quarta-feira, 25 de abril de 2007

O BEM E O MAL ALEGORIZADOS NA IDADE MÉDIA

Um dos capítulos do meu TCC
Por Carla Ninos

A Idade Média foi uma época de paixões violentas. O sentimento religioso, levado ao auge, deságua muitas vezes no misticismo, na superstição, no fetichismo, na magia, na bruxaria. Falta ao homem medieval o sentido do equilíbrio, da medida, do comedimento. Não existe meio-termo: o homem ou é um anjo ou é um demônio. Não é sem motivo que o Maniqueísmo, doutrina do filósofo persa Mani ou Manes do século III d.C., embora condenado pela Igreja, teve tanto sucesso nessa época. Os dois princípios primordiais do Universo, Deus, personificação do Bem absoluto, e o Diabo, personificação do Mal absoluto, antagônicos e irredutíveis, tornam-se os arquétipos do comportamento humano. Como os mitos gregos de Apolo e de Dionísio ou os personagens bíblicos de Abel e Caim, o bem e o mal são abstrações dos dois elementos estruturais da personalidade humana que Freud descreveu como o super-ego (formado pela consciência moral, que é o conjunto de injunções éticas e religiosas que a sociedade aos poucos vai introjetando na nossa psique) e o id (as forças instintivas do inconsciente, onde se encontram localizados nossos desejos inconfessáveis). Na época medieval, esses dois elementos, identificados no corpo (princípio do mal) e na alma (princípio do bem), não encontram nenhum ponto de equilíbrio, permanecendo em luta constante.
Para exemplificar, talvez o texto que melhor expresse a ideologia medieval seja o episódio da “Tentação de Galaaz” da novela de cavalaria “A Demanda do Santo Graal”. O herói, durante uma de suas andanças, chega a um castelo onde recebe hospedagem. A filha do dono do castelo, uma formosa donzela de 15 anos, apaixona-se perdidamente pelo cavaleiro e à primeira vista, sem que Galaaz sequer suspeite de ser o objeto do desejo da mocinha. De noite, de camisola, ela penetra no quarto do jovem e se deita na cama junto dele. Mas Galaaz, que tinha feito voto de castidade, não cede ao apelo erótico da moça e esta, sentindo-se rejeitada, se suicida transpassando seu corpo com a espada de Galaaz.
Do ponto de vista ideológico a narrativa apresenta o choque entre os dois códigos fundamentais do ser humano: natureza versus cultura. Galaaz é a alegorização do código cultural da Idade Média: a consagração de sua alma e de seu corpo a Deus; a preferência da castidade à satisfação amorosa; a observância da norma da distinção entre as classes sociais que não permite a união de uma jovem nobre e rica com um cavaleiro andante sem família e sem bens econômicos; a proibição do relacionamento sexual fora do casamento; o respeito à vontade do pai da moça, o todo-poderoso e autoritário dono do castelo; a gratidão pela hospedagem recebida; enfim, a honra, a honestidade, a virgindade, o martírio do corpo, que são os principais valores do homem medieval, em vista de atingir o fim essencial da salvação da alma.
A personagem da donzela, pelo contrário, representa o código oposto: a força do instinto da natureza, que se revolta contra todos os valores ideológicos, em nome da satisfação de seus desejos carnais. O impulso erótico dessa moça de apenas quinze anos e educada no ambiente fechado do castelo é tão violento que a leva a quebrar todas as barreiras sociais, morais e religiosas. E, quando percebe que seus esforços para obrigar Galaaz a fazer dela uma mulher sexualmente satisfeita são inúteis, ela encontra na morte violenta a solução de sua angústia social e um castigo por ter se entregado aos instintos do corpo.
O que impressiona na vida medieval é a irredutibilidade desses dois princípios, que leva a prática da doutrina maniqueísta do dualismo cósmico. A personagem de ficção (que geralmente é um ser homólogo do ser real) da Idade Média ou é um ser angélico ou é um ser diabólico e, portanto, raras vezes se apresenta como um ser humano, no sentido mais profundo do termo. Porque ser humano é sentir-se feito de carne e de espírito, ter vícios e virtudes, acusar momentos de fraqueza e momentos de heroísmo, enfim, nunca ser totalmente anjo ou totalmente demônio, visto que na psicologia humana o id e o superego sofrem vitórias e derrotas alternadas devido ao dinamismo psíquico, pois ambos impulsionam o ego (“eu”, é o nível consciente, resultante da força disciplinadora e educadora do super-ego sobre o id) a estar continuamente em luta, pressionado pelas forças opostas do instinto e das convenções sociais.
Dentro da filosofia clássica, Sócrates e, principalmente, Platão, desenvolveram a teoria sobre a existência de um mundo ideal, onde residiriam as essências do Divino, do Verdadeiro, do Belo, do Bem, separadas das aparências do mundo sensível, em que as sensações humanas como os instintos sexuais e os medos que interferem nas escolhas cotidianas, são vistos como Diabólico, Falso, Feio, Mal. Esse dualismo foi plasticamente alegorizado pelos gregos através dos mitos de Apolo e Dionísio, em que o primeiro é o deus da luz, da ordem, do social; o segundo é o deus das trevas, da embriaguez, do instinto individual. O princípio apolíneo e o princípio dionisíaco se alternariam, portanto, ao longo da cultura ocidental, cada época marcando o triunfo de um princípio sobre o outro.
Mas, afinal, o que seria esta teoria sobre o mundo perfeito das idéias? Bem, primeiramente, o dicionário define idéia como sendo a representação mental de coisa concreta ou abstrata; imaginação; opinião, conceito; mente, pensamento; lembrança. A formulação da noção de idéia, como essência existente em si, independente das coisas e do intelecto humano, representa a adoção, por Platão, de um método de pesquisa de índole matemática. O pensamento de Platão irá se construindo como um jogo de hipóteses interligadas.
Com Platão as idéias são como causas intemporais para os objetos sensíveis. O que é bom, mais ou menos bom, é bom porque existe um bom pleno, o Bom que, intemporalmente, explica todos os casos e graus particulares de bondade, como a condição sustenta a inteligibilidade do condicionado.
Perfeitas e imutáveis, as idéias constituiriam os modelos ou paradigmas dos quais as coisas materiais seriam apenas cópias imperfeitas e transitórias. Seriam, pois, tipos ideais a transcender o plano mutável dos objetos físicos.
Na sua obra intitulada Mênon, Platão expõe a doutrina de que o intelecto pode apropriar-se das idéias porque também ele é como as idéias, incorpóreo/imaterial. A alma humana, antes do nascimento, teria contemplado as idéias enquanto seguia o cortejo dos deuses. Encarnada, perde a possibilidade de contato direto com os arquétipos incorpóreos, mas diante de seus objetos sensíveis pode ir gradativamente recuperando o conhecimento das idéias; conhecer seria então lembrar, reconhecer; o que sustenta a hipótese do mundo das formas – imortal. Essa imortalidade converte-se na construção do platonismo, numa condição para a ciência, para a explicação inteligível do mundo físico. Como exemplo dessa imortalidade da idéia há Grandes homens como o pintor Leonardo da Vinci (um arquétipo do Bom da nossa história) ou o ditador Adolf Rittler (um arquétipo do Mau) cujos corpos, a carne, o material do mundo físico, morreram, acabou; mas a idéia de homens que foram é imortal.
Os exemplos de idéias apresentadas em outra obra de Platão intitulada Fédon são extraídos ou da esfera dos valores estéticos e morais (o Belo, o Bem), ou das relações matemáticas (o Grande). De fato, é desses dois pontos que o platonismo vai colher, preferencialmente, os pontos de apoio para propor um mundo de modelos transcendentes. O que é compreensível, uma vez que a variação de mais ou menos (mais belo, menos belo; maior, menor) parece sugerir a referência a um padrão absoluto, a uma “justa medida” (o Belo, o Grande).
Já a doutrina platônica da imitação (mímesis) difere da que os pitagóricos propunham desde o século VI a.C. A mímesis, no pitagorismo, apresentava um caráter de imanência, uma vez que o modelo e a cópia estão contidos ambos no campo concreto e inseparável dele; são as duas faces – interna (apreendida racionalmente) e externa (apreendida pelos sentidos) – da mesma realidade. Com Platão a noção de imitação adquire acepção metafísica e transcendente, como lógica decorrência do “distanciamento” entre o plano sensível e o inteligível. O objetos físicos aparecem como cópias imperfeitas dos arquétipos ideais, incorpóreos e perenes (que não acaba, eterno, contínuo). O mundo sensível seria uma imitação do mundo inteligível, pois todo universo seria resultante da ação do divino artesão que teria dado forma, pelo menos até certo ponto, a uma matéria-prima, tomando por modelo as idéias eternas.
Na alegoria da caverna Platão dramatiza a ascese/plenitude do conhecimento ao descrever um prisioneiro que contempla, no fundo de uma caverna, os reflexos de simulacros que – sem que ele possa ver – são transportados à frente de um fogo artificial. Como sempre viu essas projeções de artefatos, toma-os por realidade e permanece iludido. A situação desmonta-se e inverte-se desde que o prisioneiro se liberta: reconhece o engano em que permanecera, descobre a encenação que até então o enganara e, depois de galgar a rampa que conduz à saída da caverna, pode lá fora contemplar a verdadeira realidade. Aos poucos, ele, que fora habituado à sombra, vai podendo olhar o mundo real: primeiro através de reflexos – como o do céu estrelado refletindo na superfície das águas tranqüilas –, até finalmente ter condições de olhar diretamente o Sol (alegoria do Bem, representa o Claro, o Limpo, o Dia, o que é Saudável, etc.), fonte de toda luz e de toda realidade.
A construção do conhecimento constitui, assim, no platonismo, uma conjugação de intelecto e emoção, de razão e vontade; a epísteme (teoria do conhecimento e metodologia) é fruto de inteligência e de amor.
Com o advento do Cristianismo, a doutrina cristã resgata o idealismo platônico na medida em que considera o mundo terreno como provisório e aparente, como mera passagem durante a qual o homem tem que adquirir méritos para ascender ao céu, o mundo supra-sensível dos valores eternos; quer dizer, criou a dicotomia céu/inferno, sendo que a vida terrena serviria apenas para que o homem, condicionado por infinitos códigos morais, passasse por provações segundo a vontade de Deus para que assim conquistasse o perdão pelos pecados do corpo (princípio do Mal) e um lugar para a sua alma (princípio do Bem) no paraíso. A sublimação do sofrimento leva a uma inversão dos valores éticos reais: os fracos são considerados fortes; os humildes, gloriosos; os pobres, espiritualmente ricos; os derrotados, vitoriosos.
Esse dualismo cósmico cristão e a filosofia de Platão são fortemente criticados por Friedrich Nietzsche em Para Além do Bem e do Mal, ao afirmar que “o cristianismo é um platonismo para o povo” e que a dominação cristã é mais do que cristã, é platônica, pois Platão criou o outro mundo, o das idéias, contra este mundo e o cristianismo elaborou o “Reino dos Céus” como o outro mundo.
Nietzsche afasta toda idéia de transcendência e de ‘outro mundo’, pois acredita que não há vida eterna no além, porque o que importa é a vida como impulso, com todas as agruras e maravilhas, porque viver é enfrentar e superar as dificuldades, agir de acordo com os códigos morais da sociedade em consonância com as forças instintivas do seu inconsciente, e não se subjugar a regras de conduta que ferem o homem na sua essência, que o obriga a reprimir os instintos naturais e primitivos, que julga e condena em nome de uma imortalidade abençoada. Viver é querer ir sempre além, num vir a ser eterno, portanto sem pensar em preservar-se; é superar-se constantemente. Assim, Mau seria tudo o que é fraco e não consegue ser um afirmador da vida e o Bom é o nobre (generoso, de “ação nobre”) que ama a vida sem nada temer; e essa independência é para poucos – é prerrogativa dos fortes.

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