sábado, 13 de dezembro de 2008

Diários particulares de Maysa revelam uma mulher insuspeita



Cantora que hoje faria 70 anos vai ganhar no próximo ano uma biografia baseada em suas próprias anotações.

Lira Neto

Cerca de um mês antes de morrer, em 1977, em um trágico acidente na ponte Rio-Niterói, Maysa faria a última anotação em seu diário particular. "Tenho 40 anos, 20 de carreira. Sou uma mulher só. O que dirá o futuro?" Não houve tempo, infelizmente, para que respondesse à própria pergunta. Hoje, 6 de junho de 2006, ela faria 70 anos. Neste tempo de celebridades instantâneas e glórias frívolas, difícil dizer qual futuro estaria reservado para uma Maysa setentona. Por certo, continuaria a encarar a vida de forma tão intensa quanto sempre a cantou. "Há gritos incríveis dentro de mim, que me povoam da mais imensa solidão", escreveu, em outro trecho do diário.


Em seus muitos cadernos íntimos, cultivados religiosamente, com capricho, desde a adolescência, Maysa mantinha um embate permanente consigo mesma. Fazia desabafos, promessas, confissões. De quando em vez, desenhava-se de perfil, em pequenos auto-retratos rabiscados a lápis. Da ponta da caneta, derramava-se a letra inclinada e nervosa, que não raro chegava a furar o papel, denunciando a voracidade com que se entregava a esse ritual, reservado e cotidiano.


Os momentos mais marcantes dos diários de Maysa estarão na biografia que será lançada ano que vem, com 500 páginas, pela editora Globo, quando se completam os 30 anos de morte daquela que foi uma das maiores divas da música brasileira de todos os tempos. Além dos cadernos pessoais de Maysa, a pesquisa para o livro inclui pelo menos uma centena de entrevistas e o mergulho em cerca de 30 quilos de material, fornecidos pelo filho dela, o diretor de cinema e TV Jayme Monjardim. São milhares de recortes de jornais e revistas, do Brasil e dos vários países por onde Maysa viveu e cantou. Na França, Itália, Estados Unidos, Portugal e Espanha, por exemplo, gravou discos hoje raríssimos, disputados avidamente por fãs e colecionadores.


"Eu só digo o que penso, só faço o que gosto e aquilo que creio. E se alguém não quiser entender e falar, pois que fale", avisava Maysa, na letra da canção Resposta, de sua autoria. Não à toa, sua vida seria marcada, desde sempre, pela ousadia e pela polêmica. Aos 17 anos, saiu praticamente direto do colégio interno para casar com o milionário André Matarazzo. Mas, para escândalo da tradicional família paulistana, logo trocaria o casamento pela "duvidosa" profissão de artista. Desquitada, Maysa dedicou-se à música, viveu amores turbulentos, enfrentou problemas com a bebida. Engordou horrores, quebrou tabus, enfrentou preconceitos. Foi alvo recorrente das revistas de fofoca e, várias vezes, tentou o suicídio. "Não quero morrer. Isso tudo é uma espécie de apelo, um pedido de proteção", confessou.


Foi a inconfundível deusa da música de fossa e da dor-de-cotovelo. A frase "meu mundo caiu", que dá título a uma de suas mais belas e doloridas composições, tornou-se bordão nacional para definir a angústia amorosa e o desencanto radical. Mas os que conviveram com ela também não esquecem de outro lado, menos conhecido, de Maysa. Uma faceta insuspeitada pelos que se acostumaram a ouvi-la cantar, de modo obsessivo, a dor, o desespero e a separação. Isso mesmo. Os antigos amigos falam da existência de uma Maysa solar, irreverente, desbocada, dona de uma gargalhada tonitruante, humor imprevisível, chegada a uma molecagem explícita. "Se sou feliz? Felicidade é coisa de gente burra", ironizava, contudo, Maysa.


Para compreender uma mulher complexa e controvertida como Maysa, é preciso evitar o estereótipo que ela mesma ajudou a construir em torno de si. A eterna cantora dos amores frustrados tinha a exata consciência de que, à certa altura, tornara-se refém da própria imagem pública. "Eu embarquei nessa canoa furada e acabei me tornando o que queriam que eu fosse: uma mulher mal-amada", desabafou.


No fim da vida, recolhida à sua casa de praia, em Maricá, longe dos holofotes da mídia, ensaiava um lento e gradual reencontro consigo. "Não tenho medo da morte. Tenho a impressão de que jamais morrerei", disse, nessa época, a um repórter. "Continuo a mesma, apenas encaro a vida com sereno otimismo", completou. Em seu diário íntimo, porém, revelava a dúvida que alimentava sobre as próprias palavras: "E se o amanhã não chegar?", indagava, na derradeira anotação de seu caderno.


Lira Neto, de 42 anos, jornalista, escreve a biografiade Maysa, a sair em 2007 pela Editora Globo.

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