinco encontros com representantes dos ruralistas, inimigos históricos dos povos indígenas. Somente em maio, Dilma esteve, oficialmente, duas vezes reunida com a senadora Kátia Abreu (PSD/TO), presidente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA). Os povos indígenas sabem que a CNA representa o ruralismo anti-indígena, responsável pelo ataque à legislação ambiental, que resultou na aprovação do novo Código Florestal em 2012, e pelo atual ataque aos seus direitos no Congresso Nacional.
A bancada ruralista ataca os direitos dos povos por meio de diferentes instrumentos na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. Há mais de uma centena de proposições legislativas contrárias aos direitos dos povos em tramitação nas duas casas do Congresso. Dentre elas destacam-se as Propostas de Emendas Constitucionais 215/2000, 038/1999 e 237/2013. Os povos indígenas sabem que os ruralistas querem fazer com a PEC 215/2000, hoje, o mesmo que fizeram com o Código Florestal em 2012. Flexibilizar os direitos dos povos e ter nas próprias mãos o poder para não demarcar as terras indígenas no país. 
Os povos indígenas, acampados em beiras de estradas ou confinados em reservas diminutas, tem demonstrado uma resistência e uma paciência históricas diante das violências do agronegócio e da parcimônia do Governo Federal. No entanto, certamente não estão dispostos a continuar sobrevivendo em condições sub-humanas, morrendo vítimas de desassistência, de assassinatos, de suicídios e de atropelamentos, exilados de suas terras até o fim de sua existência enquanto pessoas e povos.
Demarcações paralisadas pelo Governo Federal e ruralistas no ataque para impedir novas demarcações, rever as demarcações já realizadas e explorar as terras demarcadas. É isso que os povos indígenas enxergam na conjuntura político indigenista do Brasil. É contra este ataque sincronizado do Governo Federal e do agronegócio que os povos reagem na perspectiva de que seus direitos sejam preservados e efetivados. Uma reação, portanto, em legítima defesa de suas existências enquanto indivíduos e povos.
Será tão difícil para Dilma e seu governo entender isso? Sem falar com os povos e falando a todo o momento com o agronegócio, Dilma e seu governo continuarão sem entender os 305 povos indígenas existentes em nosso país.
Assim, partindo de um pressuposto equivocado, o governo adota e anuncia medidas equivocadas para tentar resolver os conflitos por ele criados.
Protelar reintegrações de posse não irá resolver o conflito. Os povos já foram expulsos pelos fazendeiros de suas terras e nem por isso deixaram de lutar pelo retorno às mesmas. Não será a expulsão pelas forças do Estado, com dois ou três dias de protelação, que mudará a relação dos povos com suas terras tradicionais.
Mudar o processo de demarcação das terras indígenas não irá resolver o conflito. Essa medida irá aprofundar ainda mais a retração nas demarcações, uma das causas centrais destes conflitos. Os povos indígenas sabem que a protelação das demarcações é parte da estratégia dos ruralistas, que querem “ganhar tempo” enquanto eles atuam para ter o poder acerca das não demarcações das terras, que se daria com a aprovação da PEC 215/2000.
Por fim, amordaçar o Cimi não irá resolver o conflito. Primeiro porque os povos são autônomos, cientes e senhores de suas decisões e do que é necessário para defender seus direitos. Segundo porque o Cimi não deixará de denunciar os ataques desferidos pelo governo e pelos ruralistas contra os povos indígenas no Brasil. O Cimi faz isso desde 1972 quando foi criado, em plena ditadura militar, e o fará até o último suspiro de sua existência. O compromisso do Cimi é com a vida dos povos indígenas. 
Para resolver efetivamente os conflitos que envolvem o tema, o Cimi entende que o governo deve organizar uma força tarefa para, dentre outras medidas urgentes e estruturantes: a) destravar os processos de demarcação, tanto no campo administrativo, quanto no campo judicial; b) ouvir os povos indígenas; c) revogar os próprios instrumentos de ataque aos povos, tais como, as portarias 419/2011 e 303/2012 e o Decreto 7957/2013; d) mobilizar sua ampla base de apoio no Congresso a fim de que se evite os retrocessos almejados pelos ruralistas quanto aos direitos dos povos.
Brasília, DF, 03 de junho de 2013.


Conselho Indigenista Missionário – Cimi

Carta número 9: tragédias e barragens (a luta não acaba nem lá nem aqui)

Nós saímos da ocupação da usina Belo Monte e viemos dialogar com o governo.
Nós não fizemos um acordo com vocês. Nós aceitamos a reunião em Brasília porque, quanto mais nós dizíamos que não sairíamos de lá, mais policiais vocês mandavam para o canteiro de obras. E no mesmo dia em que seríamos tirados à força pela sua polícia, vocês mataram um parente Terena no Mato Grosso do Sul. Então nós decidimos que não queríamos outro morto. Nós evitamos uma tragédia, vocês não. Vocês não evitam tragédias, vocês executam.
Viemos aqui falar para vocês da outra tragédia que iremos lutar para evitar: a perda do nosso território e da nossa vida. Nós não viemos negociar com vocês, porque não se negocia nem território nem vida. Nós somos contra a construção de barragens que matam a terra indígena, porque elas matam a cultura quando matam o peixe e afogam a terra. E isso mata a gente sem precisar de arma. Vocês continuam matando muito. Vocês simplesmente matam muito. Vocês já mataram demais, faz 513 anos.
Não viemos conversar só sobre uma barragem no Tapajós, como vocês estão falando na imprensa. Nós viemos a Brasília exigir a suspensão dos estudos e das obras de barragem nos rios Xingu, rio Tapajós e rio Teles Pires. Vocês não estão falando apenas com o povo Munduruku. Vocês estão falando com os Xipaya, Kayapó, Arara, Tupinambá e com todos os povos que estão juntos nessa luta, porque essa é uma luta grande e de todos.
Nós não trouxemos listas de pedidos. Nós somos contra as barragens. Exigimos o compromisso do governo federal em consultar e garantir o direito a veto a projetos que destroem a gente.
Mas não. Vocês atropelam tudo e fazem o que querem. E para isso, vocês fazem de tudo para dividir os povos indígenas. Nós viemos aqui dizer para vocês pararem, porque nós vamos resistir juntos e unidos. Estamos reunidos há 35 dias em Altamira, e por 17 dias nós ocupamos a principal hidrelétrica que vocês estão construindo. Junto dessa carta nós estamos mandando todas as cartas das duas ocupações que realizamos. Leiam tudo com atenção para entender nosso movimento. E assim respeitá-lo, o que vocês não fizeram até hoje.
O desrespeito não vem só nas palavras. Vem na ação de vocês.
Na região da Volta Grande do Xingu, tudo está sendo destruído e virado de cabeça para baixo, desde que vocês liberaram a construção da barragem Belo Monte. Todos estão muito tristes e apenas os ricos ficaram bem. Os parentes brigaram muito. Até os trabalhadores da obra sofrem.
No Tapajós e Teles Pires, vocês estão começando agora, mas já nos desrespeitaram muito.
Em agosto de 2012, os seus pesquisadores começaram a invadir nossas terras e pegar nossos animais e plantas e contar hectares e medir a água e furar nossa terra.
Em outubro, a Funai e a Eletrobrás disseram em reunião que as barragens iriam sair de qualquer jeito, com nós querendo ou não querendo. E que colocariam força policial na nossa terra se fosse necessário.
Em novembro, a polícia federal atacou e destruiu a aldeia Teles Pires, onde somos todos contra as barragens. Adenilson Munduruku foi assassinado com três tiros e outros 19 indígenas foram feridos. No final do mês nós fomos a Brasília denunciar a operação da polícia ao Ministério da Justiça, Funai e Secretaria Geral da Presidência da República. Também fomos ao Ministério Público Federal.
Em janeiro de 2013, fizemos uma grande assembleia Munduruku na aldeia Sai Cinza, onde foi entregue ao funcionário da Secretaria Geral da Presidência da República um documento com 33 pontos de reivindicação.
No mês seguinte, nós fomos novamente à Brasília exigir alguma resposta da Secretaria Geral da Presidência sobre os 33 pontos. Conseguimos encontrar o ministro, mas ele ignorou nossas reivindicações e tentou fazer com que nós assinássemos um documento aceitando as hidrelétricas do rio Tapajós.
Para garantir à força os estudos das barragens, em março de 2013 o governo baixa um decreto que autoriza a entrada das tropas policiais em nossas terras. Um dia depois nossas aldeias foram invadidas por pelotões de policiais.
No Teles Pires, foram encontrados ossos de parentes, muito antigos. Vocês estão destruindo um lugar sagrado.
Nós não pudemos aceitar mais isso. Por isso, ocupamos seu canteiro trazendo nossa reivindicação, exigindo do governo o compromisso em respeitar os povos originários desse país, em respeitar nosso direito à terra e à vida. Ou, pelo menos, respeitar a sua própria lei – a Constituição e os tratados internacionais que vocês assinam. Mas vocês querem destruir as leis que protegem nós, povos indígenas, com outras leis e decretos novos. Vocês querem legalizar destruição.
E agora chegamos aqui com vocês. Esperando que afinal vocês nos ouçam, ao invés de ouvir aqueles que pagam suas campanhas. Ainda que vocês não estejam dispostos a aprender a ouvir, nós estamos dispostos a ensinar.


Canteiro de obras de Belo Monte, Vitória do Xingu, 4 de junho de 2013

Índios afetados por hidrelétricas: três processos judiciais, nenhuma consulta

Consulta prévia aos indígenas é assunto de reunião hoje em Brasília entre o governo federal e os índios que paralisaram a obra de Belo Monte nos últimos oito dias

Fonte:  MPF-PA
Data: 04/06/2013 às 15h32

Os indígenas impactados de maneira definitiva pelos projetos de usinas hidrelétricas na Amazônia nunca foram consultados previamente, da forma definida pela Constituição brasileira e pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Por esse motivo, o governo brasileiro responde a três processos judiciais, movidos pelo Ministério Público Federal no Pará e no Mato Grosso. 

Nas ações, o MPF defende o direito de consulta dos povos indígenas Arara, Juruna, Munduruku e também para os ribeirinhos dos rios Xingu, Tapajós e Teles Pires. Uma quarta ação está em estudo, em defesa do direito dos Kayabi, afetados pela usina de São Manoel e nunca consultados. O licenciamento da usina está em andamento, mas chegou a ser paralisado por não prever sequer estudos de impactos ambiental sobre os indígenas. 

Os índios que ocupavam um dos canteiros de obras da usina de Belo Monte estão em Brasília hoje debatendo a reivindicação da consulta em uma reunião com o governo federal. A Vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat, acompanha a reunião, assim como a presidente da Associação Brasileira de Antropologia, Carmen Rial.

Suspensões de segurança
Em todos os processos que move sobre a consulta, o MPF obteve vitórias em favor dos indígenas, mas o governo recorreu e toca os projetos com base em liminares e suspensões de segurança – instrumento em que o presidente de um tribunal suspende decisões das instâncias inferiores de forma solitária,  sem julgamento em plenário. A suspensão de segurança não analisa os argumentos debatidos na ação, apenas se uma determinada decisão judicial afeta a ordem, a saúde, a segurança e a economia públicas, deixando o debate sobre os motivos do processo para depois.

Sobre o histórico de suspensões de decisões nos processos de usinas, os desembargadores da 5ª Turma do TRF1, que julgou os casos de Belo Monte e Teles Pires, lembraram que esse tipo de suspensão surgiu na lei processual brasileira em 1964, durante o regime de exceção. “A lei é de exceção e o Estado, hoje, é de direito. Portanto, a lei que criou a figura excepcional de suspensão de segurança, rompendo com o devido processo legal, é um diploma autoritário”, disseram em um acórdão.

Conflitos
Nos três rios que são objeto das ações do MPF pela consulta, o governo brasileiro tem projetos de pelo menos 11 hidrelétricas em estágios variados de construção e licenciamento. Belo Monte, o caso mais emblemático, já acumula mais de 17 processos na Justiça Federal e incontáveis conflitos com índios e trabalhadores. Foi palco de várias ocupações por indígenas, as últimas reivindicando claramente o direito da consulta prévia. 

A maior parte dos indígenas que ocuparam Belo Monte por 17 dias somente no último mês de maio vivem no rio Tapajós, afetados pelas usinas de São Luiz do Tapajós, São Manoel e Teles Pires. São Luiz do Tapajós é um dos grandes focos de conflito, mas não é o único. A usina Teles Pires, já em estágio de construção, explodiu cachoeiras consideradas território sagrado para os índios Munduruku. Eles nunca foram consultados e por isso, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília ordenou a paralisação da obra em agosto do ano passado. Mas a decisão dos três desembargadores que analisaram o processo foi suspensa por uma decisão monocrática do presidente do Tribunal, Mário César Ribeiro. O processo continua tramitando. 

No caso de São Luiz do Tapajós, todas as instâncias judiciais reconheceram o direito à Consulta não só para os índios, como para os ribeirinhos, que no rio Tapajós são conhecidos como beiradeiros. Em vez de fazer as consultas, no entanto, o governo recorreu na Justiça e montou uma operação da Força Nacional para garantir os estudos de impacto dentro dos territórios indígenas, o que é um dos principais motivos para a revolta dos Munduruku. Novamente, a Advocacia Geral da União conseguiu suspender as decisões favoráveis aos índios, dessa vez por meio de uma decisão monocrática do presidente do Superior Tribunal de Justiça, Félix Fischer. 

O primeiro caso do MPF sobre a consulta, iniciado em 2006, diz respeito aos indígenas do Xingu, impactados pela usina hidrelétrica de Belo Monte. A batalha judicial já completou sete anos. No começo do processo, os advogados do governo alegavam que as consultas poderiam se dar em qualquer etapa do licenciamento ambiental, que os estudos poderiam prosseguir, que as licenças poderiam ser concedidas e depois a consulta seria feita. 

No meio do processo, o governo federal mudou sua argumentação e passou a dizer que os indígenas do Xingu nem precisariam ser consultados, porque a hidrelétrica não alagará terras indígenas. O TRF1 desconsiderou o argumento, já que a obrigação prevista na Convenção 169 é para consultar povos afetados e que terão seus modos de vida modificados, não necessariamente alagados. No caso do Xingu, o rio será desviado para abastecer a usina: em vez de alagar, as terras indígenas vão secar, o que pode ser impacto ainda mais grave. 

A decisão favorável aos indígenas no caso de Belo Monte, que paralisou a usina por dez dias em agosto de 2012, também foi suspensa por uma decisão monocrática, do então presidente do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto. Até agora, o plenário do STF não analisou a questão. 

O momento da consulta
Entre as suspensões de segurança concedidas ao governo federal por Félix Fischer, Ayres Britto e Mário César Ribeiro existe uma coincidência: nenhuma delas afirma que que a consulta não é necessária ou não precisa ser feita, apenas permitem que o governo siga com estudos, cronogramas e obras até que chegue a hora de se julgar o direito da consulta. Para o MPF, o momento da consulta afeta decisivamente a efetividade desse direito. 

De acordo com a Convenção 169, a consulta é necessária em qualquer projeto ou decisão de governo que vá afetar, modificar, de forma permanente e irreversível, a vida de povos indígenas, tribais e tradicionais. Para o MPF, deve ser aplicada a várias populações amazônicas, não apenas indígenas. E deve ser feita antes de qualquer decisão sobre o projeto. 

Atualmente, o governo tenta convencer os indígenas do Tapajós e o judiciário que a consulta pode ser feita depois dos Estudos de Impacto Ambiental. Em argumentações nos processos judiciais, a AGU contraditoriamente afirma que quer fazer a consulta, batizada de Diálogo Tapajós, mas que não pode deixar de cumprir o cronograma de implantação da usina – do qual os estudos de impacto são etapa inicial. Para a AGU, para ser prévia, basta que a consulta seja feita antes da Licença Prévia concedida pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente. 

Para o MPF, isso equivale a tornar a consulta inválida, porque a decisão de construir a usina foi tomada muito antes do Ibama entrar no processo, quando concluído o inventário da bacia hidrográfica e definidos os pontos para construção de hidrelétricas. “Se a obra já tem até cronograma, como falar em consulta?”, questiona o procurador da República Felício Pontes Jr, que acompanha os processos sobre o assunto.

Após o inventário da bacia hidrográfica existem dois momentos em que o governo, em conjunto com empresários da construção civil e do setor elétrico, decide realmente pela construção da usina, sem a participação dos povos afetados. São as resoluções do Conselho Nacional de Política Energética e da Agencia Nacional de Energia Elétrica que definem que a obra será realizada. “Esses momentos tem que ser precedidos de consulta aos povos afetados, ou então o Brasil estará violando o compromisso assumido na Convenção 169”, explica o procurador Ubiratan Cazetta. 

Processo sobre a consulta da usina Teles Pires: 0018341-89.2012.4.01.0000
Acompanhamento Processual: 
http://www.trf1.jus.br/Processos/ProcessosTRF/ctrf1proc/ctrf1proc.php?tipoCon=1&proc=183418920124010000

Processo sobre a consulta da usina São Luiz do Tapajós: 0003883-98.2012.4.01.3902
Acompanhamento processual: 
http://processual.trf1.jus.br/consultaProcessual/captcha/index.php?proc=38839820124013902&secao=STM&nome=eletrobrás&mostrarBaixados=N

Processo sobre a consulta da usina Belo Monte: 200639030007118
Acompanhamento Processual: 
http://www.trf1.jus.br/Processos/ProcessosTRF/ctrf1proc/ctrf1proc.php?proc=200639030007118

sábado, 1 de junho de 2013

Associação Floresta Protegida: Carta De Apoio À Ocupação Do Canteiro De Obra De Belo Monte


A Associação Floresta Protegida, em nome dos Caciques Mebengôkre (Kayapó) das 20 aldeias que representa, manifesta solidariedade e apoio aos parentes de luta que estão ocupando o canteiro de obra de Belo Monte; e repúdio ao Governo Federal pela vergonhosa falta de respeito com os Povos Indígenas deste país.
Nós nunca aceitamos Belo Monte, e não engolimos esta Usina, estamos lutando há muitos anos e não é por que começaram a obra que vamos desistir.


Dia 03 de junho
Começa uma reunião, na beira do rio Xingu, 250 caciques e guerreiros de todas as aldeias Kayapó do Pará e do Mato Grosso para organizar nossa estratégia de luta. Podem contar com nosso apoio, e nós contamos com o de vocês também. A briga é dura, mas unidos nós temos mais força.