quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Guarani Kaiowá: Vice-procuradora da República diz ser preciso garantir presença do Estado em áreas de conflito


Por Luana Luizy, de Brasília (DF)

Lideranças indígenas das etnias Kaiowá Guarani e Terena, do Mato Grosso do Sul, se reuniram na tarde desta segunda-feira, 29, com a vice-procuradora geral da República Deborah Duprat, na 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (MPF), em Brasília. “É preciso garantir a presença do governo federal nas áreas de conflito. Em questão de políticas públicas a área de retomada precisa ser prioritária em saneamento, saúde, instalações provisórias e escolas”, defende Deborah Duprat.
A questão da segurança das comunidades, morosidade na demarcação de terras e denúncia de ameaças contra os indígenas foram os principais assuntos do encontro. “Estamos diante da situação mais complicada da demarcação de terras indígenas (TI) do país, pois há na região uma forte resistência política e econômica”, declara Deborah Duprat. A taxa de homicídios em Mato Grosso do Sul é alarmante e chega a 140 para cada 100 mil habitantes, superando países em estado de guerra, como o Iraque.
“Para acabar a violência é preciso demarcar terra e a Funai divulgar o relatório final do Grupo de Estudo. O Estado não respeita nosso direito e não considera que somos cidadãos. O governo já deixou bastante claro e não vai apoiar a questão indígena”, afirma Otoniel Ricardo, membro da Aty Guasu e do Conselho Continental Guarani.
“A gente não escuta indígenas que mataram fazendeiros, mas o contrário sim. Solicitamos a Força Nacional segurança na região, mas não tivemos resposta até agora”, afirma Lindomar Terena.
A morosidade na demarcação de terras é uma das principais causas da violência na região. Nos últimos anos pouco se avançou no reconhecimento das terras indígenas. Dois motivos ganham destaque: o grupo técnico da Funai é impedido de entrar nas fazendas para a realização dos estudos e o governo federal não se empenha em fortalecer o trabalho do órgão indigenista, aliando-se ao latifúndio.
“Há um racismo institucional, o Estado que coloca suas instituições contra os índios, exige da Funai cautela. Seria uma injustiça responsabilizar apenas a Funai. O Judiciário também é culpado, cada vez que se avança em algo, temos uma decisão judicial contrária aos direitos indígenas”, reitera a vice-procuradora.
“No nosso tekoha continuamos na margem do rio ou vamos sair para cima e terminar a retomada. Se os fazendeiros e pistoleiros atacarem, nós não vamos sair”, conta o Líder Lopes, de Pyelito Kue. No caso dessa terra indígena a ação judicial que determina a saída permanece e os indígenas podem ser despejados a qualquer momento. O MPF e a Funai entraram com recurso, mas o caso aguarda decisão do Tribunal Regional Federal da 3° Região (TRF-3).

Suicídios: situação intermitente
Nos últimos dias interpretações equivocadas sobre a carta da comunidade de Pyelito Kue circularam na grande mídia e redes sociais. Na carta os indígenas Guarani Kaiowá denunciam a morte coletiva efetuada pela Justiça brasileira, caso a ordem de despejo decretada pela Justiça de Narivaí (MS) seja realizada. Não falam em suicídio coletivo. Porém, a violência que acomete esse povo perpassa por um número elevado de suicídios – sobretudo ente os jovens
Na madrugada do último sábado, 27, o jovem Guarani Kaiowá Agripino da Silva, de 23 anos, se matou. Entre 2000 e 2011 foram 555 suicídios entre os Kaiowá e Guarani motivados por situações de confinamento, falta de perspectiva, violência, afastamento das terras tradicionais e vida em acampamentos às margens de estradas. Nenhum dos referidos suicídios ocorreu em massa, de maneira coletiva, organizada e anunciada. “Não tem oportunidade para a gente crescer, tem que ter um projeto voltado para nosso povo”, diz Otoniel.
Outro caso de violência dá conta de denúncia feita por uma jovem de Pyelito Kue. A indígena afirma ter sido violentada por um grupo de pistoleiros em Iguatemi. A polícia investiga o caso depois que a perícia médica confirmou o estupro. “A paciência dos Guarani Kaiowá acabou. As comunidades decidiram partir para a ação mesmo. Na mídia só se anuncia a questão do suicídio coletivo, mas não colocam a razão. Para os fazendeiros é mais fácil falar que são os indígenas que estão se matando, mas na verdade está acontecendo um genocídio por parte da Justiça e do Governo”, diz Eliseu Lopes Guarani Kaiowá e representante do povo na Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros (Apib).
A morte do cacique Nísio Gomes, tekoha Guaiviry que teve seu acampamento invadido por homens armados, onde o sequestraram o corpo, até hoje desaparecido, também foi lembrado na reunião com a presença de seu filho. “Vai fazer um ano que meu pai está desaparecido. Os mandantes estão soltos, mas os executores estão presos, queremos resultado, alguma coisa, pelo menos algum osso. Meu pai deixou sangue na nossa terra e não vamos sair de jeito nenhum”, conta Genito Gomes.
Nos últimos dez anos, os Guarani Kaiowá ocuparam apenas dois mil hectares de terras, sendo que apenas três terras indígenas foram homologadas. Conforme o último censo do IBGE (2010), o povo é composto por 43 mil indígenas, sendo a segunda maior etnia do país os Tikuna (AM) são 46 mil.

Kadiwéu
Durante a reunião, os Guarani Kaiowá e Terena lembraram da luta travada pelos Kadiwéu contra os invasores de suas terras – demarcadas há mais de 100 anos e homologadas há pelo menos 30. Os indígenas retomaram, durante este ano, 23 fazendas situadas dentro da terra indígena como meio de sensibilizar a sociedade e solucionar o problema.
A área de retomada é um dos principais focos de violência e conflitos entre pistoleiros. “Os fazendeiros já decretaram o derramamento de sangue, mas nós não vamos sair de nossa terra. Enquanto não tiver demarcação definitiva não vai minimizar os problemas”, reitera Eliseu.

Dourados: em Nhu Verá, indígenas Kaiowá enfrentam novo despejo


Ruy Sposati,
de Campo Grande (MS)

As 79 famílias da comunidade Kaiowá de Nhu Verá, no município de Dourados, tem até
meados de novembro para saírem de seu tekoha - o território sagrado. Uma decisão da Justiça Federal em Dourados autoriza a desocupação e reintegração de posse de 26 hectares de terra ocupados pelos indígenas. Foi autorizado o uso de força policial, caso os indígenas resolvam permanecer no território.

Segundo a decisão, os Kaiowá deverão desocupar a área no prazo de trinta dias, a partir da data da intimação dos indígenas, e receberão multa diária no valor de 100 reais no caso de nova ocupação.
Grudados à Reserva Indígena de Dourados, ladeados por plantações de soja e eucalipto e cortados por uma estrada, os Kaiowá tiveram suas terras arrendadas e griladas ao longo do século vinte, conforme relatam. Em maio de 2011, retomaram 26 hectares de seu território tradicional.
"Quando a gente retomou, o fazendeiro chegou e perguntou: o que aconteceu aqui? Algum acidente? Aí explicamos que ali era nosso, que eles já tinham usado muito a terra. Era a retomada", relata a liderança indígena de Nhu Verá, Shatalim Graito.
"Ele ficou me procurando, queria negociar. Eu não negociei. Dinheiro acaba. Eu quero terra pra minha comunidade. A terra não é do fazendeiro, é nossa", expõe. "É nossa, do tempo do meu avó, do meu bisavô. Meus parentes moraram aqui e morreram aqui. Por isso fizemos isso, voltamos pra cá, e vamos ficar aqui", explica.
Sobre a área indígena destes Kaiowá incide a Fazenda Curral de Arame. Seus proprietários, Achilles e Lenita Decian, ajuizaram ação possessória na Justiça Federal. No dia 16 de outubro, o juíz José Luiz Paludetto deferiu o pedido de liminar dos dois fazendeiros e expediu mandado de desocupação e reintegração de posse da área.

FORÇA POLICIAL
Houve audiência de tentativa de conciliação, "a qual restou infrutífera", segundo afirma o despacho.
No caso do descumprimento da desocupação, o mandado deverá ser cumprido "moderadamente, com as cautelas que o caso exige", indica o documento. Mas completa: "em caso de resistência, fica autorizado desde já o uso de força policial".
Para Shatalim, o arrendamento das terras em acordos mal explicados e a sequente grilagem das terras foram responsáveis pela perda do terrítorio original. "Começou assim, no tempo em que alguém alugou para fazendeiro que morava aqui perto. Alugou pra dar de comer. Só que aí depois eles fecharam, fizeram cerca. Deu uma vaca, um porco, e depois disso fizeram documento. Pessoal antigo, que não tem estudo, fez isso assim. Foi enganado. Fazendeiro tirou esse nosso pedaço, essa nossa parte da terra", aponta.

FUNAI
O juíz refuta a alegação dos indígenas de se tratar de terras tradicionais porque, "a despeito do argumento, não trouxeram [os indígenas] nenhum documento que comprovasse" que Nhu Verá é território tradicionalmente ocupado pelos índios. Como a área não foi reconhecida como indígena pela União, a Justiça não teria elementos para assim o fazê-lo.
Toda a decisão do juíz é baseada no trabalho inconcluso do órgão governamental.  "Enquanto não iniciado e concluído o trabalho de identificação e demarcação, as terras (...) não podem ser classificadas como (...) indígenas".
Segundo a decisão, a Funai afirmou que "seria constituído Grupo Técnico ainda este ano para o estudo de identificação das terras tradicionalmente ocupadas por indígenas, mas ainda não há nos autos qualquer notícia concreta quanto a este fato".

CONFINAMENTO
No tekoha Nhu Verá, as famílias plantam mandioca, abacaxi, banana, milho, manga, pokã. "Sem veneno. Tudo bonito. Gosto de deixar herança. Todo ano dá muita pokã. A gente não dá nem conta de comer", diz Shatalim. "Nós precisamos de espaço. Hoje já não é assim e por isso os índios brigam demais", referindo-se à vida de confinamento nas reservas indígenas.
"Índio gosta o mato. Quando eu tenho que ir na cidade resolver alguma coisa, eu chego lá, me incomodo. Fico dez minutos e quero ir embora. Eu gosto é do mato. Fico o maior alegre quando tô no mato. Eu chamo tudo bicharada. Por isso quero ficar aqui", aponta.

A COBRA
Shatalim e os Kaiowá tem certeza de que ficarão na terra, e conta a história da cobra para nos explicar o porquê. "Depois da retomada, uma cobra chegou na minha barraca. Uma jaracara amarela, grossa. De noitezinha. Eu tomando chimarrão e ela apareceu no fundo. Apontei o fogo e vi que era muito grande". Shatalim conta que matou a cobra a pancadas - e que isto significou não só eliminar a ameaça do animal peçonhento, mas também a vitória na reconquista da terra. "O sinal era muito brabo, muito feio. Depois, eu nunca mais vi cobra aqui depois, nem minhoca. A cobra representa que eu venci ele. Porque eu peguei ele. Se ela [a cobra] me pagasse,  ele [o fazendeiro] ia me vencer. Se ela pegasse no meu pé, na minha mão, ele ia me vencer. Aí eu já ia saber que o fazendeiro ia me vencer. Mas como eu bati, eu matei eu venci dele". E termina: "aqui eles não entram. Minha reza é forte. Aqui quem manda é o maracá".

Os 170 indígenas podem permanecer em uma área de 2 hectares dentro da fazenda Cambará, em Iguatemi/MS, até que os trabalhos de identificação da terra indígena sejam concluídos.



Índios guarani-kaiowá de Pyelito Kue. Foto: MPF/MS

O Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em São Paulo, suspendeu operação de retirada dos índios guarani-kaiowá do acampamento Pyelito Kue, atendendo a pedido da Fundação Nacional do Índio, após intensa mobilização de cidadãos na internet. O Ministério Público Federal tinha feito o mesmo pedido e foi contemplado pela decisão de hoje.
"A mobilização das redes sociais foi definitiva para alcançar esse resultado. Provocou uma reação raramente vista por parte do governo quando se trata de direitos indígenas", disse o procurador da República Marco Antonio Delfino de Almeida, que atua em Dourados. A situação dos guarani em Pyelito Kue se tornou assunto em todo o país quando os índios divulgaram uma carta em que se declaravam dispostos a morrer em vez de deixar as terras, assim que foram notificados do despejo pela Justiça Federal do Mato Grosso do Sul.
Pela decisão de hoje, os 170 indígenas podem permanecer em uma área de 2 hectares dentro da fazenda Cambará, em Iguatemi/MS, até que os trabalhos de identificação da terra indígena sejam concluídos. Relatório de Identificação e Delimitação da Terra Indígena falta ser publicado pela Funai. A desembargadora Cecilia Mello determinou o envio da decisão à presidente da República, Dilma Rousseff e ao ministro da Justiça, José Eduardo Martins Cardozo. 
À Funai, a desembargadora determinou que "deve adotar todas as providências no sentido de intensificar os trabalhos e concluir o mais rápido possível o procedimento administrativo de delimitação e demarcação das terras". Os trabalhos se arrastam há pelo menos 3 anos, quando a Funai assinou um Termo de Ajuste de Conduta com o MPF para examinar a questão territorial dos Guarani-Kaiowá. 

Pyelito Kue
Os guarani-kaiowá de Pyelito Kue ocupam área de reserva legal da fazenda Cambará, em Iguatemi, sul de Mato Grosso do Sul, desde novembro de 2011. Os índios se refugiaram no local - situado do outro lado do rio que corta a região - depois de ataque de pistoleiros em agosto do mesmo ano. Crianças e idosos ficaram feridos e o acampamento, montado à beira de estrada vicinal, foi destruído. (Confira nota sobre o ataque e fotos da travessiados índios)
Nota técnica da Fundação Nacional do Índio (Funai) publicada em março deste ano concluiu que a área reivindicada pelos indígenas como Pyelito Kue e Mbarakay é ocupada desde tempos ancestrais pelas etnias guarani e kaiowá. “Desde o ano de 1915, quando foi instituída a primeira Terra Indígena , ou seja, a de Amambai, até os anos de 1980 - com forte ênfase na década de 1970 -, o que se assistiu no Mato Grosso do Sul foi um processo de expropriação de terras de ocupação indígena, em favor de sua titulação privada”.
 Para o Ministério Público Federal “afastar a discussão da ocupação tradicional da área em litígio equivale a perpetuar flagrante injustiça cometida contra os indígenas em três fases distintas e sucessivas no tempo. Uma quando se lhes usurpam as terras; outra quando o Estado não providencia, ou demora fazê-lo, ou faz de forma deficiente a revisão dos limites de sua área e quando o Estado-Juiz lhes impede de invocar e demonstrar seu direito ancestral sobre as terras, valendo-se justamente da inércia do próprio Estado”.

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Guaranis kaiowás pedem à Procuradoria-Geral da República mais segurança e rapidez na demarcação de suas terras

Agência Brasil

Líderes indígenas da etnia Guarani Kaiowá e Ñadeva pediram ontem (29) à Procuradoria-Geral da República (PGR) mais segurança e urgência no processo de demarcação de suas terras em Mato Grosso do Sul. Eles se reuniram com a vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat. Os índios também entregaram um documento solicitando o apoio do Ministério Público Federal (MPF) para garantir melhorias no acesso ao Acampamento Pyelito Kue/Mbarakay, área ocupada pelos indígenas na Fazenda Cambará, em Iguatemi, sul de Mato Grosso do Sul (MS).
No documento, eles explicam a situação pela qual passam e reafirmam que “a comunidade decidiu que não vai sair nem por bem e nem por mal”. “Vamos lutar pela nossa terra até o último guerreiro”, diz. Os índios relataram ainda a ocorrência de mais um suicídio, no último sábado (26) e também denunciaram o estupro de uma índia ocorrido na quarta-feira (24).

Otoniel Guarani Ñadeva, um dos líderes, disse que os índios estão se sentindo ameaçados e que precisam que o Estado trabalhe para dar mais segurança aos índios que estão no Acampamento Pyelito Kue/Mbarakay, onde vivem atualmente 200 índios guarani kaiowás. O acampamento ocupa uma área de 2 hectares.

Para Otoniel, a demora da Fundação Nacional do Índio (Funai) em divulgar o relatório definindo se a área reivindicada pelos índios pertence à etnia, está contribuindo para a situação de violência. “Nós queremos resolver a questão da demarcação das terras. Queremos que a Funai divulgue o resultado final sobre a demarcação de terras. Aí, sim, acabaria a violência que o nosso povo sofre hoje”, disse.

Para Deborah Duprat, que coordena a 6ª Câmara do MPF, que trata de populações indígenas e comunidades tradicionais, a situação dos guaranis kaiowás é “um dos vários casos em que a omissão do Estado na demarcação de terras indígenas gera reações dramáticas como essa”, disse.

Segundo ela, a situação dos guaranis kaiowás é semelhante à vivenciada na demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. “Há uma reação enorme do setor dito produtivo de Mato Grosso do Sul. Há uma resistência que chega a ser quase um racismo institucional. O estado colocando as suas instituições contra os índios”, declarou.

Pra a vice-procuradora, o MPF tem cobrado agilidade da Funai na divulgação do relatório, mas que a fundação vem estourando todos os prazos. “A Funai firmou com o MPF, há cerca de três anos, um termo de ajustamento de conduta se comprometendo com prazos para a identificação de todas as áreas indígenas em Mato Grosso do Sul. Nada disso foi cumprido. É preciso que esses processos sejam concluídos”, disse.

No dia 16 de outubro, o MPF em Dourados apresentou recurso no Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF 3) para reformar a decisão da Justiça Federal em Naviraí, que determinou a saída dos índios da fazenda. O MPF pede a permanência da etnia Guarani Kaiowá na área até que sejam concluídos os estudos antropológicos aptos a determinar a tradicionalidade da ocupação. A expectativa é que o recurso seja julgado até quarta-feira (31).

Mais duas lideranças vão se juntar ao grupo que está em Brasília. Eles representam 94 mil índios de oito etnias. Amanhã (30), eles vão se reunir com a ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário, para tratar das violações de direitos humanos sofridas pelos índios.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Ameaçada de despejo, aldeia guarani-kaiowá promete resistir 'até a morte'

A reportagem é de Pablo Pereira e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 29-10-2012.

Eles são cerca de 170 índios guarani-kaiowá, estão em uma área de 2 hectares de mata ilhada entre um charco e o leito do Rio Hovy, na divisa da Reserva Sassoró com a Fazenda Cambará, propriedade de 700 hectares no município de Iguatemi, no sul de Mato Grosso do Sul. A presença desse grupo de índios na área de mata ocupada por eles há um ano e chamada de Pyelito Kue/Mbarakay - que quer dizer terra dos ancestrais - foi decretada ilegal pela Justiça Federal há um mês e os indígenas condenados a deixar o local. Mas eles se negam a sair e prometem resistir à ordem judicial de despejo.

"Esta terra não é dos brancos. É nossa, de nossos ancestrais. Vamos ficar aqui até morrer", afirma Líder Lopes, um dos chefes do grupo. Na calorenta tarde de sábado, com o rosto pintado, ao lado de outros guerreiros da tribo, Lopes afirmou ao Estado que o grupo sofre perseguição de fazendeiros no local e que sabe que a decisão da Justiça manda que deixem o local. "Mas nós não vamos sair daqui. Se vierem nos tirar vão ter de nos matar".
Na aldeia escondida entre árvores de uma reserva ambiental da fazenda havia somente uma dezena de pessoas, entre adultos e crianças. Lopes alega que a luta dos Kaiowás é para garantir a posse da área que eles afirmam ser o local nos qual seus ancestrais viveram ainda antes de as fazendas se formarem nesta região do sul de MS, quase divisa com o Paraguai. A decisão judicial, beneficiando o fazendeiro Osmar Luís Bonamigo, representado pelo advogado Armando Albuquerque, no entanto, aponta em outra direção ao não reconhecer a posse das terras pelos kaiowás.

Diante da tensão entre as partes, a Fundação Nacional do Índio (Funai), por meio do Ministério Público Federal, recorreu da decisão de primeira instância, em Naviraí. O MPF pede que os indígenas possam permanecer no local até que seja finalizado um estudo antropológico da Funai. O clima na região ficou ainda mais tenso com a chegada de técnicos da fundação, escoltados pela Polícia Federal. Um grupo de fazendeiros, liderados pelo Sindicato Rural de Tacuru, registrou Boletim de Ocorrência na delegacia da cidade reclamando da ação da Funai. Pelo menos cinco fazendas já foram visitadas pelos técnicos: Ipacaraí, Esperança, Pindorama, Estância Modelo e Alto Alegre.

Um integrante da operação da Funai disse que a situação entre índios e proprietários de terras pode se agravar pois os guaranis de toda a região estão decididos reivindicar áreas de ancestrais, como ocorre em Pyelito Kue. Segundo dados do governo federal, MS tem cerca de 40 mil índios da etnia guarani. A área ocupada por eles em reservas e terras indígenas é de 30 mil hectares.

Nos 2 hectares próximos a Cambará, os índios repetem o discurso da resistência na pequena área de mata na qual construíram suas casas cobertas com palha e lona preta. O acampamento indígena se assemelha às clareiras vistas em acampamentos dos sem-terra.

Lopes diz que seu povo está abandonado, sofrendo ameaças de pistoleiros, sem atendimento de saúde e sem cestas básicas da Funai. A notícia de uma iminente tragédia envolvendo os guarani-kaiowá do Pyelito Kue varou as redes sociais na semana passada após a divulgação de uma carta do grupo na internet alertando autoridades sobre a intenção indígena de resistir até a morte. "Sabemos que seremos expulsos daqui da margem do rio pela Justiça, porém não vamos sair da margem do rio. Como um povo nativo e indígena histórico, decidimos meramente em sermos mortos coletivamente aqui", diz o texto da carta. A versão difundida era que o grupo se preparava para cometer suicídio coletivo. A carta, no entanto, não afirma isso.

Mas como o suicídio de índios guarani na região tem chamado a atenção de estudiosos da causa dos índios, o alerta foi interpretado como uma vontade de morrer diante da contrária decisão da Justiça. Na verdade não era isso. "Houve um equívoco na leitura da carta", explica Flávio Vicente Machado, conselheiro do Cimi.

"O que eles estão dizendo é que estão sendo ameaçados e que não deixarão a área em caso de tentativa de despejo", explica o cacique Voninho Benites Pedro, de uma aldeia guarani do município de Douradina.

Os guarani kaiowá que habitam o sul de MS reclamam na verdade do que seria, segundo eles, uma histórica dívida do Estado brasileiro. Com o processo de colonização dos anos 1940 e 50, quando Mato Grosso do Sul foi escolhido para projeto de reforma agrária, implementada a partir dos anos 1950 por Getúlio Vargas, as fazendas cresceram na área e os índios foram alojados em reservas. Depois que os kaiowá voltaram a reivindicar a área, a região de Dourados e municípios vizinhos tornou-se um enorme caldeirão de disputas fundiárias e sob constante tensão étnica. O Estado não conseguiu ontem contato com o Sindicato Rural de Tacuru para que a entidade falasse pelos fazendeiros.

Para chegar do local do acampamento indígena é preciso atravessar a reserva Sassoró, que margeia a BR-161. No fundo da reserva está a divisa da Cambará. Depois de uma caminhada de cerca de 500 metros é necessário atravessar o rio num vão de quase 100 metros com forte correnteza. A travessia tem de ser feita a nado ou com a ajuda de um fio de arame amarrado em estacas nas duas margens. As crianças, que estão no acampamento sem aulas há um ano, ignoram a tensão do mundo adulto e aproveitam as águas para se refrescar. Com o rosto pintado e um cocar de penas coloridas na cabeça, o pequeno Cleber, de 10 anos, reclama da falta de aulas. Ele cursou até o quarto ano do ensino fundamental. "Mas agora tem de lutar pela nossa terra."

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Carta sobre 'morte coletiva' de índios gera comoção e incerteza

 A reportagem é de Júlia Dias Carneiro e publicada pela BBC Brasil, 24-10-2012

A carta dos indígenas Guarani-Kaiowá, anunciando o que foi interpretado por muitos como uma ameaça de suicídio em massa, vem gerando comoção, mas também incerteza sobre o real significado do documento assinado por líderes da tribo.

A carta, que teve ampla repercussão nas redes sociais e em portais de notícia do Brasil e do exterior, foi interpretada como um anúncio de suicídio coletivo por parte dos Pyelito Kue, comunidade de 170 indígenas que expôs seu desespero após receber uma ordem de despejo da terra onde vive acampada. Na carta, os indígenas afirmavam que dali não sairiam vivos.
O documento fala em "morte coletiva" e afirma que, se insistir no despejo, o Estado estará decretando a morte dos indígenas, exprimindo profunda desesperança no governo e na Justiça Federal.

Diante da repercussão do suposto anúncio de suicídio, a Conselho Indigenista Missionário (Cimi) interveio com uma nota de esclarecimento na terça-feira: "Os Kaiowá e Guarani falam em morte coletiva (o que é diferente de suicídio coletivo) no contexto da luta pela terra, ou seja, se a Justiça e os pistoleiros contratados pelos fazendeiros insistirem em tirá-los de suas terras tradicionais, estão dispostos a morrerem todos nela, sem jamais abandoná-las. Vivos não sairão do chão dos antepassados."

Porém, nem o Cimi nem outras lideranças indígenas se arriscam a negar a possibilidade de que ocorram suicídios. Membro do Conselho da Aty Guasu, grande assembleia do povo Kaiowá e Guarani, o vereador Otoniel Ricardo disse à BBC Brasil não poder afirmar "que isso não pode acontecer". "São eles que decidem. Se mexer (na terra onde estão acampados), pode acontecer. Se não mexer, eles vão continuar vivendo lá porque o território é deles", diz Ricardo. "O que eles decidiram é que não vão mais sair dali, nem vivos nem mortos. Querem ser enterrados lá mesmo."

Na sexta-feira passada, a afirmação categórica por parte da Fundação Nacional do Índio (Funai) de que "não há intenção de suicídio", em um comunicado, irritou a Aty Guasu. Em sua página no Facebook, lideranças da assembleia disseram que o órgão havia sido "autoritário" e parecia estar "ignorando o fato conhecido de suicídio epidêmico do povo Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul".

Por sua localização remota, é difícil estabelecer contato telefônico com o Pyelito Kue. Uma equipe do Cimi foi enviada para o povoado para falar da repercussão da carta e saber suas reações.

Despejo

A carta que chamou tanta atenção expõe o desespero do pequeno povoado de Pyelito Kue, após receber uma ordem de despejo da Justiça Federal no fim de setembro. Há um ano, o grupo de 170 indígenas vive acampado em terras de uma fazenda à beira do rio Hovy, no município de Iguatemi, no Mato Grosso do Sul.

"Pedimos ao Governo e à Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas solicitamos para decretar a nossa morte coletiva e para enterrar nós todos aqui", dizem no documento. "Pedimos, de uma vez por todas, para decretar a nossa dizimação/extinção total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar os nossos corpos. Esse é nosso pedido aos juízes federais."

De acordo com a Funai, a área ocupada pela comunidade está em estudo. "Os estudos precisam ainda ser aprovados e enviados ao Ministro da Justiça para que a terra indígena seja declarada de ocupação tradicional do grupo indígena e seja demarcada."

Expulsos de sua terra originária e aguardando há décadas a demarcação das áreas a que têm direito garantido pela Constituição Federal de 1988, os Guarani-Kaiowá são 45 mil brasileiros. Vivem em sua maioria espalhados pelo Mato Grosso do Sul, disputando a terra com o rico agronegócio do estado.

Coordenador regional do Cimi para o Mato Grosso do Sul, Flávio Machado afirma que a carta expõe as dificuldades não apenas do Pyelito Kue, mas de toda a população Guarani-Kaiowá, que são a segunda maior população indígena no Brasil. "A carta retrata uma situação dramática daquilo que praticamente todo o povo Guarani-Kaiowá está vivendo", diz Flávio Vicente Machado, coordenador regional do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) para o Mato Grosso do Sul.

Violência
Nos últimos dez anos, afirma, quase não houve avanços na demarcação de territórios indígenas no país. Enquanto isso, a violência contra indígenas no estado se acirra, com assassinatos de líderes e ataques frequentes de pistoleiros.

Nas últimas semanas, segundo o Cimi, diversas comunidades Guarani-Kaiowá sofreram ataques e agressões no estado, como Potrero Guasu, Arroio Korá e Laranjeira Nhanderu.
Em repúdio aos ataques, movimentos sociais organizaram um ato em defesa aos Guarani-Kaiowá em Brasília na sexta-feira. Cinco mil cruzes foram fincadas na Esplanada dos Ministérios para chamar atenção para o que manifestantes classificaram de "genocídio". Na manhã desta quarta-feira, 21 mil pessoas já haviam assinado a petição intitulada "Vamos impedir o suicídio coletivo dos índios Guarani-Kaiowá" no site Avaaz, que mobiliza abaixo-assinados pela internet.

A interpretação de suicídio em massa vem ancorada em uma dura realidade: a de que os Guarani-Kaiowá detém um dos mais altos índices de suicídio no país e, de acordo com o Cimi, no mundo.

A cada seis dias, um jovem guarani-kaiowá tira a própria vida. Dados do Ministério da Saúde divulgados neste ano mostraram que, de 2000 para cá, 555 indígenas dessa etnia cometeram suicídio, sendo a maior parte dos casos por enforcamento (98%) e cometidos por homens (70%), a maioria deles na faixa dos 15 aos 29 anos.

Falta de perspectiva
Os índice é bastante superior à média nacional. Em 2007, foi de 65 indígenas por cada 100 mil habitantes, contra 4,7 pessoas a cada 100 mil em todo o Brasil.

Estudiosos associam o alto número de suicídios entre as tribos à insuficiência de terras, à falta de perspectiva de ter territórios demarcados e ao confinamento em reservas indígenas. Os índices de homicídio também são alarmantes. Relatórios de violência do Cimi mostram que, nos últimos anos, o Mato Grosso do Sul vem liderando "o triste ranking de estado mais assassino de indígenas":

"Os Guarani-Kaiowá são um povo que está sendo culturalmente e politicamente assassinado. Ora pela falta de vontade política do governo, ora por pistoleiros, a mando de fazendeiros", considera Flávio Machado.

Na carta dos Pyelito Kue, eles afirmam que quatro pessoas da comunidade já foram mortas, duas por suicídio e duas "em decorrência de espancamento e tortura de pistoleiros das fazendas". "Já perdemos a esperança de sobreviver dignamente e sem violência em nosso território antigo, não acreditamos mais na Justiça Brasileira", afirma o documento.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Conjuntura da Semana. O ‘mensalão” e a esquerda. Uma leitura crítica a partir da esquerda


A análise da Conjuntura da Semana é uma (re)leitura das Notícias do Dia publicadas diariamente no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, parceiro estratégico do IHU, com sede em Curitiba-PR, e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, parceiro do IHU na elaboração das Notícias do Dia.


 
Sumário:
A esquerda e o ‘mensalão’

Mensalão’: O que pensa grande parte da esquerda
Condescendência com o ‘mensalão’: A melhor postura?
Desvio ideológico. Quando os fins justificam os meios
Ser de esquerda também é ser republicano
Mensalão e o ‘caráter complexo da ética’. Uma chave de leitura

O ‘mensalão’ em frases

Eis a análise.

‘Mensalão’: O que pensa grande parte da esquerda

O julgamento da Ação Penal 470, popularmente conhecida como 'mensalão', vai chegando ao final no Supremo Tribunal Federal – STF. Na raiz da ação está a acusação de que dinheiro público foi utilizado para a compra de apoio político no Congresso durante o primeiro mandato do governo Lula e irrigou campanhas políticas de vários partidos entre 2003 e 2005.

Embora a ação tenha julgado vários personagens da esfera privada – banqueiros, empresários e publicitários –, o foco maior ficou nos personagens da esfera pública, particularmente das lideranças de proa do PT e entre elas, a principal, José Dirceu, maior dirigente do PT depois de Lula e considerado o grande mentor e estrategista de tê-lo levado à presidência.

A simultaneidade do julgamento com o transcurso das eleições de 2012 elevou ainda mais a temperatura política. A repercussão daquele que já é considerado o maior e mais extenso julgamento da história do Supremo Tribunal Federal (STF), foi e continua sendo grande.

A esquerda brasileira, majoritariamente, trata a ação como “julgamento político” – muitos como um “julgamento de exceção”. O foco em figuras públicas do PT, a decisão do STF em agendar o julgamento durante as eleições, a postergação da ação do ‘mensalão do PSDB’ para 2013 – esquema de desvio de recursos públicos para a campanha de Eduardo Azeredo em 1998, para muitos o “pai” do mensalão atual – e o reiterado discurso de que o mensalão trata-se de caixa 2, expediente utilizado por todos os partidos, segundo análise recorrente, convergiram para a tese de conspiração, perseguição e tentativa dos setores conservadores para derrubar o PT e Lula no “tapetão”.
Essa posição foi amplamente difundida nas redes sociais e reproduzida por muitas organizações e intelectuais. A CUT afirmou que o ‘mensalão’ era golpe para depor Lula. O cineasta Luiz Carlos Barreto comparou o ‘mensalão’ aos atos institucionais do período militar, particularmente direcionado para atingir José Dirceu: “É a crônica de uma condenação  (de José Dirceu) anunciada há sete anos. Trata-se de um Ato Institucional que não é percebido. Estamos ao sabor de qualquer acusação baseada em testemunho”. A professora da Usp Maria Vitória Benevides disse que o julgamento se tornou político: “Considero que é um julgamento político, não um julgamento jurídico”.
O ex-secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães foi ainda mais longe ao associar o julgamento do ‘mensalão’ no STF a tentativa de desqualificação da figura de Lula. Segundo ele, “as classes tradicionais - ou, se preferirem, retrógradas, reacionárias - nunca vão aceitar que um nordestino [Lula] tenha se transformado em um líder respeitado e reconhecido internacionalmente. É disso que se trata. É isso o que estamos vendo". Esse raciocínio é reiterado por Leonardo Boff que nesses dias afirmou: “Ouve-se no plenário ecos vindos da Casa Grande que gostaria de manter a Senzala sempre submissa e silenciosa”, escreve o teólogo. Segundo ele, "a ideologia que perpassa os principais pronunciamentos dos ministros do STF parece eco da voz dos outros, da grande imprensa empresarial que nunca aceitou que Lula chegasse ao Planalto”.

É Boff quem de certa forma sintetiza o que muitos pensam. Disse ele: “Há um provérbio popular alemão que reza: ‘você bate no saco mas pensa no animal que carrega o saco’. Ele se aplica ao PT com referência ao processo do ‘mensalão’. Você bate nos acusados mas tem a intenção de bater no PT. A relevância espalhafatosa que o grosso da mídia está dando à questão, mostra que o grande interesse não se concentra na condenação dos acusados, mas através de sua condenação, atingir de morte o PT”. Segundo Boff, o ‘mensalão’ e o uso dele é uma estratégia da direita para desqualificar e destruir Lula e o PT.

Como se pode perceber o debate em torno do ‘mensalão’ assumiu ares extremados de ideologização. Um tema incandescente e que dificulta análise mais serena, entretanto, nem a tática do avestruz, não enfrentá-lo e, tampouco, enxergá-lo como simples conspiração auxilia na contribuição da análise dos equívocos cometidos pela esquerda no poder.

Condescendência com o ‘mensalão’: A melhor postura?


É inegável o uso político do julgamento do mensalão – recurso constitutivo ao pesado jogo político. No seu conteúdo geral, entretanto, a posição de intelectuais citados anteriormente, que ilustram o que pensa a maioria dos militantes de partidos de esquerda, particularmente do movimento sindical e das pastorais, é simplista.

Simplista porque não se dá conta de que a ausência de uma radical crítica ao modus operandi secular de apropriação do público para consecução de interesses privados – no caso dinheiro público usado por agrupamentos políticos em troca de sustentação e apoio aos seus interesses – corrobora o sentimento geral de que ética não combina com política e de que é mesmo normal desvios aqui e acolá. A concepção desses intelectuais autoriza aquela velha história de que em função de objetivos considerados maiores, os fins justificam os meios.

Acaba dando sustentação à tese de muitos que admitem e até mesmo consideram normal que no mundo da política é aceitável uma ‘zona cinzenta de amoralidade’. Entre os que sustentam essa tese está o filósofo José Arthur Giannotti [1]. Segundo ele, “na medida em que a política, entre muitas coisas, consiste numa luta entre amigos e inimigos, ela pressupõe a manipulação do outro, desde logo suporta, portanto, certa dose de amoralidade”. Giannotti diz que a política, assim como “qualquer jogo competitivo sempre requer um espaço de tolerância para certas faltas”. Segundo ele é “preciso diferenciar o juízo moral na esfera pública do juízo moral na intimidade, pois são diferentes suas zonas de indefinição. No primeiro caso, o juízo moral se torna inevitavelmente arma política para acuar o adversário e enaltecer o aliado, de tal modo que a investigação da verdade fica determinada por essa luta visando a vitória de um sobre o outro”.

Por outro lado, alerta ele que “cada vez mais tendemos a aceitar a regra de que o político, devendo se aventurar na zona da amoralidade, pague quando ultrapasse os limites sociais da tolerância”.

É corrente no mundo da política a ideia de que a ética dos fins justifica os meios. Esse raciocínio encontra guarida na recente afirmação de Emir Sader para quem "o fundamental é derrotar a 'tucanalha' em São Paulo. Eu posso gostar ou não do Maluf, mas vou fazer campanha para o Haddad do mesmo jeito", diz ele justificando a aliança do PT com o PP de Maluf. De acordo com essa argumentação vale tudo para derrotar o outro, inclusive aceitar em seu palanque quem sempre defendeu ideias radicalmente opostas e, mais grave, praticou atos ilícitos no poder.

A gama de intelectuais, militantes sociais e organizações que se recusam a aceitar que o mensalão existiu, sugerem condescendência com o caso, assim como deseja o PT. “O PT quer que a sua militância e a sociedade sejam condescendentes com o caso, tentando produzir uma alucinação negativa de que ele não existiu. E isto é grave. Imaginar que medidas que sempre serviram para julgar os outros não devem julgar o próprio PT”, afirma Thales Ab'Sáber.

Segundo ele, “os banqueiros de Wall Street também sustentam que não devem ser julgados ou responsabilizados por suas ações, que quebraram o mundo, que elas aconteceram por uma natureza automática das coisas”. O filósofo afirma que “a tentativa de naturalizar e tornar invisíveis os crimes é a mesma na corrupção de Estado da política brasileira e na corrupção financeira do mercado global. Trata-se de apostar em uma política do absurdo para salvar a própria pele, o que pode acabar produzindo efeitos políticos regressivos muito graves sobre o todo”.
Tampouco se pode ver o ‘mensalão’ como um erro ou falta pontual como pensa Boff ao considerar que o que aconteceu foi uma “queda” numa caminhada maior. Diz ele: “Reconheço com dor que quadros importantes da direção do partido se deixaram morder pela mosca azul do poder e cometeram irregularidades inaceitáveis. Muitos sentimo-nos decepcionados, pois depositávamos neles a esperança de que seria possível resistir às seduções inerentes ao poder (...) Lamentavelmente houve a queda. Mas ela nunca é fatal. Quem cai, sempre pode se levantar”.

É ingenuidade pensar que o que aconteceu foi acidental, ocasional. Não se dá conta de que mesmo os partidos de esquerda, como o PT, aceitaram, assimilaram e incorporaram as regras do jogo do poder ancoradas no autoritarismo, patrimonialismo e fisiologismo. O que sucedeu com o ‘mensalão’ e suas derivações é regra corrente na estruturação, financiamento e mobilização pela disputa do poder. Tampouco vale a justificativa de que os outros sempre fizeram o mesmo e apenas agora, por ser o PT, é que o julgamento passa a ser rigoroso. Esse argumento é lamentável, empobrecedor e desastroso, uma vez que justifica a corrupção.

Desvio ideológico. Quando os fins justificam os meios

Por mais desagradável e doloroso que possa ser – “a dor me impede de falar”, diz o ministro Gilberto Carvalho –, faz-se necessário dialogar com a tese de que o PT se transformou num partido tradicional no modo de fazer política, mesmo que ideologicamente seja mais progressista do que os outros, ao menos dos considerados grandes.

Segundo o professor de filosofia Thales Ab'Sáber “o episódio demonstrou claramente que o PT passou a agir como um partido tradicional brasileiro”. Segundo ele, “foi o cartão de visita e o atestado das práticas políticas de direita que o partido passou a utilizar para chegar e se manter no poder – entendida a direita aqui nos termos da política brasileira. Conchavos de bastidores com partidos oportunistas e mesmo politicamente inimigos, manipulação de processos eleitorais através de acordos que serão pagos posteriormente a qualquer custo, concepção do Estado como uma fonte de financiamento dos interesses particulares de grupos, tudo isso à margem da lei”.

O filósofo destaca que “não é de nenhum modo um mundo de práticas digno dos ideais e proposições políticas criativas e modernizadoras que embalaram o PT no tempo de sua criação e crescimento. Não por acaso, é isto que quer dizer o mensalão: guinada às praticas políticas tradicionais, de modo que o PT se tornou confiável e parte do clube brasileiro do uso particular do Estado, das elites que sempre agiram assim. O mensalão é a instalação do PT na política de direita brasileira”, diz ele.

As afirmações de Thales Ab'Sáber são corroboradas pelo cientista político Fábio Wanderley Reis ao afirmar que “o mensalão só foi possível em decorrência de uma espécie de desvio ideológico, a arrogância produzida por certa autoimagem ideologicamente condicionada, que levou à desqualificação dos outros participantes do jogo parlamentar, considerados burgueses, e à ideia de que o melhor a se fazer era comprar sua lealdade. É um cinismo autorizado, um maquiavelismo de araque, em função de objetivos considerados maiores, com a ideia de que os fins justificam os meios”.

Por outro lado, o “desvio ideológico” sempre foi justificado em nome da governabilidade, da indispensável necessidade de uma maioria de sustentação ao governo. Na origem da montagem da governabilidade encontra-se a raiz do mensalão destaca Werneck Vianna: “Por causa da natureza fragmentária do quadro partidário e da dispersão dos votos dela resultante, o governante vê-se tangido, em nome da governabilidade, a reter insulado o cerne do programa com que foi eleito – que nunca sai ileso dessa operação – e a facultar o acesso à máquina estatal e às suas agências a aliados de ocasião com o objetivo de obter maioria parlamentar. O cimento notório dessas coligações deriva do loteamento entre elas de posições no interior da administração pública, tornando-a vulnerável às pressões privatistas exercidas em favor de financiadores de campanhas e de apoiadores políticos”.

Em outro artigo, o sociólogo reafirma a essência do surgimento do mensalão: “A matéria bruta da Ação Penal 470, o mensalão, foi gestada no interior e a partir dessa decisão política de perseguir objetivos de mudança social desancorada de uma ativa esfera pública democrática, que importava a mobilização dos movimentos sociais, que logo, aliás, seriam postos sob a influência de agências estatais, quando não estatalizados tout court, convertendo-se a política num quase monopólio da chefia do Executivo”.

Segundo ele, “aos partidos dessa bizarra coalizão presidencial, tangidos a ela com a expectativa de extrair recursos públicos para sua reprodução eleitoral, caberia conceder apoio parlamentar às iniciativas governamentais, enquanto ao Executivo, pelas vias decisionistas do direito administrativo, caberia realizar a agenda de mudanças avaliada como compatível com as circunstâncias”.

Segundo Werneck, “a Ação Penal 470 [mensalão] expôs a nu as fragilidades do sistema político vigente, em particular a modalidade sui generis com que aqui se pratica o presidencialismo de coalizão, indiferente a programas políticos e cruamente orientado para ações estratégicas com vista à conquista do voto e à reprodução eleitoral das legendas coligadas. Nesse processo, os partidos migram da órbita da sociedade civil para a do Estado, quando passam a ser criaturas dele”.

Ser de esquerda também é ser republicano

O ‘mensalão’, embora publicamente não aceito e condenado, é compreendido por muitos como um expediente que foi necessário para garantir governabilidade e realizar os avanços que o Brasil precisava, como dito anteriormente. Nessa concepção trata-se de um mal menor em função de um bem maior – a ideia de que os fins justificam os meios, como já destacado.

É recorrente no Brasil, a tese de que para sobreviver na política, por um lado, é preciso estar ao lado de quem está no poder e, por outro, quem está no poder precisa se aliar aos que não estão para criar as condições de governar. Segundo o professor da Unicamp Roberto Romano, “é proibido no Brasil ser oposição”. Diz ele: “Se discordar, não tem acesso aos recursos. Sem recursos, não leva obras para a sua região. Sem obras, não é reeleito, fica fora do jogo. Esse ‘é dando que se recebe’, essa ausência de partidos reais, tem como origem essa estrutura do Estado brasileiro que é supercentralizada”.

Na opinião de Roberto Romano, os partidos – PT e PSDB – que ocuparam a presidência da República nos últimos anos se renderam ao pragmatismo. Segundo ele, “os dois partidos, na Presidência da República, se renderam à lógica do conservadorismo que rege os tratos entre o poder central e as regiões brasileiras, dominadas por oligarquias truculentas e corrompidas. Ambos precisaram rasgar os alvos éticos em proveito da ‘arte do possível’ (o termo é de Bismark). Nas alianças pela ‘governabilidade’, as duas agremiações sacrificaram no altar do realismo político seus programas anteriores, de esquerda ou centro-esquerda”.

Chega a ser anacrônico, mas há quem inclusive distinga o ‘mensalão’ do PT ao do PSDB. Para muitos militantes de esquerda, o ‘mensalão’ do PT foi um mal necessário para avançar uma agenda de reformas sociais no Brasil, diferentemente do ‘mensalão’ do PSDB ou mesmo da compra de votos no congresso operada pelo PSDB para garantir o mecanismo da reeleição de FHC que foi feita para preservar os interesses da continuidade da agenda do mercado. 

O uso de recursos públicos orientado para objetivos corporativos, de grupos, como seu viu no ‘mensalão’ manifesta o que o professor da Unicamp, Roberto Romano intitula de “ética da tirania”, ou seja, a ideia de “uma ética que opera em favor dos governantes”. Segundo ele, se trata “da ética que nega direitos às ‘pessoas comuns’ é a ética do ‘sabe com quem está falando’? A ética do absolutismo tirânico. Não podemos esquecer que, na tradição ética e jurídica antiga e moderna, tirano ‘é quem usa os bens dos governados como se fossem seus’. A lição está em Aristóteles, São Tomás , Jean Bodin  e outros mais. No Brasil temos uma ética da tirania porque o que fazem nossos operadores do Estado é julgar de sua propriedade o que é público”.

A contemporização com os desvios do PT, ou a indulgência para com parcela dos seus dirigentes, assume caráter antirrepublicano: "O nome próprio do moderno é o da autonomia que se exprime no exercício da livre manifestação de vontade da cidadania, a partir de uma vida associativa e de partidos políticos que extraiam sua seiva de um mundo da vida descontaminado do poder administrativo e do poder sistêmico da economia, para usar a linguagem, incontornável na cena contemporânea, de Jürgen Habermas”, escreve Luiz Werneck Vianna, professor-pesquisador da PUC-Rio.

O Estado, quando subordinado a agrupamentos – quaisquer agrupamentos, da bancada ruralista à bancada evangélica ou ainda de consórcios partidários –, perde seu caráter republicano naquilo que tem de mais importante, de tratar todos como iguais, identificando, porém, os que dele mais precisam, os setores mais vulneráveis. Nesta perspectiva a ação do julgamento do mensalão deve ser interpretada como um avanço republicano na correção das regras, mesmo que conservadoras, do funcionamento político-partidário.

“O Rubicão foi atravessado à vista de todos e, na nova margem em que nos encontramos, não há mais caminho de volta”, diz o sociólogo Luiz Werneck Vianna, comentando o julgamento do STF. Segundo ele, “provavelmente, ecoaram nesse tribunal os argumentos de maior alcance pedagógico já registrado entre nós em favor da democracia representativa”.

Na análise de Werneck, “em alguns votos contundentes, em que personagens clássicos da Roma republicana foram evocados, ministros da Suprema Corte demonstravam estar conscientes de que anunciavam um novo começo para a democracia brasileira sob a égide de uma ética republicana”. Segundo ele, “democracia de massas, que se amplifica com as poderosas mudanças sociais de que o País é hoje um laboratório aberto, não pode desconhecer a República e as suas instituições, sob pena de se ver dominada pelos interesses políticos e sistêmicos estabelecidos”.

A interpretação de Werneck pode ser demasiada otimista, o reverso, porém, a pura e simples desqualificação do julgamento é pior ainda. Ser de esquerda também é ser republicano, ou seja, estabelecer, defender e pactuar regras de funcionamento do aparelho do Estado que não se subordinem às lógicas corporativas e privativas.

Mensalão e o ‘caráter complexo da ética’. Uma chave de leitura

Uma contribuição para problematizar o tema do ‘mensalão’ é olhá-lo a partir do método da complexidade sugerido por Edgar Morin que propugna que nada está isolado, todas as ações reverberam e apresentam consequências. Ainda mais sofisticado, Morin fala no princípio do ‘caráter complexo da ética’ que se manifesta naquilo que chama de ‘ecologia da ação’. Diz Morin: “Desde o momento em que um indivíduo empreende uma ação, qualquer que seja ela, esta começa a escapar de suas intenções. Ela entra num universo de interações e finalmente o meio ambiente apossa-se dela num sentido que pode se tornar contrário ao da intenção inicial. Com frequência a ação retorna em bumerangue sobre nossa cabeça”, escreve ele no livro Introdução ao pensamento complexo (Porto Alegre: Sulina, 2005, p. 80-1).

Morin alerta que “uma ação não depende somente da vontade daquele que a pratica, depende também dos contextos em que ela se insere, das condições sociais, biológicas, culturais, políticas que podem ajudar o sentido daquilo que é a nossa intenção. Dessa forma, as ações podem ser praticadas para se realizar um fim específico, mas podem provocar efeitos contrários aos fins que pretendíamos”.

O que o pensador francês sugere é que “boas intenções” ou mesmo ações feitas em nome do suposto “bem comum” podem resultar no oposto ao desejado. Segundo ele, “a ecologia da ação implica que não é suficiente apenas ter boa vontade. Temos de tentar examinar as condições em que se dá a ação, e então, de acordo com a necessidade, poderemos segui-la, ou transformá-la, ou ainda abandoná-la. Portanto, há duas ideias importantes na ética: uma, quando nos decidimos pro uma ação pelo bem, fazemos um balanço dos efeitos de nossa ação, e assim, ao tornarmo-nos conscientes de seus efeitos, podemos rever nossas ações ou decisões. Em segundo lugar, a ideia de que é preciso traçar uma estratégia de ação, ou seja, ficar atento aos elementos novos e às informações que se somam à situação”.

Diz Morin: “Penso no período em que vivi durante a guerra, ou no pós-guerra, na minha relação com o comunismo, quando conheci pessoas ou militantes que achavam que trabalhavam para o bem da humanidade sem perceber que trabalhavam, ao contrário, pela sua escravidão. Isso, contudo, pode estender-se a todas as atividades. Quantas pessoas não acreditam trabalhar para o bem, sem perceber que na realidade estão sendo manipuladas”?

Aqui entra o PT e a ação de muitos de seus dirigentes, o comovente depoimento de José Genoíno: "A sensação de estar numa noite escura e de ser condenado injustamente”. Genoíno e tantos outros “aceitavam” o jogo do ‘mensalão’ e suas diferentes modalidades – o mesmo vale para militantes de base – na convicção de que se tratava de um mal menor ou mesmo necessário para o avanço das reformas no Brasil.
Emerge aqui uma questão: A instauração de políticas sociais, o bolsa-família, a política de cotas, a mobilidade social dos mais pobres para cima, fornecem um “salvo conduto” aos erros de seus dirigentes? Tudo pode ser justificado ou atenuado porque o PT, no governo, passou a adotar políticas sociais antes inexistentes?

Na cabeça de muitos, o ‘mensalão’ foi um desvio necessário – garantir governabilidade – para o Brasil avançar. Optou por entrar e mesmo, intensificar a lógica que resultou e orientou o ‘mensalão’: os interesses, o jogo, que acontece nos bastidores. Disputas e manobras, que muitas vezes não chegam ao conhecimento da população, mas que se configuram numa intensa guerra, travada nas trincheiras do mundo da política.

Muitos sequer viram gravidade no fato, uma vez que se trata de prática corriqueira na política nacional adotada por todos os partidos – ou quase todos – que se passou a chamar de “caixa 2”. Talvez, a complacência com o ‘mensalão’ deva-se também em parte ao fato de que o mecanismo do “caixa 2” seja utilizado em outras esferas da sociedade e não apenas na esfera pública.

Para muitos, o julgamento do ‘mensalão’ retoma uma agenda udenista no país, ao gosto da direita, que procura obsessivamente desmontar os avanços sociais obtidos na Era Lula. Nessa ótica, o ‘mensalão’ é algo menor diante de tantas conquistas e avanços sociais e econômicos. É inegável que a direita procura se apropriar desse discurso e usa o ‘mensalão’ como um aríete para abalar a fortaleza em que se transformou o mito Lula, porém, cabe à esquerda social abordar esse tema e criticá-lo pela esquerda. Validar o discurso de que não se pode criticar os dirigentes do PT pelos equívocos que cometeram porque isso significa jogar “água no moinho da direita” é recusar a essência do que significa ser esquerda.

Com o ‘mensalão’, os envolvidos, invocaram uma ideia de justiça, ou ausência desta, a partir de múltiplas variáveis, mas, desconectadas da efetiva, contingência. À luz das reflexões éticas, justiça tem a ver com as escolhas, com condutas, e as consequências destas na vida dos demais. Infelizmente estas, foram de grande tristeza, e decepções. Segundo Gabriel Garcia Marquez,” a sabedoria chega, quando já não vale para nada”.
A polêmica do ‘mensalão’ suscita e recoloca em pauta o debate do que é ser esquerda hoje.