terça-feira, 14 de outubro de 2008










Flávio Gikovate: 'Os solteiros que não estão bem são os que ainda sonham com um amor romântico' ou ‘O amor romântico está com os dias contados’ é o que prevê Flávio Gikovate no livro “Uma História do Amor... com Final Feliz”.
Mitos como o de que os opostos se atraem e que relações entre casais só dão certo quando cada um abre mão da individualidade estão caindo por terra, segundo Flávio Gikovate. Para o psicoterapeuta, o avanço da sociedade está ocasionando verdadeiras mutações nos relacionamentos. 'A idéia de fusão funcionava até pouco tempo atrás porque eram duas carnes com um só cérebro: o do homem. A mulher, oficialmente, não pensava. Com a independência econômica e sexual, ela chegou também à intelectual. As relações afetivas estão passando por profundas transformações e revolucionando o conceito de amor'.
Aqui, o psicoterapeuta explica por que os relacionamentos duradouros são os que unem dois inteiros e não duas metades.


Até que ponto a relação com a mãe, durante a infância, influencia os relacionamentos amorosos da vida adulta?
Dr. Flávio Gikovate - O amor é um sentimento que temos pela pessoa cuja presença provoca em nós a sensação de paz e aconchego que perdemos ao nascer, quando sofremos uma ruptura que gera desamparo. Essa sensação só se atenua com a reaproximação física da mãe. Assim, ela é o nosso primeiro objeto de amor. Quando crescemos e nos tornamos independentes, queremos nos entreter com outras coisas, mas, vez por outra, nos sentimos inseguros e corremos atrás do aconchego físico materno. A impressão de ser uma 'metade', portanto, nos acompanha desde o nascimento, porque nascemos fundidos a outro ser - a mãe. O problema é que essa sensação de que falta alguma coisa não pode ser preenchida por outra pessoa. 'Viver sozinho é um bom estágio para dar início a uma relação madura'.

O ser humano tem a necessidade de encontrar o 'aconchego', que o senhor define como prazer negativo - já que supre a sensação de desamparo. Nesse sentido, é mesmo 'impossível ser feliz sozinho'?
FG - Temos de entender que não somos metade. Ninguém precisa de outra parte para se completar. Essa situação de incompletude tem de ser resolvida internamente, sem repassar ao outro a responsabilidade por esse vazio. Há muitos solteiros felizes. A maioria leva uma vida serena e sem conflitos. Quando sentem uma sensação de desamparo - aquele 'vazio no estômago' por estarem sozinhos -, resolvem a questão sem ajuda. Mantêm-se ocupados, cultivam bons amigos, lêem um bom livro, vão ao cinema. Com um pouco de paciência e treino, driblam a solidão e se dedicam às tarefas que mais gostam. Os solteiros que não estão bem são, geralmente, os que ainda sonham com um amor romântico. Ainda possuem a idéia de que uma pessoa precisa de outra para se completar. A solidão é boa, ficar sozinho não é vergonhoso. Ao contrário, dá dignidade à pessoa. As boas relações afetivas são parecidas com 'o ficar sozinho', ninguém exige nada de ninguém e ambos crescem. Viver sozinho é um bom estágio para dar início a uma relação madura. Pode ser que a pessoa goste tanto dessa condição que decida não investir mais em relacionamentos.

Por que tantas pessoas insistem em continuar a viver relacionamentos arruinados?
FG - Provavelmente pela falta de compreensão sobre o que de fato representa viver em comunhão. E, definitivamente, não é fazendo concessões e sufocando a individualidade que as relações vão se sustentar. A maioria dos divórcios é de iniciativa da mulher, porque casamentos de má qualidade são mais desgastantes para ela, que é quem culturalmente faz mais concessões no relacionamento. Em geral, são relações entre opostos: um egoísta e outro generoso. E há tanto homens como mulheres dos dois tipos. Nas separações por iniciativa feminina, geralmente a mulher generosa ficou cansada do marido folgado. A egoísta não se separa, pois se beneficia da situação. Os maridos generosos não se separam porque não são bons em ficar sozinhos e perdem mais com a separação, como os filhos e a casa.

Por que essas pessoas acabam se envolvendo com o mesmo perfil do parceiro anterior? Por exemplo, um parceiro violento ou irresponsável.
FG - Porque a idéia de fusão, embutida no amor romântico, ainda prevalece na escolha do parceiro. Para se sentir completa, a pessoa busca um oposto. Muitos casamentos entre opostos, com a idéia de fusão, ainda vão acontecer antes que as pessoas se dêem conta de que não dá mais para insistir nesse tipo de relacionamento. A necessidade de independência vem desde cedo no ser humano. Só que mudaram as prioridades. Antes, o amor ganhava da individualidade porque não havia o que fazer com ela. Não tinha televisão, meio de transporte. Hoje temos 100 canais de TV que facilitam os momentos de lazer e o Ipod para ouvir música sozinho. Ou seja, a individualidade é um bem precioso, que ninguém quer (nem deve) abrir mão. 'Casais que se gostam passam por crises e reconstituem a aliança em termos mais individualizados'.

Se relacionar com alguém com o perfil muito diferente do seu é o principal ponto problemático nos relacionamentos atualmente?
FG - Sim, o maior erro é escolher parceiros que são o oposto de nós. Generosas se ligam a egoístas; extrovertidos se ligam a recatadas; boêmios se ligam a pessoas de vida diurna e assim por diante. Em geral, pessoas com 'boa dose de auto-estima' costumam ser egoístas. E pessoas com baixa auto-estima tendem a ser generosas. As duas posturas derivam da imaturidade emocional, portanto não são adequadas. O generoso não é nenhum bonzinho. Ele dá mais do que recebe, mas cobra por isso. O egoísta não tolera frustrações e contrariedades. Se o egoísta tenta dominar pela intimidação, o generoso tenta dominar pela competência. Isso forma uma trama diabólica que se perpetua ao longo das histórias de gerações. A sociedade criou o individualismo para acabar com a dualidade egoísmo-generosidade. Esse novo contexto vai formar o justo, que é o indivíduo que dá e recebe na mesma medida. Ele troca, não dá com o intuito de dominar, nem recebe de uma forma parasítica.

No livro o senhor menciona que o velho conceito de que os opostos se atraem está mudando. Como se dá essa transformação na sociedade?
FG - A passagem de uma relação convencional para uma relação de mais amor, que eu defendo, é lenta e progressiva. Tem um momento que dói. Um dos dois vai reclamar primeiro do sufoco. O outro vai ficar ofendido, mas vai aproveitar para afrouxar o vínculo também. Momentaneamente há uma crise. Mas casais que se gostam mesmo, que se respeitam, que têm afinidade, passam por isso e reconstituem a aliança em termos mais individualizados. Assim, entendem que, se um não gosta de ópera, não tem por que ir com o outro e ficar dormindo durante a apresentação. Se a mulher não gosta de futebol, não tem por que ficar ao lado do marido entediada. 'Aos poucos, as pessoas estão reconhecendo quão imaturo e desgastante é o amor tradicional que conhecemos'.

Muito tem se falado em casais que decidiram, depois de muito tempo debaixo do mesmo teto, morar sozinhos para manter a saúde da relação. É um sinal de que há um outro tipo de relacionamento surgindo?
FG - Essa é mais uma das mudanças que podem acontecer nos novos relacionamentos. Se for uma decisão madura, não há problemas. Temos de tirar vantagens, em vez de lamentar. Os pontos positivos são muitos: avanço moral, avanço da capacidade de viver sozinho, de aprender a resolver a situação de incompletude e não imaginar que isso vai se resolver por meio do outro. O que mais devemos evitar é a postura conservadora de querer fazer prevalecer atitudes que não estão mais em concordância com a realidade - e que foi modificada por força da própria ação humana.

Por que o amor romântico - que julga serem necessárias duas pessoas, ou seja, um casal, para que se chegue à felicidade plena - irá acabar? Como será esse novo tipo de relacionamento?
FG - As relações afetivas estão passando por profundas transformações e revolucionando o conceito de amor. O que se busca hoje é uma relação compatível com os tempos modernos, na qual exista individualidade, respeito, alegria e prazer de estar junto, e não mais uma dependência, em que um responsabiliza o outro pelo seu bem-estar. Quando há qualidade, as chances de o relacionamento durar são bem maiores.
O amor romântico - ciumento, opressivo e sufocante - não tem mais chances de dar certo porque é incompatível com o desejo crescente do individualismo. Aos poucos, as pessoas estão reconhecendo quão imaturo e desgastante é o amor tradicional que conhecemos. No mundo moderno, em que há muita atividade individual e interesses individuais, o amor como remédio não funciona porque ele é possessivo e exclui a liberdade. Isso ninguém tem suportado mais. Esse amor vai ter de ser substituído por outra qualidade de relação - algo mais parecido com a amizade, porque é aproximação de duas unidades, não a fusão de duas metades.


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