Jornal do Brasil 09/05/13
Dalmo de Abreu
Dallari*
Uma
vez mais – e agora com a colaboração ativa de setores do governo federal – está
em curso uma tentativa de negar cumprimento às determinações constitucionais de
reconhecimento e proteção dos direitos das comunidades indígenas sobre as
terras que tradicionalmente ocupam, para entregar essas terras aos investidores
do agronegócio. O dado novo é que a iniciativa ostensiva da nova investida
contra os direitos indígenas vem da cúpula do governo federal, que é justamente
o principal responsável pela defesa desses direitos, por expressa e muito clara
determinação constitucional. É oportuno lembrar
que a última tentativa de retirada da proteção desses direitos foi feita por
meio de uma proposta de emenda constitucional, a PEC 215, de autoria de um
deputado do estado de Roraima, que, absurdamente, pretendia transferir para o
Legislativo a tarefa, essencialmente administrativa, de demarcação das áreas
indígenas. Essa tentativa não prosperou, por sua evidente inconstitucionalidade
e pelo reconhecimento da absoluta impossibilidade prática de incumbir o
Legislativo de realizar tarefas para cuja execução ele não tem qualquer preparo
nem as mínimas condições práticas. A denúncia desse absurdo criou um
obstáculo para o avanço daquela proposta.
Agora
a investida dos interesses do agronegócio sobre as terras indígenas vem,
surpreendentemente, da cúpula do Poder Executivo federal. Quem aparece como
propositora de um novo tratamento da questão da identificação e demarcação das
terras indígenas pelo governo federal é a ministra-chefe da Casa Civil, Gleise
Hoffmann, que não tem a mínima familiaridade com o assunto, jamais tendo
participado de qualquer atividade com ele relacionado. É também oportuno e
necessário lembrar que já existe, na estrutura do governo federal um órgão
especializado nas questões indígenas, que é a Funai (Fundação Nacional do
Índio), criada pela Lei federal nº 5.371, de 5 de dezembro de 1967, em
substituição ao antigo Serviço de
Proteção ao Índio (SPI), que existia desde 1910. Por seu objetivo específico a
Funai vem acumulando conhecimentos e experiências no trato das questões
indígenas. O que tem sido denunciado há vários anos, sem qualquer efeito
prático, é que, certamente por influência de poderosos interesses econômicos e,
em decorrência, de poderes políticos, a Funai não tem recebido o apoio
necessário para o melhor desempenho
de suas tarefas, entre as quais se inclui a demarcação das áreas indígenas,
intensamente cobiçadas por investidores do
setor agrícola.
É
pública e notória a interferência do agronegócio nessa área, já tendo sido
objeto de informações pormenorizadas e de muitos comentários a atuação da
senadora Kátia Abreu, cuja família é ocupante de grandes áreas rurais no estado
de Tocantins e que acumula, ilegalmente, o desempenho do mandato de senadora
com o exercício da presidência da Confederação da Agricultura e Pecuária do
Brasil, dando indisfarçável preferência aos interesses dessa área quando eles
se opõem aos interesses de todo o povo brasileiro, como ficou evidente na
discussão da alteração do Código Florestal, ou a interesses de setores sociais
especialmente protegidos pela Constituição, como é o caso das comunidades
indígenas. Inúmeras vezes tem sido alegada a insuficiência dos meios de que
dispõe a Funai para o cumprimento, pelo governo federal, da obrigação
constitucional de demarcação das terras indígenas, estabelecida no artigo 231
da Constituição de 1988. O que se tem deixado muito evidente é que há anos não
são dados à Funai os recursos de que ela necessita, ficando muito claro o
propósito de utilizar a inoperância da Funai como pretexto para transferir a
outros setores do governo (ou de fora do governo, como se viu pela PEC 215) a
tarefa de reconhecimento e demarcação das áreas indígenas, com o indisfarçável
objetivo de redução substancial da extensão dessas áreas.
Pela
proposta agora encampada pela ministra-chefe da Casa Civil, no processo de
identificação e demarcação das terras indígenas deverão ser considerados,
com especial atenção, dados do Ministério da Agricultura e do Ministério das
Cidades, parecendo haver a intenção de colocar em plano secundário a Funai, que
se limitaria a fornecer laudos antropológicos. Um ponto que causou estranheza
foi o deslocamento do assunto da área do Ministério da Justiça, ao qual a Funai
está vinculada, para a Casa Civil. Nada impede que outros órgãos do governo
federal sejam consultados e forneçam informações à Funai, mas esta, por sua
natureza, por sua organização e pela experiência acumulada, é que deve ter a
principal responsabilidade no cumprimento do encargo de dar efetividade a essa
obrigação constitucional do governo da República. Espera-se que o ministro da
Justiça tome conhecimento das intenções da Casa Civil e que use sua influência
para que a Funai receba mais recursos e, com a colaboração de outros setores do
governo, acelere o processo de demarcação das áreas indígenas.
*Dalmo
de Abreu Dallari é jurista. - dallari@noos.fr
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