sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Advocacia e ilegalidade anti-índio

Jornal do Brasil

Dalmo Dallari *


Uma portaria publicada recentemente, com a assinatura do advogado geral da União, contém evidentes inconstitucionalidades e ilegalidades, pretendendo revogar dispositivos constitucionais relativos aos direitos dos índios, além de afrontar disposições legais. Trata-se da Portaria nº 303, de 16 de julho de 2012, que em sua ementa diz que “dispõe sobre as salvaguardas institucionais às terras indígenas”. São tão evidentes os absurdos jurídicos nela contidos que se fica em dúvida se o advogado geral da União redigiu ou examinou cuidadosamente os termos da portaria antes de assiná-la ou se, assoberbado pela sobrecarga de trabalho, foi induzido em erro por algum assessor e assinou apressadamente o documento, achando que, como sugeria a ementa, ele realmente afirmaria as salvaguardas dos direitos indígenas. Na realidade, expedindo a referida portaria, o advogado geral da União agiu como legislador, atribuindo competências para a prática de atos administrativos no âmbito federal e restringindo direitos que a Constituição assegura aos índios.

Antes de tudo, para que fique bem evidente a impropriedade da portaria aqui examinada, é oportuno lembrar o que é uma portaria, na conceituação jurídica. Sem fazer volteios teóricos e em linguagem simples e objetiva, Hely Lopes Meirelles, uma das mais notáveis figuras do direito brasileiro, dá a conceituação: “Portarias são atos administrativos internos, pelos quais o chefe do Executivo (ou do Legislativo e do Judiciário, em funções administrativas), ou os chefes de órgãos, repartições ou serviços, expedem determinações gerais ou especiais a seus subordinados, ou nomeiam servidores para funções e cargos secundários” (Direito Administrativo Brasileiro, São Paulo, Ed. Rev.Trib., 1966, pág. 192). Como fica evidente, a portaria não tem a força de lei nem da jurisprudência, não obrigando os que não forem subordinados da autoridade que faz sua edição. No entanto, a Portaria nº 303, de 16 de julho de 2012, do advogado geral da União, diz que o advogado geral da União, no uso de suas atribuições, resolve: “artigo 1º. Fixar a interpretação das salvaguardas das terras indígenas, a ser uniformemente seguida pelos órgãos jurídicos da Administração Pública Federal direta e indireta...”.

É mais do que evidente a exorbitância, pois o advogado geral da União não tem competência para interpretar normas jurídicas e menos ainda para impor sua interpretação a quem não é seu subordinado. Essa é uma das impropriedades jurídicas da referida portaria.Para dar uma aparência de suporte jurídico aos dispositivos da portaria, nela foram inseridas, literalmente, restrições aos direitos constitucionais dos índios constantes de argumentação expendida pelo ministro Menezes Direito no julgamento, em 2009, do caso da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, no estado de Roraima, tradicionalmente ocupada pelos índios macuxi. A questão jurídica pendente do julgamento do Supremo Tribunal Federal naquele caso era o sentido da disposição constante do artigo 231 da Constituição, segundo o qual são reconhecidos aos índios “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.

Esclarecendo o alcance dessa disposição, diz o parágrafo 1º do mesmo artigo: “São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. Apesar da clareza desse dispositivo, ricos invasores de terras indígenas pretendiam que só fosse assegurado aos índios o direito sobre os locais de residência, as malocas, propondo que a demarcação da área macuxi só se limitasse a esses espaços, formando uma espécie de ilhas macuxi. O esclarecimento desse ponto era o objeto da ação, e o Supremo Tribunal Federal deu ganho de causa aos índios, considerando legalmente válida a demarcação de toda a área tradicionalmente ocupada pela comunidade.

Numa tentativa de reduzir o alcance da ocupação, o ministro Menezes Direito declarou que reconhecia o direito dos índios, mas que ele deveria ser interpretado com restrições, externando tais limitações em dezenove itens, que denominou condicionantes. Para não retardar mais a decisão e, sobretudo, considerando que os dispositivos constitucionais são sobejamente claros e que eles estavam acima da argumentação dos julgadores, os demais julgadores não discutiram as condicionantes, pois tratavam de pontos que não eram objeto da ação. Entretanto, quem redigiu o acórdão do Supremo Tribunal colocou as condicionantes como parte da argumentação sobre o ponto questionado, que era a demarcação integral ou em ilhas. E agora a portaria assinada pelo advogado geral da União tenta ressuscitar as condicionantes, além de acrescentar outras pretensas restrições aos direitos indígenas. Assim, por exemplo, a portaria diz que “é vedada a ampliação da terra indígena já demarcada”.

Ora, bem recentemente o Supremo Tribunal Federal, julgando o questionamento da doação de terras dos índios pataxós a particulares, feita pelo governo do estado da Bahia, concluiu pela nulidade de tais doações, o que terá como consequência a ampliação da área até agora demarcada como sendo o limite do território pataxó. E nenhuma portaria pode proibir isso.Outro absurdo da portaria aqui questionada é a atribuição de competência ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, autarquia vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, para regular o usufruto dos índios, que é direito expressamente assegurado pela Constituição, nas unidades de conservação que coincidam com áreas indígenas. Antes de tudo, a lei que criou o Instituto Chico Mendes foi julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, em decisão de 7 de março deste ano. Curiosamente, o advogado geral da União tentou defender a legalidade daquela lei, mas foi derrotado, ficando, entretanto, registrado seu especial apreço por aquele Instituto, que tem prestado serviços relevantes mas não tem competência legal para dizer o que é o usufruto que a Constituição assegura aos índios.

E, pelo que já foi exposto, é evidente absurdo pretender atribuir novas competências a uma autarquia federal por meio de uma portaria da Advocacia Geral da União. Coroando as impropriedades jurídicas, a portaria em questão, encampando uma condicionante, diz que é assegurada a participação dos entes federados no procedimento administrativo de demarcação das áreas indígenas, afrontando a disposição expressa e clara do artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, segundo o qual “A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição”. Como se tem denunciado, a União está atrasada no cumprimento dessa obrigação constitucional, mas um ponto fora de dúvida é que a competência para a demarcação é da União, somente dela, sendo inconstitucional a atribuição de competência aos estados federados como pretendeu a portaria.

Por tudo o que foi aqui exposto, e por outras falhas jurídicas que ainda poderiam ser acrescentadas, a Portaria nº 303/2012 da Advocacia Geral da União não tem validade jurídica, e qualquer tentativa de lhe dar aplicação poderá e deverá ser bloqueada por via da ação judicial própria, a fim de que prevaleça a supremacia jurídica da Constituição e, por sua efetivação, sejam respeitados os direitos que ela assegurou aos índios brasileiros.

* Dalmo de Abreu Dallari é jurista. - dallari@noos.fr

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